Saltar para: Posts [1], Pesquisa [2]

FUGAS DO MEU TINTEIRO

Imagens e palavras de um mundo onde há menos gente

FUGAS DO MEU TINTEIRO

Imagens e palavras de um mundo onde há menos gente

Passeando com a minha Amiga

João-Afonso Machado, 30.01.21

A minha mão na da minha Amiga e o necessário impulso para a elevar do estribo da victória ao seu assento... Iríamos os dois no banco dianteiro porque a história é real e o postilhão já não faz parte dela.

IMG_9349.JPG

Inoportuno dia de feira, a roubar-lhe o brilho azul dos olhos, tímido e celestial como nos enredos bem narrados. No seu desentusiasmo, cri somente a percepção da minha triste expressão - o velho Camilo, lido a noite anterior (os Serões de S. Miguel de Ceide), considerava-nos, pobres portugueses, um povo de «três indústrias: agricultura, burocracia e brasileirismo». E quando Camilo fala ou escreve, a gente encolhe, escuta e dá por assente. Assim resignado, macambúzio, recebi a Senhora vinda de longe.

Dei ordens conversadas ao equídeo e partimos na direcção do Litoral. Não aparafusava na minha mente entristecida o Minho serrano, tal a melancolia, deixando vislumbres de paisagens agrestes para outro dia qualquer. Fomos, estrada fora, comigo a digerir a maldição. Agricultores, pois então, olhássemo-nos ao espelho, a topar os tractores lavrando a terra. Ou essa terra escalavrada pelas chuvas, à espera que as ditas máquinas não se afundassem nela, de ossadas à vista.

SULCOS.JPG

Trotámos com arreganho. O tempo é agora das vacas mamudas a verterem leite pelas orelhas. Exigências das autoridades cooperativas, com outros apêndices - os vitelos, a carne, a abundância nos supermercados. O lavrador faz o que lhe ordenam e o milho cresce como floresta virgem, amazonicamente verde e depois, a modos que látex, trucidado para alimento do gado, dopado, desamarelado no corte final. Mas ainda há velhos que perguntam pelo milho-rei, os pobres coitados pré-burocratas...

E tudo agoniava a minha Amiga, já tolhida do frio, embrulhada em xailes e mantas, de garruço de lã na cabeça. De uma era à margem das samarras... Prosseguimos em bom andar, que eu do alto da victória nem precisava usar a chibata de marmeleiro. (Há-os por aí que é na linguagem da tranca...) Palavras poucas, semi-ditas, e o Pégaso, sem mais, a transportar-nos no tempo, o espaço proporcionado ao fim da jornada.

Aí por Touguinhó atravessámos o Este.

ESTE.JPG

Sua Ex.cia, a Senhora minha Amiga, gabou tanto peixe sob a ponte. - Tantos! - Faltaram-me, porém as forças para contabilizar os baldes vindos de França, a falar francês, de gardons e ablettes, recreio dos nossos pescadores de concurso e saco cheio. Nenhumas velhas trutas de outrora, afogadas na poluição e na sanha dos morteiros! Não soltei comentários, e nem sei mesmo se não chibatei, raiva transporta, o Pégaso em tal lance.  Pela Junqueira, conveniente com Camilo, um chalé

DO BRASIL.JPG

se não me falha esta memória tosca, enflorado por uns ais! de espanto e de susto, devidamente repartidos e mais ou menos doridos.

Íamos chegando a Vila do Conde. Ao que se lhe lia no olhar, a minha Amiga, entretanto, deixava-se embalar feliz. Passeara, repousara, mudara os ares. Conhecera lugares novos. Agora, percebia eu, se começasse pelo melhor... isto é como o vinho, quando a medida ao jantar tem de ser repartida. Fora só um anúncio, por acaso em terras onde, com o meu querido Pai, andara ultimamente às codornizes e Ele, já idoso, ensinava a juventude o que nunca precisou ser ensinado. Coisas da vida que, em geral, o Minho conhece. Velha arreata ensombrada pelo Mestre Camilo! Enfiado na burocracia da nomenclatura das freguesias, já chegando a Vila do Conde, aos arcos do aqueduto de Santa Clara e o stop simplex: mais adiante, não!

017.JPG

Além, não! E era toda a autoridade do Senhor meu Pai. Porque eu descambaria ante o encontro com o imenso Antero, um eremita daqueles areais onde ganhou um viço que, por uma palavra, eu poderia deitar ao chão e escangalhar-lhe as «vozes do mar, das árvores, do vento». E por Régio - minha memória de infância - a passear na orla das águas salgadas - «Vila do Conde, espraiada/Entre pinhais, rio e mar!/- Lembra-me Vila do Conde,/Já me ponho a suspirar».

Aí sim! Chibatei o ar e bradei -  Pégaso, de volta embora!

Olhos azuis me olharam. Mais agrícolas do que burocratas, com nada de brasileirismo à vista. Apenas, no silêncio em que me respeitaram, um niquinho mais de coragem e encostariam a sua cabeça ao meu ombro.

 

Por aí...

João-Afonso Machado, 29.01.21

SOBREIRO - ALFARROBEIRINHA.jpg

Mais uma dúzia de braçadas e alcanço o areal. Espero... Não acredito em ananases mas em tubarões sim. Por ali ficarei, então, alguma ave passará e o comer é seguro até à próxima que esvoace a condizer. O ilhéu tão distante, algum navio há de surgir, entretanto, não vá eu perecer, sem terra, rodeado da secura do oceano. Aliás, bem podia chover, começo a ficar aflito com sede...

 

Acantonado junto ao Sado

João-Afonso Machado, 27.01.21

107.JPG

Telefonava-me ontem um amigo, que ando eu fazendo? - perguntava ele - a estas horas e nestes complicados tempos, tão longe de casa...

Ri e fui a outra lasquinha de presunto, porque descobri, enfim, uma loja de ferragens cristã, onde comprei uma navalha de bom fio, e com ela petisco e corto e aguço canas, não se dê o caso de fazerem falta.

Fácil não seria transmitir ao meu amigo certas noções dos vagares em que, quando não, se arrastam os nossos viveres. Ocorreu-me até Virgílio Ferreira e aquela sua portentosa apreciação - «A luz um dia explicou-me. Não me explicou bem com as palavras de explicar, mas com a intensidade da explicação para eu pôr as palavras que faltavam»!... Até porque o amigo já adivinhava rabos de saia e eu atrás deles...

Sim, faltava, nos meus alvitres, desde logo a expressão nua e descarada de umas "pernas boas"; mas havia mais falhas e mais suaves - a mansidão de um olhar, a maciez de umas mãos, o ror imenso de notas do meu bloco, mesmo alguma lágrima que o humidificasse. A catástrofe do encontro com uma tribo belicosa, canibal, impiedosa. O fracasso, a retirada... Um silêncio veementemente mortal. Fome e sede, a longa caminhada a pé até ao comboio da salvação.

Com o primeiro e o segundo e toda a noite de beijos deixada de rastos entre telhados e pombos e outros desencantos.

Por sorte tinha abrigo de gente boa em Alcácer, e o Sado enche-me as medidas, saboreado cá de cima. Até a marginal, as suas ruazinhas sempre à espera de alguém que as encoraje, tudo me é um consolo. E por isso - concluia eu o telefonema com o meu amigo - aqui estou, petiscando enguias fritas umas atrás das outras, sem dar sossego ao meu caderninho e dono de uma nova companhia, uma galga velha que nunca vi bicho tão chegado à gente.

- Em Alcácer? Mas o que é que um gajo faz em Alcácer??? - (Pois... haviam-me falhado as tais palavras mães da intensidade da explicação...) - Eh pá!, quando voltar para cima, conto com mais calma. Mas olha que arrisco ficar aqui um bom pedaço de tempo, o bastante para trazer comigo as aves todas, dentro de uma máquina fotográfica... Se calhar, só depois da colheita do arroz!

 

Hoje, 24 de Janeiro

João-Afonso Machado, 24.01.21

ANDORINHAS.JPG

Querida Mãe, li há dias um poema espantoso de Pedro Homem de Mello: chama-se Canção Derradeira e é simplesmente só isto - «Minha Mãe deitou-se.../É noite!»

É, já tardote a Mãe adormeceu, mas não nos esquecemos dos seus 92, hoje feitos na contagem do Tempo para além do qual a Mãe está connosco.

Tivesse eu vagar, Mãe, ia aí num instante dar-lhe um beijo de parabéns. Receba-o daqui, está bem? A rede é boa e o telemóvel muito audível... Percebo-a na perfeição, diz-me que  passa lindamente. Que bom!  Outro beijo e até amanhã, querida Mãe!

 

"Penitente"

João-Afonso Machado, 23.01.21

021.JPG

Ajoelhou as ideias na clausura ao centro

e chorou bagos de água dura,

 de si as trazia dentro.

 

Acreditara em um dia enfim

a levara nem sabendo quem era

- apenas não mais sofrendo assim

a grilheta que arrastava,

bola preta, dentes a ferrá-lo de espera.

 

Mas tudo foi nada, uma miragem somente,

mar mudo, águas sem margem,

e lodo lodo, mágoas de lodo,

tão porca imagem demente

por ele todo.

 

 

Paisagem quase lunar

João-Afonso Machado, 20.01.21

IMG_2017.JPG

Lá longe, num fundo, o lugar estranho de quase um cárcere gigantesco. Um ghetto - pensei - aparentemente sem voltas de arame farpado, nem holofotes ou vigias de soldados armados. Como também não ouvi o latir dos cães-polícia, - avanço ou não avanço? E a interrogação demorou-se-me largos minutos, até que me levantei e segui em frente. Afinal, eu era um veterano de Moscavide...

Foi o tempo de descer o vale - agora prevenido com um cantil - e esquecer o calor que se sobrepunha, indiferente, ao negrume das nuvens. E, dando entrada naquela conventualidade, engoliram-me as ruas e avenidas multiplicando-se entre edificações mais altas ou mais baixas. Por paradoxo, todas diferentes e todas iguais, uma mescla de roupas a secar nas varandas e antenas parabólicas - satélites prestes a serem fogueteados para o cosmos, pensei.

Estranha gente! Ninguém conhecendo alguém, estabelecimentos comerciais obedientes ao verbo aviar, e o que fosse vizinhança um significado impróprio. Deprimente sensação! Era o normativo das gaiolas, os transeuntes canários de folga oferecida por gatos inexistentes... E mais os atropelos do que as palavras. Mas anotei transportes públicos, topei o silêncio do passe social exibido. Sobre o todo, o cheiro intenso do anonimato. Morbidamente imaginei o que seria - como seria - morrer nestas andanças.

Cidade? Vila? Urbe sem nome? Nem cheguei a apurar, tal a percepção de que qualquer averiguação seria em resposta grunhida imperceptivelmente. 

Nem mesmo a velhinha disposta a atravessar a passadeira aceitou o meu auxílio... Enfim descobrira o mundo do cada um por si. Carnalmente, espiritualmente... Escusado seria perguntar onde tocaria o sino da igreja - igrejas havia-as muitas, com nomes imaginativos de seitas várias, nos rés-do-chão dos prédios.

Por tudo, debandei. Para sul, só por curiosidade, para lugares meus conhecidos de gente de vilórias, localidades onde todos sabem quem são todos.

Ali... foi uma experiência. Um homem há de ir do alto das serras ao baixo da desumanidade, circulando etereamente entre os autómatos. E depois vir e contar ao que assistiu.

 

Portela (Santa Marinha)

João-Afonso Machado, 18.01.21

Com Portugal sob ordem de prisão domiciliária, lá me aventurei até à Portela, a última freguesia famalicense a norte, antes do concelho de Braga. Terras elevadas, povoadas de pedreiras entre eucaliptais, e, na fronteira com Escudeiros, já da cidade do Senhor Arcebispo Primaz, dois canhões, um voltado contra o outro, e a respectiva tropa de Artilharia, fardada de cinzento com capacetes metálicos, os muares de puxar as peças atados ao arvoredo, tudo como no tempo da influenza... Evitei o confronto iminente, e fui subindo para o altar do granito, onde até poderia assistir ao voo destemido de Santa Marinha, lançando-se nos ares de espada na mão.

IMG_3968.JPG

Sai dali muita pedra! Muito ali se serra a pedra! E as pedreiras, assim batendo no chão estéril, logo deixadas ao abandono como lagos em crateras já sem fumo.

IMG_3965.JPG

Conquanto ainda carregadas de pó do mineral serrado. Pobres calças, desgraçadas botas! As folhas secas dos eucaliptos descarregaram nelas a sanha de anos e anos de esterco vindo no vento.

Camiões é o que aquelas curvas de mau parecer mostram aos olhos do passante. Pesados, atulhados, prontos a esmigalhar. A Portela não tem par aqui na nossa terra. Fui descendo, já cansado, mas um pouco de olho no que ainda falta derribar.

IMG_3967.JPG

A freguesia vem serra abaixo. A meio pano, o seu centro. Comércio, indústria? - não há. Serviços? - também não, exceptuando o cangalheiro, um ou dois cafés e um restaurante cheio de nome, desses onde se paga muitíssimo e come pouquíssimo, apenas desenhos caprichados no fundo dos pratos, e florzinhas de permeio. Mas a igreja paroquial é simpática, acolhedora,

IMG_3972.JPG

e esplêndidas as suas vistas sobre o vale que se estende até aos limites da cidade, sede do concelho.

IMG_3970.JPG

Um vale enganador, mais adiante uma república fabriqueira. Sem prejudicar, todavia, esta pacata localidade em cujos cimos o mundo vai ruindo e, nos fundos, se mantem uma actividade inocente, cavadora ou pastorenta.

008.JPG

Para estas bandas, a ter de mudar o ninho, eu pousaria aqui. Longe dos topos serranos, mais pela alma da freguesia, descaindo, descaindo, até me chegar ao ribeiro (digo, à nascente do rio Pelhe, o Tagus famalicense), e aos prados. Isto hoje, que amanhã nem Deus sabe...

 

Coelhos dominicais

João-Afonso Machado, 17.01.21

Contava ela, a empregada Rosa, muito escandalizada, - Saiu cedo com a espingarda velha, essa que era do Bisavô, Deus o tenha, o Senhor. E foi numa volta por aí. Chegou a casa com dois coelhos ao dependuro... - Tome lá, esfole-os. - E que mais?

ORELHAS.JPG

- E que mais? São coelhos do monte, dos que você gosta, ou não passa a vida a queixar-se das porcarias do supermercado?

Parece que houve bulha. Uma coisa é estufar, outra esfolar... - É, então não passe a vida a choramingar, tire-lhes a pele, descamise-os, que o pitéu também chega para si.

- Só os caça com o diabo da espingarda antiga! - exclamava, furiosa. - Aquelas das duas ferramentas de puxar para trás e os canos compridos como uma regueiro: diz que é como o falecido Brandão ensinava, «apontar-lhes às orelhas entre os cães», seja lá o que isso for. E todos os domingos é isto!

Assim mesmo. Os perdigueiros ficavam no canil, consigo ia a Cadelota - não é a Carlota, é a Cadelota - um misto de ovelha pastorenta e de cão podengo, desses que não se picam no mato e se desbundam em ladridos ao cheiro dos coelhos.

IMG_2588.JPG

Alma danada, a Cadelota! Encapotada contra silvados e cardos, só saía do monte assim os marotos fossem à sua frente. E eles eram muitos, junto à vinha, roendo os cavalos e o mais (os cavalos, não saberão os citadinos, são o pé de vide onde os homens gastam horas a enxertar as castas para fugir à filoxera...), a precisar de controle, como a gente de carne para comer.

A Rosa, pelos tiros que ouvia ecoar, ia fazendo contas. Depois, profissionalmente, rezingava. Pela tardinha gabava-se com os caseiros do manjar - que eles, sem arma, só provariam por generosidade da Casa...

Respondeu-lhe o Se'Manel, não se acalorasse: quase sempre o patrão, no regresso, ali passava e deixava um láparo e os votos de um bom domingo... E, sem mais ligar a diatribes, regressava ao relato radiofónico do futebol. Assim a Rosa se roía toda de incompreensão antes de, na hora do jantar, agradecer o petisco que era da sua mão hábil de cozinheira como da velha espingarda do finado Senhor, ainda do seu tempo.

021.01.14 - ESPINGARDA BISAVÔ.jpeg

(- Que aquilo sim, caçavam a sério, tantos cavalheiros, todos convidados, dava gosto. E matavam essas tais lebres, com os cães do Senhor, grandes, bem corridos, chamavam-lhes os «gáurgos».)

 

Tudo porque não trouxe bússola

João-Afonso Machado, 13.01.21

CARCASSA.JPG

A esplanada amarelecia no entardecer, de resto um tanto irritada pela fome. Mal-encarada, entregue à minha caneta, à sua ironia permanente, porque eu, movido a cerveja e amendoins, não iria longe, nem com todas as velas a soprarem em redor. Foi onde? Já não sei, lembro apenas a travessia, o charme da proa lavrando águas e, até, um breve instante da euforia de quem dá à costa. E o desembarque, o cais, a avassaladora precisão de comer.

Depois o homem gordo, o tabuleiro nas suas mãos. - Diga lá, amigo: pipis?, caracóis?, couratos? - E o meu espanto, o meu pasmo, a ineptidão de um desconhecedor de línguas estrangeiras... Um gesto, outro gesto, lá me expliquei: viesse uma caneca bem tirada, e pevides descascáveis como para os macacos. Com a caneta sempre a meter o bedelho, a apontar para o lado oposto do cais, a repetir-se como um disco riscado - És tu! És tu!

Eu! Eu era a carcassa da velha embarcação ainda com os ossos de fora no lodo da maré vazia. Posta à minha frente, diabo de vómito. Sem "pipis, caracóis ou couratos", ouvi apelos de alma defunta. Confesso, não desprendi a minha, quase amortalhada, caneta. Dei-lhe um nada de atenção. Chamei outra cerveja pelas espumas idas, e sempre fui pensando - Pois, talvez seja assim mesmo! - Mais um cigarro apagado e uma ideia a crescer. Enormemente! Eu, do mundo da Reconquista, eu minhoto, longe dos meus, aqui mendigo a lavar os dentes na escova em que limpo os sapatos - eu cavaleiro, de parcos haveres, - mas sempre amochilado com as armas do Reino - eu hei de chegar lá! 

Onde?

Onde os limos não putrefactam. Onde a minha caneta vá no meu mando. Ela que chie, esbraceje ou deslize. De resto, preparando-se para esses despistes, pus-lhe mão firme nos pinotes, encurtei-lhe a rédea, e ela a rilhar o bridão, a escorregar, a escorregar, tantos ângulos comprometedores, tantos piões provocadores - consoantes e vogais - a relinchar insubmissa, de crina eriçada. Só por mor do que depois vi riscado, que era nome de mulher, -  compreendi o alarde e jurei-lhe não o revelar.

Então aceitei outra caneca que ela (caneta) me ofereceu, apaziguadora. No horizonte, qualquer coisa negra remexia ao cinzento do rio sem água. O sol ia-se, a deixar ficar a angústia desses filamentos, seriam aves, seriam homens simplesmente sobrevivendo. Tal como eu já só queria um poiso, porque - sobrevivendo também - amanhã será muito betão para trepar. Dos mais altos picos do mundo desconhecido da margem de lá. Erodidos das cores que a intempérie comeu, escondendo-se da fornalha solar atrás de persianas, centenas e centenas delas, e afiando as garras nas antenas dos telhados. 

Ah!, caneta! Se alcanço esses pirinéus todos, serás escrava minha, cronista sem paga, pingalim em punho, a tua existência para sempre submetida aos meus feitos e às minhas glórias!

 

Viajando a lápis de carvão

João-Afonso Machado, 10.01.21

IMG_3596.JPG

Foi cisma minha, não quis nem aglomerados de gente nem motores. Nem pressas, nem pontes. Queria a ondulação do rio, aquele soluçar sempre cortado pela metade, e a minha lapiseira que me desenhasse também um arrais engarruçado e descalço, castanho do sol nos braços em que brilhassem as escamas do peixe, ou branqueasse a farinha dos moínhos de maré. No restante... Ou bote, ou catraio, ou canoa... É claro, tivesse a lapiseira artes para isso, preferiria uma falua, de velame amplo e soprado, o nome - falua! - soa-me onomatopaicamente e vai bem com o marulhar das águas.

Apareceu-me com um varino. Pois sim... Embora excessivamente festivo, todo engalanado de fitinhas e galhardetes e, à ré, uma suspeitíssima bandeira. O rio não estava para grandes brincadeiras, longe de qualquer amena expressão, as nuvens ensombravam todo o sul e não havia necessidade de perdermos mais tempo. A lapiseira encheu de vento o fole de Éolo e pintou uma boca silvadora ao arrais; eu arregacei-lhe as calças até aos joelhos , de propósito não eliminei a bandeira maldita, porque entendi seria uma travessia clandestina, não desprovida de perigos. E, em mais dois ou três traços meus, navegámos.

Senhor da embarcação, assim, dei-lhe todo o vagar da manobra para definir onde queria ir, o que eu ainda não sabia. Somente, de certo, o nosso destino ficava na outra banda. Algures onde inexistissem castelos ou penedias a trepar. Somente estranhos e numerosos povos, dialectos desconhecidos. Aliás, a minha lapiseira, enamorada como o dono, multiplicava palavras de encanto, vozes de bondade e sofrimento, Éolo ouvia e compadecia-se, e os beijos - dezenas deles - trocavam-se mutuamente entre a minha alma e os elementos.

 

Pág. 1/2