Passeando com a minha Amiga
A minha mão na da minha Amiga e o necessário impulso para a elevar do estribo da victória ao seu assento... Iríamos os dois no banco dianteiro porque a história é real e o postilhão já não faz parte dela.
Inoportuno dia de feira, a roubar-lhe o brilho azul dos olhos, tímido e celestial como nos enredos bem narrados. No seu desentusiasmo, cri somente a percepção da minha triste expressão - o velho Camilo, lido a noite anterior (os Serões de S. Miguel de Ceide), considerava-nos, pobres portugueses, um povo de «três indústrias: agricultura, burocracia e brasileirismo». E quando Camilo fala ou escreve, a gente encolhe, escuta e dá por assente. Assim resignado, macambúzio, recebi a Senhora vinda de longe.
Dei ordens conversadas ao equídeo e partimos na direcção do Litoral. Não aparafusava na minha mente entristecida o Minho serrano, tal a melancolia, deixando vislumbres de paisagens agrestes para outro dia qualquer. Fomos, estrada fora, comigo a digerir a maldição. Agricultores, pois então, olhássemo-nos ao espelho, a topar os tractores lavrando a terra. Ou essa terra escalavrada pelas chuvas, à espera que as ditas máquinas não se afundassem nela, de ossadas à vista.
Trotámos com arreganho. O tempo é agora das vacas mamudas a verterem leite pelas orelhas. Exigências das autoridades cooperativas, com outros apêndices - os vitelos, a carne, a abundância nos supermercados. O lavrador faz o que lhe ordenam e o milho cresce como floresta virgem, amazonicamente verde e depois, a modos que látex, trucidado para alimento do gado, dopado, desamarelado no corte final. Mas ainda há velhos que perguntam pelo milho-rei, os pobres coitados pré-burocratas...
E tudo agoniava a minha Amiga, já tolhida do frio, embrulhada em xailes e mantas, de garruço de lã na cabeça. De uma era à margem das samarras... Prosseguimos em bom andar, que eu do alto da victória nem precisava usar a chibata de marmeleiro. (Há-os por aí que é na linguagem da tranca...) Palavras poucas, semi-ditas, e o Pégaso, sem mais, a transportar-nos no tempo, o espaço proporcionado ao fim da jornada.
Aí por Touguinhó atravessámos o Este.
Sua Ex.cia, a Senhora minha Amiga, gabou tanto peixe sob a ponte. - Tantos! - Faltaram-me, porém as forças para contabilizar os baldes vindos de França, a falar francês, de gardons e ablettes, recreio dos nossos pescadores de concurso e saco cheio. Nenhumas velhas trutas de outrora, afogadas na poluição e na sanha dos morteiros! Não soltei comentários, e nem sei mesmo se não chibatei, raiva transporta, o Pégaso em tal lance. Pela Junqueira, conveniente com Camilo, um chalé
se não me falha esta memória tosca, enflorado por uns ais! de espanto e de susto, devidamente repartidos e mais ou menos doridos.
Íamos chegando a Vila do Conde. Ao que se lhe lia no olhar, a minha Amiga, entretanto, deixava-se embalar feliz. Passeara, repousara, mudara os ares. Conhecera lugares novos. Agora, percebia eu, se começasse pelo melhor... isto é como o vinho, quando a medida ao jantar tem de ser repartida. Fora só um anúncio, por acaso em terras onde, com o meu querido Pai, andara ultimamente às codornizes e Ele, já idoso, ensinava a juventude o que nunca precisou ser ensinado. Coisas da vida que, em geral, o Minho conhece. Velha arreata ensombrada pelo Mestre Camilo! Enfiado na burocracia da nomenclatura das freguesias, já chegando a Vila do Conde, aos arcos do aqueduto de Santa Clara e o stop simplex: mais adiante, não!
Além, não! E era toda a autoridade do Senhor meu Pai. Porque eu descambaria ante o encontro com o imenso Antero, um eremita daqueles areais onde ganhou um viço que, por uma palavra, eu poderia deitar ao chão e escangalhar-lhe as «vozes do mar, das árvores, do vento». E por Régio - minha memória de infância - a passear na orla das águas salgadas - «Vila do Conde, espraiada/Entre pinhais, rio e mar!/- Lembra-me Vila do Conde,/Já me ponho a suspirar».
Aí sim! Chibatei o ar e bradei - Pégaso, de volta embora!
Olhos azuis me olharam. Mais agrícolas do que burocratas, com nada de brasileirismo à vista. Apenas, no silêncio em que me respeitaram, um niquinho mais de coragem e encostariam a sua cabeça ao meu ombro.