Viajando a lápis de carvão
Foi cisma minha, não quis nem aglomerados de gente nem motores. Nem pressas, nem pontes. Queria a ondulação do rio, aquele soluçar sempre cortado pela metade, e a minha lapiseira que me desenhasse também um arrais engarruçado e descalço, castanho do sol nos braços em que brilhassem as escamas do peixe, ou branqueasse a farinha dos moínhos de maré. No restante... Ou bote, ou catraio, ou canoa... É claro, tivesse a lapiseira artes para isso, preferiria uma falua, de velame amplo e soprado, o nome - falua! - soa-me onomatopaicamente e vai bem com o marulhar das águas.
Apareceu-me com um varino. Pois sim... Embora excessivamente festivo, todo engalanado de fitinhas e galhardetes e, à ré, uma suspeitíssima bandeira. O rio não estava para grandes brincadeiras, longe de qualquer amena expressão, as nuvens ensombravam todo o sul e não havia necessidade de perdermos mais tempo. A lapiseira encheu de vento o fole de Éolo e pintou uma boca silvadora ao arrais; eu arregacei-lhe as calças até aos joelhos , de propósito não eliminei a bandeira maldita, porque entendi seria uma travessia clandestina, não desprovida de perigos. E, em mais dois ou três traços meus, navegámos.
Senhor da embarcação, assim, dei-lhe todo o vagar da manobra para definir onde queria ir, o que eu ainda não sabia. Somente, de certo, o nosso destino ficava na outra banda. Algures onde inexistissem castelos ou penedias a trepar. Somente estranhos e numerosos povos, dialectos desconhecidos. Aliás, a minha lapiseira, enamorada como o dono, multiplicava palavras de encanto, vozes de bondade e sofrimento, Éolo ouvia e compadecia-se, e os beijos - dezenas deles - trocavam-se mutuamente entre a minha alma e os elementos.