Tudo porque não trouxe bússola
A esplanada amarelecia no entardecer, de resto um tanto irritada pela fome. Mal-encarada, entregue à minha caneta, à sua ironia permanente, porque eu, movido a cerveja e amendoins, não iria longe, nem com todas as velas a soprarem em redor. Foi onde? Já não sei, lembro apenas a travessia, o charme da proa lavrando águas e, até, um breve instante da euforia de quem dá à costa. E o desembarque, o cais, a avassaladora precisão de comer.
Depois o homem gordo, o tabuleiro nas suas mãos. - Diga lá, amigo: pipis?, caracóis?, couratos? - E o meu espanto, o meu pasmo, a ineptidão de um desconhecedor de línguas estrangeiras... Um gesto, outro gesto, lá me expliquei: viesse uma caneca bem tirada, e pevides descascáveis como para os macacos. Com a caneta sempre a meter o bedelho, a apontar para o lado oposto do cais, a repetir-se como um disco riscado - És tu! És tu!
Eu! Eu era a carcassa da velha embarcação ainda com os ossos de fora no lodo da maré vazia. Posta à minha frente, diabo de vómito. Sem "pipis, caracóis ou couratos", ouvi apelos de alma defunta. Confesso, não desprendi a minha, quase amortalhada, caneta. Dei-lhe um nada de atenção. Chamei outra cerveja pelas espumas idas, e sempre fui pensando - Pois, talvez seja assim mesmo! - Mais um cigarro apagado e uma ideia a crescer. Enormemente! Eu, do mundo da Reconquista, eu minhoto, longe dos meus, aqui mendigo a lavar os dentes na escova em que limpo os sapatos - eu cavaleiro, de parcos haveres, - mas sempre amochilado com as armas do Reino - eu hei de chegar lá!
Onde?
Onde os limos não putrefactam. Onde a minha caneta vá no meu mando. Ela que chie, esbraceje ou deslize. De resto, preparando-se para esses despistes, pus-lhe mão firme nos pinotes, encurtei-lhe a rédea, e ela a rilhar o bridão, a escorregar, a escorregar, tantos ângulos comprometedores, tantos piões provocadores - consoantes e vogais - a relinchar insubmissa, de crina eriçada. Só por mor do que depois vi riscado, que era nome de mulher, - compreendi o alarde e jurei-lhe não o revelar.
Então aceitei outra caneca que ela (caneta) me ofereceu, apaziguadora. No horizonte, qualquer coisa negra remexia ao cinzento do rio sem água. O sol ia-se, a deixar ficar a angústia desses filamentos, seriam aves, seriam homens simplesmente sobrevivendo. Tal como eu já só queria um poiso, porque - sobrevivendo também - amanhã será muito betão para trepar. Dos mais altos picos do mundo desconhecido da margem de lá. Erodidos das cores que a intempérie comeu, escondendo-se da fornalha solar atrás de persianas, centenas e centenas delas, e afiando as garras nas antenas dos telhados.
Ah!, caneta! Se alcanço esses pirinéus todos, serás escrava minha, cronista sem paga, pingalim em punho, a tua existência para sempre submetida aos meus feitos e às minhas glórias!