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FUGAS DO MEU TINTEIRO

Imagens e palavras de um mundo onde há menos gente

FUGAS DO MEU TINTEIRO

Imagens e palavras de um mundo onde há menos gente

Madame javalina

João-Afonso Machado, 09.01.21

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Com os dias deste tamanhinho, onde quer que a gente chegue já é noite. E vinhamos com a recomendação de fechar os portões da propriedade, função que cumpri, não sendo o condutor, como o alívio de uma bela lufada de ar gelado, puríssimo. Depois, estradão fora, umas dezenas de metros adiante, o bicho atravessou-se à frente do carro. Soaram as campaínhas todas, de um salto voltava ao frio, ciente de que nunca disporia de tempo para armar a espingarda. Mas corri, talvez o "apanhasse" à mão... Coisas de bárbaro...

Também Egas, o Terrível, se lançou do drakkar e embrenhou na escuridão, nem por isso muito convicto... Foi quando reparei que o javali apenas trotava, bem fornecido de carnes, pouco cerdoso, não grunhindo nem urrando. Era de estimação. Fui buscar a máquina fotográfica na certeza de que ele esperaria por mim.

Tratava-se de uma porca híbrida, o fruto dos amores ilícitos da pécora, senhora sua mãe, com algum macho selvagem e aventureiro. E, depois do jantar, mais perto de casa se passeou, foçando deliciada nas ervas do terreiro. Talvez sonhando com alguma oferta gentilíssima, um bouquet da mais repolhuda couve... Mas escasseavam por ali as "lojas de conveniência"... Mesmo os cães, sentindo-a mansa, nem ensaiaram a serenata. O nosso respiro solidificava, nem os muitos sóis no firmamento nos valiam. Mais um copito para aquecer... Amanhã seria dia de saltar cedo da cama.

A quantos quilómetros estaríamos da cidade mais próxima? Lá muito ao fundo, as luzes diziam que de Penha Garcia. Deixá-lo. O importante era estarmos bem e em boa companhia. Sem multidões, nem covids nem a necessidade de trincheiras anti-covid.

 

"Xadrez"

João-Afonso Machado, 06.01.21

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Eu joguei com o melro xadrez em manhã de geada

e ele saltitava perdido a cada vez

em que jogava.

 

Não sabia das peças, dessas mais valiosas,

o bispo, a torre, o cavalo,

a Rainha, Senhora minha.

 

O melro desconhecia meças,

ou quem morre, quem levá-lo,

jogadas morosas ficam-lhe além

 

porque o melro não sabe antever o sol

e por isso, sem cores,

deu o Rei a perder

rendido a amores,

 

alma mole sem compromisso,

sempre saltitante

o melro pintado das dores

de um amante.

 

 

Por aí...

João-Afonso Machado, 04.01.21

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Herdei esta vadiagem de quem antes escrevinhava os meus blocos de notas. Pesado encargo, o diabo que o carregue! É andar e andar a esmolar imagens para o adubo de um qualquer caldinho de ideias, vida de pobre.

E nesse modo, partindo pelo mundo, chego à neve. A um mar imaculado com a neblina das sereias. Está frio e a fome abre a boca...

Ao longe a noção do precipício. Da queda fatal. A neve é um oceano onde todas as naus se perdem. Um inferno que não cheira a enxofre - apenas à humidade do granito, com os corpos escorregando, e os gritos ecoando dentro do abismo.

O canto chamativo das sereias e a queda feliz para o fim...

 

Longe, muito longe

João-Afonso Machado, 02.01.21

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Salvaterra do Extremo sem quaisquer considerações históricas. Apenas o nome lindíssimo, quase o eco de um grito por socorro, na fascinante emboscada dos seus mistérios.

Um apelo vindo da perigosa vizinhança espanhola. De longe, muito longe. De onde as estradas modernas ainda nos tiram umas horitas para lá chegarmos. Noite feita, já barbuda, semicega, para caçarmos a manhã seguinte.

Fora um intervalo de mais de uma década. Houve emoção ao reconhecer, recordar, os lugares de então, os altos e baixos de uma área espessa em perdizes. Em cima das pernas, uns portentosos quilitos a mais, nas mãos a espingarda que há muito dormia, calada, esquecida, já desabituada da luz do dia.

E, nesta época, águas abundantes por todo o terreno gelado. Nunca a temperatura subiu além dos 8ºC, e isto já no pino do sol... Águas que não havia como evitar, botas velhas que as bebiam avidamente. Pés, dedos dos pés, como se enfiados na neve. Os cães felizes e tanto tiro desperdiçado!

Mas foi uma manhã como as dos idos longínquos dos quarentões. Bem disposta, melhor andada. Com as pernas resistindo às partidas dos calhaus, do acidentado piso e dos buracos escondidos sob a vegetação. Ainda pulando uma ou outra vala, ou esgueirando-se entre os aramados.

Somente o cinto podia ter chegado ao fim um pouco mais enfeitado... Mas a perfeição absoluta inexiste, salvo no divino cabrito da hora do almoço. Pouco faltava já para o último suspiro de 2020.

 

Para começar o ano

João-Afonso Machado, 01.01.21

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Bom dia!

Sou de acordar cedo, um instrumento de escrita que se preze não frequenta reveillons. Mas o mesmo não poderei garantir quanto ao aprendiz meu utilizador, a quem os anos pesam e o juízo se mantem sadiamente pouco. Ei-lo chegando... Eu já direi se foi de tolices a madrugada.

Bastar-me-à ver como me pega. Humm... Vá lá, vá lá... Desenroscou a tampa (Nossa Senhora, o ano começa frio!), e procura o papel onde poisar o bico e escrever...

(Coitado, é-lhe escasso ainda o conhecimento das artes literárias: hesita nas palavras, parece que o léxico o finta e lhe faz caretas. E ele, furioso atrás dos termos, a derrapar, a derrapar, - pronto, mais um borrão de tinta a macular a folha! - três raivosos riscos sobre uma frase que lhe desagradou... E outro rasgão no caderno, mais uma bola amarfanhada para o cesto do lixo. Enfim, sejamos pacientes, só agora principia...)

Enganar-me-ei, porventura, mas a noite foi de repouso. Os dedos seguram-me firme, pena é a sua irremediável falta de jeito. Nisto... e no fumar cachimbo, deixando-o constantemente apagar-se. Lá está, o bico de esguelha, a tinta a não correr - endireita a mão, rapaz! - e o vir atrás, já nervoso, o escrito a sair-lhe contundente, quase um berro, vernáculo em excesso, outra hipótese perdida do dizer com encanto.

Temos mais um ano pela frente. Haja saúde. Por mim, a promessa de tudo fazer para aprimorar esta mula carcomida e desajeitada. Quem o ler depois dirá.

Para todos, um 2021 cheio de novas literárias e uma caligrafia sempre saudável!  

 

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