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FUGAS DO MEU TINTEIRO

Imagens e palavras de um mundo onde há menos gente

FUGAS DO MEU TINTEIRO

Imagens e palavras de um mundo onde há menos gente

No epicentro da desgraça

João-Afonso Machado, 11.02.21

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Não há muito, relendo a Obra Poética do Ary dos Santos, fui dar com um extenso poema - um «rimance» - dedicado a Fernanda de Castro, do qual anotei a seguinte passagem:

«chamou oragos e magos/ anões  duendes  profetas/adivinhos e jograis/ sagas  videntes  poetas/que decifrassem os ais/que descobrissem a cura/daquela princesa triste/que morria de loucura».

Tanta gente vinda numa correria para volta de uma só! «Princesa»... lhe chamou Ary... E talvez o entenda: escasseiam as rainhas e as infantas, mas pululam as princesas, princesinhas... Em outras alturas, nós viamo-las sentadas sobre camas acolchoadas de cetins inverosímeis, vestidas de transparente disfarçado de translúcido, as pernas e os braços abertos num equilíbrio de kama sutra e o sorriso, parado e possidónio, de uma boneca de grande calibre.

Depois, de todo este folclore se apossaram as próprias donas, a realçarem a exposição do capricho em gestos pretensiosos e exigências de atenção. - Que eu sou muito vaidosa.. - ouvimos frequentemente na placidez de quem se acha tão-só generosa, eventualmente caridosa.

É claro, este manancial de princesinhas, quando contrariado, ou pressentindo menor cortejo, - simplesmente adoece. Adorna. O Destino fê-las assim frágeis, morrendo de «lonjura», numa polidez de palavras com o rabo de fora e, de uma vez por todas, sofrendo os seus dias neste mundo-cão e antecipadamente culpado de todos os males advindos da sua bondade. Isto é, afundando, anos e anos sem, definitivamente... irem ao fundo.

 

Desafio lápis de cor| O verde escuro das florestas

João-Afonso Machado, 10.02.21

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No verde escuro da Natureza venho aqui defender a minha identidade de João-Afonso, o nome que herdei do meu venerando Avô, homem fiel dos arvoredos, que tantos plantou a esverdear a provincia. E isto porque a Fátima Bento (https://porqueeuposso.blogs.sapo.pt/good-morning-pipol-451031), por distracção, me chamou «José Afonso».

Nada de grave, é óbvio. Gosto muito desse meu semi-homónimo. Bandeiras à parte (que a minha tem uma coroa em cima), sempre teremos partido de um ponto comum mas, a alturas tantas, o José Afonso, com a sua fabulosa Balada de Outono...

«Águas das fontes calai/ Ó ribeiras chorai/Que eu não volto a cantar./Rios que correm para o mar/Deixem meus olhos secar»

... veio seguindo os cursos aquosos até ao Litoral onde, a lacrimejar, diz ter deixado as suas baladas.

Eu, um Afonso (João) de muito menor alcance, fui ficando pelas nascentes que nunca acreditei se calassem. Sem sílabas agudas, comedidamente tónicas, mesmo segredadas. (Em clamando José!, logo os gaios - Ué, ué, ué! - se levantariam num berreiro de debandada.) À moda dos matos verdes, enegrecidos pelas sombras, assim calcorriei, anos fora, florestas inteiras. O ambiente onde cresci e vivi. Sob pinheiros, sobreiros, cedros e carvalheiras, e no som imparável das águas desniveladas orquestradas em penedias. Entre todos os musgos arreigados à vida nas rochas. Uma música ora acelerada nos córregos, ora suave em vagares cristalinos, com os godos nús a servirem de fundo e compasso. Se me estou a esquecer do verde? Pois bastava topar aqueles foguetes de barbatanas, fugidios, armar-lhes o aparelho à linha, e esperar debaixo de tão escura, esverdeada, frondosidade... Mesmo mais a jusante, onde nas águas, já em correntezas planas, - essas águas sempre claras, de fundo arenoso, e os limos como cabeleiras ao sabor dos remoínhos - assim lá mais em baixo, o peixe vem também ao chamariz... E não há peixe que não esverdeie de negro brilhante nas escamas do seu dorso...

João-Afonso: um nome que é um sussurro. Talvez uma reminiscência sueva de quando tudo, afora qualquer povoado, era floresta em tons de trajes de pele já antigos, verdeteados, no jeito de andar (ouvindo o grunhido dos javalis e o balir dos veados), na quietude de todos os dias do ano. Buscando mezinhas nas raízes depois a ganhar cor dentro das botelhas, colhendo verdes folhas de cidreira e outras artes de infusão... Robin Hood o seu fiel Litlle John! De arpão em riste, equilibrados na verdura dos calhaus marginais. Sherwood! O mundo arborizado, sob a folhagem perene, de que nunca me afastei. Escuro, sombrio e denso, benfajezo ou traiçoeiro, troncos inacessíveis, incontornavelmente verde essa vida inteira.

 

"Jorrando sem virgular"

João-Afonso Machado, 07.02.21

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Ouve o sol não visível

abrindo em janela o pensar onde é possível

um olhar dele a sonhar

 

até contigo… velho amigo

sempre a lamuriar o dia da morte

ainda não a tua sorte

e por isso ergue o porte

e continua a alma e o ténue dizer dos dias

 

que hás de viver

onde continuarão sem antes sintas a hora

de ires embora

 

não te adiantes e sê paciente

 

que há vozes de podridão

e uma mente de agora

amigo 

 

querendo-te fora esquecido num mar

assim comigo também

 

esses que sonham matar

indo e indo sempre além.

 

 

Arraiolos

João-Afonso Machado, 05.02.21

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Portas manuelinas de uma noite fugaz e outro dia talvez! Calcários fáceis e sempre distantes... Terra de silêncio ao fim de mais uma cheia de calor. Assim passei, quase não demorei, por este menino do mundo que desconheço. Entrevi amigas, as andorinhas do céu inteiro, e com elas conversei o nada que ia do luso-fusco à escuridão. Tanto faltou para Arraiolos sóbria, bebericando uma cerveja na esplanada do café e uma pergunta sacramental: quem és tu, Arraiolos?

Fica a carne dura da incompletude. Mais a fixação numa outra maré qualquer. E o pelourinho... O castelo no alto,... e tanto, tanto mais que faz medo, não fora a imensa vontade do querer, umas centenas de quilómetros entretanto, e uma tarde chã a traduzir em companhêros de mesa e de alma artistas do arado e dos tapetes voando sobre a cabeça das senhoras de bom gosto.

 

Desafio lápis de cor| De casaca na noite de Matosinhos

João-Afonso Machado, 03.02.21

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Não valerá a pena referir há quanto tempo... Éramos estudantes universitários, um coeso grupo de amigos provenientes de Faculdades diversas e, quase todos, ávidos leitores de Eça. Conhecedores de passagens e episódios inteiros, deliciados com as ceias no Bragança, as idas a Sintra, o frou-frou das saias das senhoras, as suas «carnações ebúrneas» e a sua atracção pelos amores ilícitos... E pelos calafrios causados na sociedade da época por João da Ega, ou mesmo por Tomás d'Alencar.

Foi nessa altura, já quase todos finalistas, um de nós, o mais velho, resolveu... casar! Havia que planear essa primeira despedida daquele grupo de estarolas. E a coisa não seria feita por menos.

Estávamos num Fevereiro escuro e frio, como então os Fevereiros eram, regularmente. Seria à noite, no Fagundes, um velho restaurante de Matosinhos que pereceu incendiado. Com um gabinete todo por nossa conta e um belo bife no prato. Traje obrigatório: a casaca.

Já não recordo onde as desencantámos. Negras, até ao joelho, a calça no mesmo tecido. A contrastar, apenas a alvura dos coletes e das camisa de colarinhos erguidos, bem engomados. Assim entrámos, em fila indiana no Fagundes, ante a admiração e o silêncio gerais.

Mas não era tudo. O nosso amigo casadoiro dispensava o bailarico em lugares menos narráveis. Daí as duas ou três garrafas de espumante, as flutes, e já não sei quantos galfarros, passava da meia-noite, encarrapitados nas rochas do mar de Leça da Palmeira, fazendo saúdes à rainha-Lua, essa noite a meio-pano. Muitos os braços erguidos, a berraria intensa e a apreciável colecção de blasfémias proferidas.

O breu nocturno ainda nos presentearia com uma cena final. Há retratos dessa «pilhéria», já não sei quem os guarda. Mas trazíamos um fotógrafo profissional, primo de alguém, para registar a ocorrência. Qual fosse ela, postarmo-nos no mercado de Matosinhos, aguardando a partida do derradeiro 19 (eléctrico) para o Porto - aí desataríamos a correr atrás dele, a bengala (cada qual arranjara a sua) na mão, gesticulando, «ainda o apanhamos!, ainda o apanhamos!» O mestre da fotografia se encarregaria de eternizar esse remake queirosiano, na negritude dessa hora última.

Foi complicado. O guarda-freio, coitado, cheio de boa vontade, compadecido daquele grupo de rapazes sem outro transporte para o Porto, parava o eléctrico e ficava a aguardar. Ele não sabia quem era Eça de Queiroz nem alcançava o sentido da nossa encenação...

 

Um retrato

João-Afonso Machado, 02.02.21

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Antes de mais, o meu pedido de desculpa porque mexi num desenho que não é meu: reduzi-lhe as dimensões e acrescentei sépia, apenas por assim melhor me sair com os meus dizeres. Fique, então, a noção precisa de que esta é a primeira ilustração não da minha autoria que entra no FUGAS DO MEU TINTEIRO. Apenas porque ele revela uma face lindíssima de alguém despreocupada com toillettes, muito bela. Antes de começar, sempre explico, este é um desafio da Ana de Deus em post cujo link sugeriram aqui deixásse também (https://anadedeus.blogs.sapo.pt/).

Deste modo:

«Não é de todos os dias um nariz assim, tão divinamente proporcionado. Sem de mais e sem de menos, nem por sombras adunco, nunca comprido em excesso ou curtinho, amedrontado, E por isso os olhares no autocarro nele convergiam, uma multidão a espreitá-lo na simplicidade com que a sua dona se agarrava em pé a um varão qualquer. Quase obrigando os passageiros a darem-lhe um lugar sentado, a essa jovem ignota, vista mais de perto senhora ainda de um olhar enorme, como ovos azulados, pestanudo, que deixava para lá as obsessões das damas com o tamanho das sobrancelhas.

Iria no seu dia-a-dia, o cabelo caía-lhe no pescoço despretensiosamente. Castanho, sem tinta, ainda e sempre despretensiosamente. E as faces, sem "auxiliares" de juventude, mantinham a maciez, uma pele limpa, nem excessivamente queimada do sol, nem leitosa como nunca apetece. Simplesmente a sua pele esplendia naturalidade, limpinha como um godo nas águas correntes. O mais vinha por aí baixo ao mesmo ritmo chamativo.

Porque a sua boca era perfeita e continuava sem acessórios. Quem a visse movimentá-la, em dizeres simpáticos e lhanos, notaria os dentes, alvos e certeiros, marfim imaculado com nada que repelisse os interlocutores. E depois o queixo, com uma covinha carinhosa, um todo em que tudo era equilíbrio até ao pescoço, bem erguido, alto, sem que alguém se lembrasse de falar em girafas...

O conjunto era notável. Uma viagem, dessas longas, no autocarro, proporcionaria sofismada discussão de um observador consigo mesmo. Entre a testa, a configuração da cabeça, o nariz, a boca e os olhos, vivia o equilíbrio dos céus. E de atarracada, nada, bem suportada sobre os seus ombros vergados à beleza das suas feições.

Os homens não apreciam especialmente as bochechudas, que era o que ela também não era. Apetecia perguntar sobre a sua dieta, mas topava-se, a sua figura negligé - no capítulo dos penteados, desde logo, - corresponderia à sua normal atitude perante a vida. Aliada a uma inexistente exuberância, que lhe acrescentava mistério e a tal vontade de lhe oferecer um lugar sentado. Num vago menear da mão arrumou um resto de madeixa em orelha linda, digna de ser vista e admirada. Sem brincos, só a orelha (e a outra, sua irmã), um sorriso o mais simples a um dito de alguém, a carteira ao ombro e uma vestimenta a pautar-se pelo despercebido. Nem de outro modo teria de ser.

A sua imagem ficou-me, aquando do meu desgosto ao vê-la descer do autocarro. A cidade é demasiado grande... Haverá outro dia?

Haverá outro dia para aquela boca tão singela quão sensual? Para um queixo de futura (sim, presente não seria...) boa mãe. Para tão saudáveis feições, onde todas as medidas de peso e tamanho ocupavam o lugar da mais perfeita estátua do classicismo antigo?

Nos meus escassos assomos de fé na reencarnação, acredito-me com a sua idade, frente a frente numa qualquer esplanada. Tudo correria bem: e os meus dedos deslizariam, escorregariam entre os meandros da sua face, prometendo-lhe - ainda novo - o mundo inteiro do ser feliz só para nós os dois.»

Dixit.

 

Como chegámos à "ética republicana"

João-Afonso Machado, 01.02.21

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Precisemos: 112 anos não desculpam um morticínio. Eu falo, obviamente, da tragédia da Família Real portuguesa e da única forma da "ética republicana", exterminando-a, dar vantagem à sua cavalgada. Mas tanto já foi dito e escrito sobre o tema que mais não me ocorre senão narrar os factos na perspectiva dos maiores defensores da vida humana. Aborto e eutanásia à parte, é claro. Ouçamos então, hipoteticamente, a nossa humanista Catarina Martins que sobre o Regicídio diria (ou diz, com certeza):

- Nessa meia-tarde, uma família portuguesa desembarcou no Cais das Colunas e, após cerimónias protocolares, subiu a uma traquitana (- os tuk-tuc's da época -), rumo ao palácio onde residia;

- Ainda no Terreiro do Paço, viajando a descoberto (lá está: os tuk-tuk's...), um bandido carbonário, de seu nome Buíça, munido de uma carabina, alvejou e matou o chefe da família, por acaso, o Rei de Portugal;

- Seguiram-se momentos confusos em que o filho mais velho, pora acaso também, o Princípe Real, puxou do seu revólver e tentou defender os Seus. Azar: havia mais banditagem nas cercanias e um deles, o Costa, baleou-o: morreu em caminho, quando o postilhão fustigava os cavalos para fugir ao atentado;

- Neste comenos, o filho mais novo, à época menor, o Infante (depois Rei) D. Manuel foi atingido num braço e a Mãe (a Rainha Senhora Dona Amélia), à falta de outro meio batia nos assassinos... com um ramo de flores;

Após a narrativa, a História. E a historiadora Catarina prosseguirá: assim nasceu a República,  filha de carabina assassina, com as assinaladas mortes a que acrescem a de um transeunte cuja convicção política se desconhece.

Foi deste modo, sem retorno das vidas supliciadas.

No mais, ficou nos fastos a corajosa intervenção do Tenente de Cavalaria Francisco Figueira Freire, da guarda do séquito real. Espadeirou (e limpou) um dos regicídas e, logo após, pelo sim, pelo não, - criada a inefável "comissão de inquérito" - foi recambiado para Macau.

Afirma Catarina Martins, categoricamente, o Sr. Tenente em breve regressará. Queira Deus!

 

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