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FUGAS DO MEU TINTEIRO

Imagens e palavras de um mundo onde há menos gente

FUGAS DO MEU TINTEIRO

Imagens e palavras de um mundo onde há menos gente

Desafio lápis de cor| O encarnado moliceiro

João-Afonso Machado, 31.03.21

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Foi o caso, a tia velhota morreu, solteira, com uma corrida de sobrinhos. Visitava-a de quando a quando, nunca supôs: a casa da Costa Nova seria dele. Muito escangalhada, a precisar de arranjo urgente.

Jeitoso como era, ele próprio se dispôs ao serviço. Comprou os apetrechos. Sendo do Porto, adivinham-se as cores escolhidas... Organizou-se, escadote incluído, e marcou dia: aí vai de obra por si, mais a filharada.

Ia nestes preparos quando a trincha lhe segredou - Ó homem, deixa lá o azul, que o encarnado é que fica bem...

Embasbacou. O encarnado? O vermelho?

A trincha, vinda da loja de ferragens de lá, muito conhecedora, prosseguiu - É  a cor do vizinho. Deixa lá o resto... Olha adiante.

Ele olhou. De olhos postos na Ria. Nos iates, na surdez de quem não ouve as motos de água, tal a elegância de tantos barcos sempre velejando. E na plenitude daquele lago disputado. Sabia dos moliceiros de outrora, não esquecera as cores de então. Foi em época menor, a marina apagada, uma xata ou outra, quase à deriva. Tudo vagarosamente. Mas sempre o garrido das embarcações ao vento, num tempo não fantástico, somente o quotidiano.

Percebeu tudo. Leu as proas dos moliceiros e uma vida que gostava para si, já nas fronteiras da reforma. Pontapeou essa lata de tinta e achegou-se à trincha. Ela falara. O riscado sairia vermelho-branco, o futebol era ao domingo e a sua casa olhava de igual para igual com a do vizinho. 

E as cores da Ria gozariam o contraste, esse pijama feito de sol e de luar.

 

A vaguear pelos Açores (III) - Capelinhos e Capelo (Faial)

João-Afonso Machado, 29.03.21

Essa ponta no norte do Faial goza (e sofre) a sua história ímpar. Foi nos anos de 1957-58, quando o mar entrou num borbulho quente e sinistro, e a água se fez lama incandescente, depois pó e terra firme. Um fenómeno vulcânico contemporâneo da génese da RTP, e a sua primeira reportagem de exterior. Também o motivo dos magotes de imigração naquele bocado da ilha. As dezenas de sismos sequentes e o pavor do fogo ditaram a reacção dos autóctones, e não seria pior ideia estudar os seus efeitos no presente...

Com este protesto da Natureza, o Faial cresceu 2,8 km2...

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Do desastre restou, quase literalmente, uma extensa zona lunar. Terras castanhas, sem uma planta, sem um insecto sequer. Sem o que a prenda ao solo, poeirenta, levada no vento, subindo cumes sem caminho. Enfim, uma fonte de sede e de nada. Nem de uma gaivota, apenas. Antes do precipício, um farol abandonado. É o silêncio absoluto e, cá em baixo, um Centro Interpretativo.

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É onde compreendo o vulcão. Se ele fugir aos "centros interpretativos" como eu fujo, abriu asas na calada da noite, e fulgura agora em outra qualquer terra aflita. Ficou nada; sobretudo ficou o prazer do esquecimento das gentes da freguesia do Capelo.

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Rezam elas, que a Natureza as deixe em paz. Sem sobressaltos, muito menos vulcões: que essas histórias antigas sejam só isso mesmo - antigas, de tempos idos. O mais é o quotidiano da sua lavoura.

Por isso o Capelo não é uma freguesia propriamente turística. É, simplesmente, o lugar de quem não foi embora.

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Mas com primor. A negritude do seu basalto engalanada nas cores das portas e janelas. Feita de gente simpática como mais não há. Pobres? Ricos? Não sei.

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Seguramente, devotos à sua igreja paroquial. Entre o casario em ruinas, que vamos detectando, ficam essas cores de vida actual; uma distância prudente do lugar do desvario de outrora; e famílias continuando a pensar, este é o seu sitio de vida pelo tempo fora. 

 

A minha esposa

João-Afonso Machado, 27.03.21

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Eu conto quando a vi e como fui à fala com ela. A minha esposa. No fim de tantos anos que antecederam a compra do nosso Uno das idas ao mar, farnel na mala, no Verão, com os cachopos e as duas moças.

Pelos meus 17 anos, tudo era pedir licença ao Senhor meu Pai - Vossemecê consente, hoje é domingo, arraial lá para Barcelos, caminheta certa, andei juntando para a festa...

E, não chovendo, nem a horta ardesse ao sol, lá vinha um benigno sim, louvado seja Nosso Senhor.

O mais eram os tamancos e as madrugadas entre o gado, no vale, e o carreiro um nada acima. Foi quando a topei nele, de bicicleta, entre tantos ciclistas, gente das fábricas, com horas para chegar e horas para sair.

Ela contente como um cuco, sorria, assobiava, aligeirava-se e pedalava sem peso, ali firme, corpo de mulher nova, desembaraçada... linda como só ela, e com todos os ares de boa mãe, capaz de pôr um filho cá fora como a galinha deita o ovo. Encantei-me com o diacho da rapariga. Até dei conta da sua maleta, coisa fina, de senhora rica, mais para mim o quê?

Fui à oficina do Rebelo e comprei uma ginga em segunda mão, dinheiros da madrinha. Tinha guarda-lamas, tinha espelho e campaínha e o andor da bagagem atrás, mas não tinha mudanças. Pelas minhas contas foram quinze tombos de enfiada antes das dez pedaladas seguidas, muito a tremer, normais em quem nunca trepara para cima de uma bicicleta. Os meus Pais botavam as mãos à cabeça e diziam que o moço andava maluco... Mas eu deixava correr e - cego fique! - não tardou, entrava de gás colado no terreiro da casa, fazia a minha derrapagem, e depois segurava-a com o pedal na pedraria das escadas e subia afoito e sem mazelas. Já a a ginga para mim não tinha segredos.

Assim continuei com o gado nos lameiros, como quem espera a Santinha de Balazar.

Foi o caso de a rever. Por essa hora, à manhã seguinte, escapando ao mungir das vacas, sai-lhe ao caminho, de chapéu na mão - Ora muitos bons dias a quem é uma flor!

Ouvi um sorriso fugido de uma boca tão galante, nessas fauces claras, sossegadas, sem carnes nas bochechas, e sempre fui dizendo - amanhã também eu partia para os lados onde o sol morre, às tantas ainda nos encontrávamos... Que sim, era sempre benvinda uma companhia nestas andanças, nunca se sabe o que nos espera... Como cantares de uma cara levezinha, a modos que envergonhada, mas a pedir, a pedir, não vás embora...

E pronto, foi assim. O pior estava nas subidas, quando eu bem queria ir ao chão, levar a bicicleta pela mão e respirar fundo, e a moça, rabo levantado do assento, dava aos pedais e seguia... Que jeito, senão suar atrás dela?

Trabalhava no mercado peixeiro da Póvoa. Até ao dia no miradouro depois das Fontaínhas, já a senti-la segura, arranjava de enviesar para a Junqueira: andava lá a fazer umas terras... junto ás moendas do rio... Mentia-lhe eu... Até esse dia que em que me declarei, queria falar pra ela, queria namoro, casamento, - e que ela deixasse o emprego na Póvoa, os meus pais eram já velhos de idade e as terras a minha herança...

Vão lá... mas tão mais de uma vintena de anos! Pois se a nossa cachopa mais velha anda agora que não se cala com a boda dela! Há-de tê-la, é claro. Para isso nos privámos, foi muito caldo e broa só, eu e a minha esposa, e comprámos o nosso Uno, esfolámo-nos todos de volta da lavoura. Contudo a minha esposa continua linda, linda, assim sequinha, ridente e bem disposta, os olhos da Virgem, com enfeites de madame e carta de condução também... que, depois de gasto o farnel, melhor será ela conduzir o nosso Uno no regresso a casa.

 

Desafio lápis de cor| O verde batráquio

João-Afonso Machado, 24.03.21

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Foi uma das primeiras a acordar do longo sono do inverno. Ainda na alvorada, um sol tímido (mas que se adivinhava senhor para o céu inteiro), nascendo por trás dos cedros e dos pinhais, já a lançar os seus raios pelas frinchas do arvoredo.

Espreguiçou-se, rodejou bem o olhar e arejou o verde da sua derme, bastante embolorada por tantos meses de hibernação.

A Primavera estava aí. Não ainda no calendário mas já nos andamentos do clima... O charco enverdecia a condizer com os tons da sua roupagem - e o charco reclamava agora a sua veterania, a sua guarda. Perdera a conta aos anos corridos desde que fora promovida de girino a rã. Épica metamorfose, a terçar armas contra tudo e contra todos - as cobras traiçoeiras, de olhos gelados, as sombras agoirentas das asas dos milhafres, as crianças traquinas e os seus frascos de vidro, largadas à solta nos lamaçais, a caçar a bicheza... e o Zecaré, o tremendo Zecaré...

Escapara sempre. Era a mais velha e, por isso, uma autoridade no charco. No qual, chegando a maré, depositaria milhares de ovos, perdendo depois a conta aos insucessos, tantos eram eles, da sua vastíssima prole.

Assim agilizada entrou de cabeça e se ginasticou, com vigorosas braçadas, naquelas suas águas. Depois emergiu entre a vegetação de superfície e guardou uns minutos de silêncio observador. Estática, os olhos semicerrados. Mas não, não andava ali a grande garça, nem aves de bico perfurante... nem mesmo o maçador Zecaré. Padeceria agora de reumatismo?

Encheu então o fole, e lançou o seu primeiro brado. Escutou atenta: não era o eco, uns metros adiante; também acobertada numa moita de ervas, uma sua comadre entrara com ela a coaxar. E mais além outra e outra e outra... O charco transformou-se num parlatório infrene, o resultado de quase meio ano de silêncio. Mesmo dormindo, mesmo não se alimentando, os batráquios esverdecem de novidades e dessa tagarelice em que, entre machos e fémeas, há muito bailarico e corações gémeos e prolíferos.

Será assim meses a fio, manhás, tardes e noites, pontualmente desassossegadas pelo alerta - Vem aí o Zecaré!!! -

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- afinal, somente, o cão da vizinhança, que gosta de cortar a direito nas águas verdes do charco, onde as rãs se mimetizam e, é claro!, não possui a destreza bastante para concretizar o seu velho sonho de abocanhar uma delas.

Nem as rãs imaginam o perigo maior que as ameaça: na casa acima, em noites de serão e calor, ouvi-las coaxar invoca ideias sinistras, como a desse pitéu francês, les cuisse de grenouille... E aquela gente, metendo-se-lhe uma na cabeça...

 

(Desafio da Fátima Bento - https://porqueeuposso.blogs.sapo.pt/olho-verdagua-486001)

 

 

A vaguear pelos Açores (II) - Castelo Branco (Faial)

João-Afonso Machado, 22.03.21

Em boa verdade, é nesta freguesia que se situa o aeroporto da Horta. A cidade fica perto e quase oculta as belezas de uma terrinha que - só aparentemente - circula em estrada larga, bordejada por modernas moradias e edifícios de grosso comércio. A Castelo Branco do Faial, debruçada sobre o Atlântico, carrega-se de harmonias afastadas da rodovia. Uma delas é a mansidão dos dias campestres em que o gado bovino e equídeo se irmana e decerto debate, desconfiado, pesarosamente, as malandrices do futuro.

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Ora para poente, ora para nascente, Castelo Branco fica nos antípodas da dita opaca estrada. Onde o sol morre, levanta-se enorme o Morro de Castelo Branco, sobre um mar que conheci chão e chapinhando contra as rochas o tempo todo: horas e horas de um som que não cansa, musical como os relógios de parede. A zona constitui uma Reserva Natural, maternidade e bairro de gaivotas, cagarras e mais aves marinhas. Para pés bem calçados é visitável sem risco - e com o gosto de penetrar Atlântico dentro mais umas largas dezenas de metros.

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Abaixo - logo abaixo do aeroporto - o pequeno porto de mar de Castelo Branco, decerto o início e o cansado chegar de tantos e tantos sonhos piscatórios a girarem em volta de atuns e mastodontes quejandos.

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E, para o interior, a urbe, no centro da qual sobreleva a igreja paroquial. É um momento de puro basalto contracenando com o caiado das paredes.

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Neste axadrezado não há peças para jogar, é a total imobilidade. Triste?

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Pelo contrário! Incentivando a ficar e a observar até bocadinhos de arquitectura que abonecam o local. De um intenso sabor a paz. A uma vida sem pressas, contemplada no curso de todas as almas. A não impedir uma vontade de permanecer, irresistível, o canto do sempre. Afinal, voltar à algazarra porquê?

 

A caminho da morte

João-Afonso Machado, 20.03.21

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Por razões que não vêm ao caso, sou especialmente devoto de Joaquim Pedro de Oliveira Martins - o emérito Oliveira Martins, neto de um simples soldado miguelista e autor, entre outras obras geniais, do indispensável Portugal Contemporâneo em dois volumes: o primeiro de mui agradável leitura histórica, o segundo mais de reflexão, pelo acervo que contem de dados sociológicos, demográficos, economicistas, financeiros.

E nesse extraordinário monumento (vol. I), a narrativa da expiação dos condenados de Maio de 1828 - liberais portuenses - surge carregada de dramatismo e humanidade, como que vemos os desgraçados descendo da Cadeia da Relação à Praça Nova, onde estavam montadas as forcas. Fica para cada um a leitura do suplício. Pelas ruas iam eles, afantasmados, aterrorizados, sob a arruaça da multidão. Agonizantes, já, indiferentes ao bichanar dos frades que lhes oravam às orelhas, às irmandades, à Misericórida, cujos irmãos carregavam os caixões.

Um outro recluso, não condenado à morte mas obrigado a assistir às execuções, poeta do desespero, ante aquela missa de maldades e lúgubres salmos, lançou as suas estrofes:

Quando sobre a negra escada/Vires meu corpo tremer,/Dá desconto à Natureza,/Adeus, Márcia, eu vou morrer.

O povo cantava o Miserere. Os monásticos dos Loios, às varandas, ensopavam pedaços de pão-de-ló em vinho do Porto e atiravam-nos à canalha esfusiante na rua. Na Praça (hoje Avenida dos Aliados, onde está agora a estátua equestre de D. Pedro IV), a tropa bem armada, o clero, a magistratura da alçada. E o compadecido, padecente, poeta, sempre versificando:

Este corpo que abraçaste,/Que já foi o teu prazer,/Vai tornar-se em pó, em terra,/Adeus Márcia, eu vou morrer.

A Guerra Civil ainda nem começara. Findaria em 1834, deixando Portugal na borda da ruína. O tema presta-se a estudos amplíssimos. (Cosida a uma das minhas mochilas, a heráldica de Évoramonte, símbolo da "paz"...) Mas a visão de Oliveira Martins carrega-se de vida, movimento e sentimentos. Sem a conhecermos, nunca se poderá analisar ponderadamente esse período da nossa História.

 

A vaguear pelos Açores (I) - Com o Major Alvega

João-Afonso Machado, 19.03.21

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É em brinquedos da SATA que nos deslocamos entre as ilhas do arquipélago, não sendo embarcadiços. Cada um desses besouros levará uns trinta passageiros e é um gosto vê-los prepararem-se para descolar. Os motores acordam, as hélices dão de si e o movimento começa por ser sobretudo auditivo. Mas, pouco a pouco, a sua aceleração produz um risco negro vertical, é o que resta daquelas pás, as rodinhas do passarão mexem-se, mexem-se mais, mexem-se a cavalgar, correm a pista e a traquitana, enfim, levanta voo.

Nada como ir à janela e observar toda esta maquinação. Seguiremos a baixa altitude, a ponta do Pico à vista e o mini a roncar como um Spitfire. O comissário de bordo, manifestamente cansado destes vaivéns, sentado numa banqueta, de súbito corre o cortinado. Eu espreito: alambuza-se com um iogurte a que mistura não sei o quê. Chupa os dedos, dando a impressão - houvesse um segundo, marcharia também... A copa é exígua e a "porta" fecha mal, não oculta a gulodice do comissário...

A viagem vale menos de meia hora. Na célere descida, as ilhas tornam-se cada vez mais nítidas (é o coração do grupo central açoreano), traçadas à régua nos pastos, senão medidas em metros de altura nos pedregulhos. E nestes a ondulação bate forte, pergunto-me se não teremos desviado para o Canal da Mancha. Com o Major Jaime Eduardo de Cook e Alvega, herói luso-britânico da Guerra Mundial, herói da revista Falcão, memorável personagem desaparecida, um fantasma sem dar a cara, enfiado na cabine, metralhando os seus sonhos e os nossos, não há apresentações, apenas o mais bravio dos Açores, finalmente.

 

Desafio lápis de cor| O amarelo insular

João-Afonso Machado, 17.03.21

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Chegam rumores de amarelo a concurso a estas paragens mais de azul e do negro do basalto, do caiado das casas. Olhei em redor, na mão apenas a lapiseira e o caderninho de sempre, nada que me valesse. Teria de fabricar em palavras um amarelo indígena, núncio primaveril, ainda ralo na berma dos prados e em terrenos bravios. Um amarelo saboroso ao paladar do gado ruminante. Ainda incipiente, descrito em forma de flores ávidas de polinização, as marotas, nas quais caíam pingos esverdeados. Assim mesmo, atafulhadinho, crescidote, piscando o olho às abelhas. Perguntei: chamam-lhe, por aqui, nas Ihas, flores azedas. Será?

Será talvez a grande flor de Abril, que vim apanhar ainda de barba rala. Um amarelo de amanhã, com as crianças a correrem de rede nas mãos atrás das borboletas. A Primavera é o espelho de novas e garridas cores que abrem as portas dos refúgios invernosos. E a catraiada sai de roldão, e nós atrás deles, gozando também a feliz sensação da vida que renasce. (Esquecidos, por momentos, que tudo são ciclos repetidos, o movimento concêntrico do ano a disfarçar o incontrolável rebolar em frente do Tempo...)

Será um amarelo náutico, vindo até às margens do cais. Intemerato, travado entre grades... Amarelo insular, há de saber flutuar nas águas marinhas, e daí o seu esverdeado.

(E eu de gatas a soprar no floreado, expectante de que seria poeira, coisas da maresia, os ilhéus em redor, não querendo crer, eu tão esforçado, tão empenhado no bouquet, que não consegui, para oferecer à Fátima Bento e às demais senhoras que participam neste Desafio...)

Contrariado, incapaz de mais palavras amarelantes, inconformado e exigindo um amarelo amarelíssimo, já em casa fui aos meus arquivos, onde guardava um outro de muita coloração, minhoto, mais amarelo do que um comício de canários.

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E trouxe-o. Igualzinho aos tapetes das romarias, posto à disposição de V. Ex.cias, minhas Senhoras. Um bom proveito!

 

(Desafio da Fátima Bento - https://porqueeuposso.blogs.sapo.pt/dos-textos-das-quartas-483679)

 

 

Outra partida

João-Afonso Machado, 11.03.21

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Gostei do burriquito e da sua tranquila atitude de cadeira na esplanada. Gostei das bilhas de leite, mesmo em alumínio, como tantas que me passaram pelas mãos. Não é que estivesse perto de casa, mas ambos falávamos português e o meu interlocutor, se não era o próprio, aparentava-se muito com o Ti Manel Porreiraço. Na verdade, já não consigo separar as águas, entre tantas cornucópias de dizeres.

Foi há tempos, essa conversa bem disposta e deixada em suspenso. - S. Sebastião! Você está em S. Sebastião, amigo! - proclamava o patriarcal Porreiraço.

Existem imensos altares com os seus S. Sebastiões. Este talvez, não obstante o flagelo dos virotões, um bom nadador. Um leiteiro-pescador, quiçá.

E eu parto a retomar a cavaqueira. Terei até já entrado no avião, nesse infernal charuto. Que o trajecto me seja leve. Não sendo, sempre o suplício virá retratado no Fugas do Meu Tinteiro, em aterrorizante caminhada para o fim.

Entretanto, um grande abraço, amigos!

 

Desafio lápis de cor| O rododendro

João-Afonso Machado, 10.03.21

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Desta feita, descobri-me a pensar na Pantera Cor de Rosa, do Friz Freleng, ou em sonhos que já rareiam, os sonhos da meninice... Talvez em alguma sobrinha minha, ainda bebé de berço... Tudo coisas muito do interior (mais não seja, do velho aparelho televisivo), e a vida faz-se de olhos cá fora, como a escrita só excepcionalmente há de ser confessional.

(O tema musical da Pink Panther era hipnotizante...)

Estavam as coisas neste pé, eu em agradável conversa com uma amiga, por acaso concentrados no azul celeste fim-de-semanal, com este rosáceo problema em suspensão, - estava tudo assim embrulhado quando, atentei finalmente, diante de mim, o rododendro!

O rododendro é uma árvore prestabilíssima. Ainda os jardins se pintam de nada, ainda as cameleiras, sonolentas, semi-abrem os olhos e a grande nogueira é um tronco com a barba por desfazer, ainda o inverno vai a meio e já o rododendro floresce de rosa. Tentando cantar ao desafio com o sempre reservado granito, a puxar pela vizinhança, que a hibernação caminha para o fim.

O óbvio, quantas vezes!, passa-nos estupidamente ao lado. O redodendro nunca saiu dali, ao que ele assistiu não assistimos nós, mas nele há ecos de dedicação e meiguice, de chefia e de maternidade. Há ciclos sobre ciclos, uma colecção inteira de décadas vindas de tão longe! Há muitas histórias de dor e saudade. Mas na cinzenta, musguenta, humidade dos invernos, o redodendro é sempre presente. A querer chamar o sol, quaisquer raiozitos de alegria que nos aqueçam a alma.

 

(Respondendo ao desafio da Fátima Bento - https://porqueeuposso.blogs.sapo.pt/tag/desafio+caixa+de+l%C3%A1pis+de+cor)

 

 

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