Da arte xávega
PRELÚDIO - Passei, na minha adolescência, alguns verões de praia na Leirosa, Figueira da Foz. Tempos inesquecíveis em que pesquei muitos peixes-aranha e, entre outros, um dos ainda agora meus melhores amigos. Foi também na Leirosa que convivi, diariamente, com aquela estranha forma de arrasto, praticada em mar e areais onde nos tirava o sossego de banhistas, como nunca antes vira pelas praias minhas conhecidas
Era tudo muito simples: a embarcação, pela força braçal, ia empurrada para a rebentação das ondas vencida pelo remar da tripulação. Momento quantas vezes assustador, assim o mar andasse mais picado. A proa levantava, levantava, subia a pique, o mulherio, em terra, berrava, apelava a Nossa Senhora e arrepanhava o cabelo, entre o negro trajar de tantas viúvas...
Ao largo, a "canoa" lançava as redes e regressava. O mais era com as parelhas de bois, horas a fio puxando por elas à força de paulada. Décadas volvidas, já homem feito, cheio de saudades, regressei a esses poisos - a Leirosa, a Costa de Lavos, a Tocha. Muito era diferente, tudo mais prático. Como todas as outras, a minha máquina fotográfica só soube captar a actualidade.
A FAINA - Atente-se nas formas dos barcos, e como elas se dispõem a vencer o primeiro e grande obstáculo: a rebentação das ondas, sempre muito forte nestas praias sem rochas e de águas traiçoeiras. É assistir ao seu descer do areal, prontos a furá-las.
Já o disse, a umas centenas de metros da costa, ainda à vista da praia, as redes são lançadas. Vai começar o arrasto. As embarcações, agora já equipadas com motor, a tripulação mais escassa, regressam a terra.
Vêm à boleia das ondas e os tractores rebocam-nas para lugar seguro. Serão também eles a puxar as redes.
Onde ontem a máquina eram os bovídeos, e o combustivel a porrada, andam hoje os motores e o gasóleo. Tudo é muito mais rápido.
Ainda assim, a mão humana não é dispensável, para o necessário jeito de que as redes não prescindem.
O CLAMOR - O bolo aproxima-se. Feito de quê? - sardinha?, cavala?, carapau?, robalo? com algum brinde especial? Há um agigantar de vozes à medida que se vai percebendo, já nas imediações da rebentação, o produto da faina. A companha está em picos...
Há dias magros... e há dias de abastança. Sintomaticamente, estes cada vez menos do que aqueles. Mas, enfim, em essas tardes, uma sempre rendeu uma corvina de 20 quilos...
Parecia uma baleia, já não havia memória de tal, aquilo, ós pois, foi decerto noite muito embagaçada e embaciada...
EPÍLOGO - Segue-se de imediato a lota. O peixe é colocado em cabazes e leiloado. Na minha juventude, o carapau chegava a casa ainda vivo, direitinho para o escabeche. Mas, afora casos assim, de pequenas quantidades, os senhores da manobra são sempre os big bosses dos mercados das cidades próximas.
Nunca será modo de enriquecer. A xávega só é praticável nos meses de verão, mas aqueles extensos areais, de Cortegaça ao Pedrógão Grande, em tempo não, revelavam-se o ideal para o contrabando do tabaco, vai lá quase meio século... Depois vieram as fábricas (a celusose...), outros ofícios, e eu de hoje não falo do que não sei.
Mas era e, em muito, continua a ser assim mesmo.