O fim de um monólogo caminhado
Esses anos todos de cidade são a dor do fim ignoto de tantos personagens desaparecidos no lambuzar do Tempo. A sua visão, uma constante geralmente terminando de modo abrupto, mas tão clara, tão presente, irmanada a uma interrogação que não se apaga - quem eram, para além do seu anonimato, em que desconhecido lugar foram depositar os derradeiros vestígios da sua identidade?!
Talvez um dia guarde um capítulo todo para cada um dessa multidão de mão estendida a esmolar. Gente por cuja perpetuação nos devemos bater.
Como a tal solitária, alta e magra, todo o seu património enfiado em inseparável sacola. Vagueando, de ponta a ponta, a grande cidade, eu recordo-a nos lugares mais inesperados. A indumentária, sempre a mesma. E, também, aquele modo de, permanentemente, andar falando consigo mesma, em voz alta.
Entrava nos cafés e nas petisqueiras, por mais um copo, um gesto de piedade, mas do lado de lá do balcão, dedos imperativos apontavam-lhe a rua, a sua residência. Em boa verdade, tresandava sempre a álcool.
De onde viera, o que fora a sua vida? Não havia quem fornecesse respostas. Estas talvez se encontrassem somente no seu falar desconexo, se devidamente interpretado.
Mas ali na zona da Boavista, uma semana de ausência sua causava apreensão. Comerciantes e moradores interrogavam-se, comentavam, receavam o pior desfecho.
Ela, entretanto, reaparecia. E era como se a rotação do planeta não sofresse, então, qualquer sobresssalto: estavam vivas as suas lamúrias, as suas imprecauções, o contínuo resmonear. Ao jeito de, vendo-a ao longe, as pessoas se interrogarem: o que lhe irá na cabeça hoje?
No presente, é certa a seu irrecuperável falta. No fundo, a cronologia tem regras fatais, inescapáveis, dessas que não consentem qualquer surpresa. Dez anos depois, bem pode acontecer, um lápis, apenas, recorde a sua estadia diária na vida de tanta gente...