Desafio lápis de cor| O encarnado moliceiro
Foi o caso, a tia velhota morreu, solteira, com uma corrida de sobrinhos. Visitava-a de quando a quando, nunca supôs: a casa da Costa Nova seria dele. Muito escangalhada, a precisar de arranjo urgente.
Jeitoso como era, ele próprio se dispôs ao serviço. Comprou os apetrechos. Sendo do Porto, adivinham-se as cores escolhidas... Organizou-se, escadote incluído, e marcou dia: aí vai de obra por si, mais a filharada.
Ia nestes preparos quando a trincha lhe segredou - Ó homem, deixa lá o azul, que o encarnado é que fica bem...
Embasbacou. O encarnado? O vermelho?
A trincha, vinda da loja de ferragens de lá, muito conhecedora, prosseguiu - É a cor do vizinho. Deixa lá o resto... Olha adiante.
Ele olhou. De olhos postos na Ria. Nos iates, na surdez de quem não ouve as motos de água, tal a elegância de tantos barcos sempre velejando. E na plenitude daquele lago disputado. Sabia dos moliceiros de outrora, não esquecera as cores de então. Foi em época menor, a marina apagada, uma xata ou outra, quase à deriva. Tudo vagarosamente. Mas sempre o garrido das embarcações ao vento, num tempo não fantástico, somente o quotidiano.
Percebeu tudo. Leu as proas dos moliceiros e uma vida que gostava para si, já nas fronteiras da reforma. Pontapeou essa lata de tinta e achegou-se à trincha. Ela falara. O riscado sairia vermelho-branco, o futebol era ao domingo e a sua casa olhava de igual para igual com a do vizinho.
E as cores da Ria gozariam o contraste, esse pijama feito de sol e de luar.