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FUGAS DO MEU TINTEIRO

Imagens e palavras de um mundo onde há menos gente

FUGAS DO MEU TINTEIRO

Imagens e palavras de um mundo onde há menos gente

A catequista que mudou de deus

João-Afonso Machado, 30.04.21

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Era a beata-mor da paróquia. Mesmo o Sr. Abade a repreendia - Olha lá rapariga, que o que é demais é moléstia... - Mas os cursos, o seu saber teológico, os livros de Moral que papara como hóstias, tudo a convencia ser a mais próxima do Céu. É claro, tanta soberba e tanta cultura faziam fugir o rapazio local, e a sua vida ia e vinha de casa para a igreja.

Uma saturação para o Sr. Abade! E intentando vê-la mais arredia da sacristia, intercedeu junto do Sr. Vigário-Geral por uma colunazita no jornal da diocese...

Errare humanum est! Perceber-se-à porquê.

Como qualquer catequista, tinha o seu gato. E toneladas de veneno dos ratos para deitar buracos no soalho abaixo. Assim o bichano se entretinha apenas com o mimo da dona, agora muito literata, muito concentrada. Sem tempo... senão para abandonar o gato numa bouça distante. - Que a bicharada se quer liberta!... - assim se aliviou da consciência.

Mas esta era persistente e não despegava os seus livros de Teologia, Filosofia e o folhetozito de Ética que um dia decorara. Foi nesse aperto que quase esqueceu os Evangelhos, substituindo-os pela, de sua autoria, Declaração Universal dos Direitos dos Animais. Indo logo às causas maiores (quais circos!, qual carapuça!), as touradas e a caça.

Deste modo atroz o Sr. Abade viveu a sua cruz, os pregos todos os dias a sangrarem-lhe as mãos e o espírito. Mais a mais, pelava-se por qualquer manhã aos coelhos, com outro paroquiano e a sua matilha. E o raio da beata a azucrinar-lhe os ouvidos com o Livro do Génesis e a harmonia do Paraíso... Imaginou-a apenas com uma parreira sobre as partes pudibundas e sentiu que pecava em pensamento. Não podia ser, valer-se-ia do lamento de um colega sem fieis que o auxiliassem nas actividades da sua igreja -  e para lá a encaminhou em missão especial, que aquilo era uma perdição, uma multidão de ímpios em torno das chegas de bois e de apostas ganhas, ou não, à custa das dores destes.

Ela de imediato foi. Levou a máquina de escrever, pouco mais, mas arranjou de morar nesse recanto troglodita. E, sobrevindo a romaria anual, rumou ao festejo como um bote carregado de fuzileiros. Chegando, rapou do microfone da organização e arengou, arengou. Chamou nomes ao povo, bravejou pelos bois, proclamou uma sociedade vegetariana em que todos - o povo e os bois - pastariam juntos, como irmãos, a quatro patas no chão.

Graças à infinita bondade divina, o sargento da GNR da terreola era homem de se impor e não admitiu lhe dessem nem uma única paulada. Diz quem viu, na sua fuga conduzida pelo militar, apenas sofreu uma cornada de um boi. Coisas do instinto animal - se ela não queria um macho, ele, boi, não dispensava as fémeas, pelas quais lutava...

Da catequista ninguém mais soube - nem a Biblia, nem os bois, nem o seu pobre gato, estrancinhado por uma raposa ladina. Que outras paragens terá escolhido para o seu apostolado?

 

"O cântico da borboleta"

João-Afonso Machado, 28.04.21

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O teu nome borboleta,

hei de o saber e há de rimar com liberdade

e calor,

 

com verdade e amor,

vagas de cabelo primaveris

ou todas as razões de uma tarde feliz

 

mulher alada, braços que esvoaçam e sem som

se esgaçam,

borboleta em riscas poisada

num instante indolor,

apenas traços

 

que voam assim,

violeta de cor,

 

em imenso jardim, borboleta,

o teu toque de flor.

 

 

Northumberland

João-Afonso Machado, 25.04.21

Lembro, Alzira, - e sempre lhes ficámos gratíssimos - o empenho e o carinho com que fomos recebidos pelos nossos Amigos em Ashington. E lembro o nosso passeio a New Biggin, o tempo ainda disponível para conhecer Newcastle, a corrente ferrugenta do Tyne. Mas Northumberland é maior do que os dias e as semanas. Faltou-nos o National Park, as ilhas escondidas nas brumas e muito, muito mais desse topo inglês já a esbarrar na Escócia.

A tua doença era do nosso conhecimento recente. Urgia descansasses e, para o teu descanso, os nossos Amigos foram incansáveis. Mais por não, pelas belas imagens que nos proporcionaram.

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Eu trouxe comigo, sobretudo, os vagares do Mar do Norte. E uma pesca sem engarrafamentos de trânsito... Barcos trotando as águas, pacholas, pescadores vindo dos areais, pendurados nas suas resignadas canas e nos baldes vazios, completamente esquecidos de que era Julho... Um horizonte sem fim, o aviso acima  das nossas cabeças para os mamantes da cerveja, bem-humorado, tipicamente britânico.

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E a inóspita igreja sobre as águas, o cemitério ao lado, tantas lápides, tantos nomes, tantas histórias por contar. Faltou-me uma égua calma, talvez mesmo lusitana, de bem com o terreno, uma espada à cinta e Northumberland devassada de ponta a ponta. Das altitudes ao litoral, embarcando em remares cantados até às ilhas.

Mas creio a conheces perfeitamente, Alzira, aí onde estás por todos nós. Faz agora mesmo quatro anos...

 

A vaguear pelos Açores (X) - A Praia da Vitória (Terceira)

João-Afonso Machado, 24.04.21

Foi um voo simpático, do Pico à Terceira. Era já o regresso ao Cont'nente, com esta escala de meio dia, o bastante para revisitar a Praia da Vitória. Passe a cacafonia, a sua história. 

E uma desordem de ideias. Dali partiu a esquadra chefiada pelo Senhor D. Pedro IV, que havia de desembarcar na praia de Pampelido. Mas eu por quem? Os meus, nessa contemporaneidade, por El-Rei D. Miguel; duas gerações depois, jurando a Carta Constitucional, juramento esse que me cumpre não negar... A Guerra Civil foi o que foi, e imagino D. Pedro IV, na sua fragata, acompanhado dos seus estrategas militares, - Terceira, Saldanha, Sá da Bandeira, Sartorius... - afinal os grandes oficiais que venceram um povo quase inteiro pela sua audácia, pela sua ousadia e saber militar. Posto em frente da baía da Praia da Vitória, vou tentando resolver equações de partido jamais solucionadas...

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Mas talvez a matemática da História dê o tema por ultrapassado. Sobre todos os dilemas partidários resultou a nossa eterna Coroa. Foi assim que despeguei os olhos daquelas águas sem parelha, e andei por lá, até que, já esfomeado, abanquei e comi um inigualável bife de espadarte.

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Não é tosca esta cidade da Praia da Vitória. E vive sobremaneira dos seus monumentos, por regra assinalados com três datas: as do construção, destruição e restauro. É o caso da Igreja da Misericórdia.

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Defronte, o busto de Vitorino Nemésio e a casa das suas Tias, famosa pela sua sacada de dez janelas, um magnífico edifício com a sua lápide, as suas memórias (à dita faz o Autor referência no seu romance Paço do Milhafre)...

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E o passeio prosseguia, em riscas de cor - amarelas e azuis - pela cidade fora,

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realidade arquitectónica impossivel de não aliar às vilas alentejanas, tal qual a emoção dos toiros, um exclusivo ilhéu da Terceira,

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conforme bem está descrito no derradeiro capítulo do Mau Tempo no Canal (Vitorino Nemésio).

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Com tudo entre vegetação exótica, jardins de silêncio e sombra, copas de árvores que são mães de filhos agoirados pelo calor.

A finalizar, o retorno ao Cont'nente, ainda por Ponta Delgada, lugar proibido pelo Covid, abriu-se numa longa chama de saudade, que os Açores valem muito. Mesmo muito. Muíssimo.

 

A vaguear pelos Açores (IX) - As Lages do Pico

João-Afonso Machado, 22.04.21

Então a minha vida tornou ao litoral, na direcção nordeste. Era outra vila, outro concelho. O das Lages do Pico.

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Pelas poucas informações obtidas - sou nada de prospectos... - iria dar de chofre com a (por excelência) comunidade baleeira da Ilha. Um pouco de Passado: quanto creio, a caça dos grandes cetáceos foi inovação dos americanos, fortuna do século XIX e aviamento do seguinte. Depois, a razoabilidade deu-lhe fim, que a extinção dos cachalotes ninguém beneficiaria, argumento da Natureza turisticamente muito válido. Quanto creio, as baleias são agora apenas um recreio para os olhos dos visitantes, e a sua caudal o ex-libris do Pico.

É claro, jamais me considerando um passageiro dessa estirpe, sofro sempre da ardência da vista, mesmo porque os meus dias não conseguem parar quietos. Resta o sentir. E o mutismo das Lages do Pico tudo me contaram, a vista das águas e do porto também.

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Aquela absoluta quietude vinha com os ecos dos derradeiros botes. Peles queimadas aos remos, ditos suados por o esforço que ainda falta... A minha mente só haveria de se abrir à imaginação e às leituras. As Lages dormiam sobre a sua eferverscência de antigamente.  Nas almofadas da História... E a tarde podia ser apenas isso. Mas havia de furar ou pouco mais essa ausência de gentes, fortuna minha.

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Assim me dei à vadiagem, ocupação de uns quantos, somente. A inicial descoberta: a ermida de S. Pedro, quatrocentista, dita a primeira na ilha e com nome grafado pelo seu primeiro pároco, Pedro Guerreiro (sem dúvida um algarvio), que trouxe consigo as vides dos primórdios do verdelho de aqui.

Coleccionei, nas lojas de artesanato, peças esculpidas em ossos de baleia... e de vaca. Corri essa vila sem vivalma. Fotografei.

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Não me confrontei com monstros (este é o capítulo da arquitectura). Casario chão, viaturas só por acaso.

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Ruínas armoriadas porque ninguém é perfeito... Ruas estreitas, amigas, fazendo vénia a esse nosso gosto de andar no meio delas. E muito, muito, para ver em tão exíguo lugar.

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De restaurantes não me apercebi. De comércio quase também não. Somente, bem firme, uma vida segura para além do movimento. Talvez não tenha esquecido o Céu da minha Fé, assim mesmo, - quieto, insólito e real.

Era um primeiro dia. Com a boca tão aberta que eu havia de me comprometer com dias seguintes... Talvez aquando da volta dos piratas e das mulheres de má vida, galeões ao largo, um instante de bagunça e de Tortuga portuguesa.

 

A vaguear pelos Açores (VIII) - A Montanha (Pico)

João-Afonso Machado, 21.04.21

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O fantasma agitava-se e era visível, sobretudo ao anoitecer, ainda na Horta. Mas chegara o momento de o sentir mais perto, mesmo de tocar nele. Na Madalena, aluguei um carrito e fui por aí fora, nesse intuito. Fatalmente, seguindo o trajecto da Longitudinal.

É claro, não demorou a grande subida. O Pico não tem dimensão para cordilheiras, serras após serras, entre as quais há o cume pujante, a marca maior de altitude. Afinal, a Montanha é essa elevação inconforme, ultrapassando os 1300 metros, a maior em todo o Portugal, um despropósito rodeado pelo oceano.

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Muito no início da escalada, o verde dos pastos, os muretes basálticos e água escorrendo, porque era ainda o tempo dela. Mais para riba, sinais de vida pastoril, a estrada comprimida pelo gado, a moçoila a conduzi-lo...

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Parei no paleio com a rapariga. Se poderia passar.... (Ela desconhecia o Soajo, o Barroso, os cornos do gado de lá, maiores do que as armas dos elefantes...) Porque não queria riscar o carro, mais a mais não era meu...

Que fosse à minha vontade. Somente não buzinasse, para não assustar as vacas... (Equídeos não havia - longe, pois, o risco da parelha de coices na chapa da máquina.) E mais coisa e tal, era aquilo, o pasto e o olhar nos animais, - Faça o Sr. uma boa viagem - Obrigado, minha amiga, até um dia!...

Hão existe no mundo inteiro gente mais afável! Prossegui a subida, espreitando a Montanha, que assim os locais lhe chamam, a essa imensidão

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quase sempre escondida entre as nuvens, outras vezes dando um ar da sua graça, neve plantada em pleno Atlântico, sonho íngreme de pernas de infantaria

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raramente marchando sem barretina. Neste mundo vil de programas e horários, mais não podia ser. Já no balanço para o outro lado do Pico, um derradeiro olhar

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e a cidade da Horta, ali na casa vizinha. Era um rodopio, desses que não sossegam sem mostrar novos ângulos, outras sensações, pequenas notas na vastidão do mar. Quase por maldade..., como se a obrigar-nos a regressar, nunca é demais para nos entranharmos nestas terras, tão pequenas, tão misteriosas e tão profundamente apelativas.

 

Quem seria a fadista?

João-Afonso Machado, 18.04.21

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Conheci o amigo Sidónio... em Xixón, ambos lá por razões diversas, mas cada um vendendo o seu peixe: eu a poesia, ele numa comandita do fado. Hóspedes do mesmo hotel, em que as histórias iam e vinham numa conversa fiada. Trazidos, os dois, pelo meu editor, homem das Letras e também da fadistagem.

O Sidónio não gostava de palcos grandes. O Teatro Jovellanos, a plateia inteira, deixavam-no pouco à vontade. E a sua guitarrra brilhava mais no botequim após, entre tortillas, muita cidra e boa camaradagem. Era, outrossim, quando eu saía da minha casca. Capaz de dizer mais do que as merdices das conferências...

E, criada a precisa confiança, morriam todas as confidências: o Sidónio falava da vida, saíam de enxurrada tantos episódios como o dessa fadista.

Não me façam perguntas: eu nunca soube quem era a moça (porque moça era), nem onde vivia ou cantava. Não venham à mente o Bairro Alto, Alfama, a Mouraria... Não, não estaria em Lisboa, apenas pelas redondezas. Em um lugar qualquer, sem luzes nem ribalta. Onde se petiscavam azeitonas, broa de milho e pataniscas, com leite-creme para disfarçar o hálito, e fartos jarros de vinho de Setúbal, mistura de castas doces e afrutadas. Um átrio de partida para a poesia dos poetas...

Uma voz, então, anunciava a fadista e um foco de luz dava-lhe imagem. Os presentes perfilavam-se em sentido. A ausência de lantejoulas, a sua chegada insonora, chamavam todo o fado antigo, o fado do tempo dos faias genuínos...

Ela, entrando, dizia apenas - Boa noite! - numa voz quase calada e, com as mãos nos ombros dos músicos, como que os beijava com o maior carinho. Depois, cantava.

Cantava, jamais gingava. Alta, vestida de negro até aos pés. Acrescentava o Sidónio, sem gestos. Nem saltos altos, adornos quaisquer. Lá esticava o pescoço no final do fado, mas desenrolá-la do xaile, isso ninguém. Os braços não se lhe abriam, antes afagavam o seu coração... E com frequência o olhar vinha ao chão, durante os acordes mais doridos. Era o passado, a sua vida correndo na poeira do abrigo, partículas de dor, arejos de esvoaçar. Porque a fadista cantava apenas versos seus, as suas desilusões.

A viola só dizia sim e não, consoante a mandava a guitarra do Sidónio, que se torcia, tocava tristezas, agudava instantes breves e alongava-se em males. A - já para mim querida - fadista arrastava palavras lentas ditas para todos, mas só do seu ser.

E a assistência calada, absorvida nessa plangência. Nunca era dia de festa - apenas de fado.

Vinham mais jarros de vinho, canecas dele, às mesas. Houve alturas, recordava o Sidónio, tantos intentaram uma aproximação, um beijo, um dito apenas, uma esperança para amanhã... Com propósitos só de consolo, até.

Mas a longa cabeleira negra da fadista já tinha ido embora. Surripiadamente, com um cigarro na boca, a vestimenta preta roçando o soalho, e não se sabe se um sorriso na alma, levando consigo um cálice de Porto.

O mais é só meu, da minha cabeça. Vejo-a de mãos na cinta. Vislumbro ritmos lentos e uma voz dorida, um nada corroída. Feições lindíssimas, mas quase submetidas ao destino. A sua vivência bem latente no olhar negro, luzidio, porventura esperançoso. Uma escuridão que havia de ser um vazio a preencher, mas ela não descobrira por quem. O seu sorriso, o encanto maior, falares para quase nenhuns. Seria eu capaz?...

Eis ao que não sei responder. As Astúrias foram uma estadia breve, os arredores de Lisboa longuíssimos. Os meus dias, uma caneta a espreitá-los, uma passagem para aqui ou para ali. Ficou o sonho... Mesmo porque o Sidónio, pouco depois, morria subitamente - pobre Sidónio, que noitadas destas, a fio, pagam-se caro...

(E, em devido tempo, lhe prestei homenagem - https://jamachado.blogs.sapo.pt/homenagem-a-um-artista-353691)

 

A vaguear pelos Açores (VII) - O derby local

João-Afonso Machado, 17.04.21

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Foi numa manhã de absoluto silêncio, nos meus passeios pelas ruas...

Quase chegado ao porto de mar e ao estaleiro, inesperadamente, esse ruído inconfundível, as palmas, os "vivas" e os assobios, o gáudio, o clamor... E um súbito cheiro a futebol. Olhei adiante e logo dei com o dizer duma frontaria: Municipal da Madalena. Só. O barulho vinha de lá e o portal estava aberto.

Entrei, não havia quem me pedisse contas. Primeira nota: um relvado sintético. Elas, as equipas, fardavam de vermelho e negro-amarelo. Apurei então, os primeiros eram madalenenses, os outros das Lages do Pico. Apreciei devidamente os equipamentos, ambos com o respeito devido à originalidade. O jogo estava no fim e os locais acabavam de marcar o segundo, e decisivo, golo.

Como disse, entrei por ali dentro. O porteiro comia umas sandes encostado à bancada. O polícia de serviço olhou-me apenas como quem pensa - mas quem será este forasteiro? E eu auto-elogiei-me: seria, porventura, o primeiro continental a pôr o pé em tal recinto...

De futebol, propriamente, assisti sobretudo a um descomunal "tudo ao monte", com uma bola saltitando pelo meio.

Não demorou, ouviu-se o apito final. Não antes, um adepto gritara - É fora de jogo, Sr. Árbitro! - num tom que indiciava aqui a nada estavam os dois no café aos abraços, de volta de uns tremoços e umas minis. A turma dos da Madalena, os onze jogadores, atravessaram o relvado e deixaram-se ovacionar por uma numerosa claque de quatro um cinco membros. Oh! gloriosa multidão! Que apotéose! Enquanto isso, os lagenses recolhiam, macambúzios, aos balneários.

Deixei-me estar. Havia comentários de registo. Um qualquer madalenense foi comparado ao Luís Diaz do F. C. Porto. Não por outra razão senão por ser magro e despenteado. (Quanto isso me fez saudades do «Yazalde» do Souselas, que não acertava na bola mas equipava de verde-negro e era cabeludo até mais não...). Vi, ouvi e trouxe crença.

À saída, o rapazio do Madalena vinha já pelo passeio, em fato-de-treino com as namoradas em volta, muito apaixonadas. Camionetas? Não, o banho seria em casa. A almoçarada algures. Se calhar, com a malta das Lages... Tudo dispensando a cavalaria da GNR.

 

Por aí...

João-Afonso Machado, 16.04.21

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Talvez consigamos vir a ser um reflexo do que fomos, agora que somos todos meninos de fralda na cara.

Mas é estranho: será uma reflexão invertida, tão mais notória quanto menor a limpidez das águas.

Não poderemos mesmo voltar atrás no tempo? Tornarmos a ter futuro?

 

Desafio lápis de cor| O papel branco

João-Afonso Machado, 14.04.21

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A história tem, necessariamente, um fundo de verdade porque está contada no In Illo Tempore, de Trindade Coelho, e nas Memórias do Mata-Carochas, de Antão de Vasconcelos, embora com algumas nuances. Indo ao importante, tudo decorre na academia da Lusa Atenas e o seu personagem central é o poeta algarvio João de Deus, em simultâneo um taciturno, metido consigo mesmo, e um boémio de primeira água. Consoante lhe dava na tineta... A segunda interveniente era a belíssima Raquel, uma coimbrã amada por todos quantos fossem estudantes, a quem, aliás, o próprio João de Deus já dedicara alguns versos:

«Despe o luto da tua soledade/E vem junto de mim, lírio esquecido/Do orvalho do céu!/Tens nos meus olhos pranto de piedade,/E se és, mulher, irmã dos que hão sofrido,/Mulher, sou irmão teu».

Em Coimbra era assim. Afora as tainas na tasca das Tias Camelas, as tricanas e outras ainda, de calibre mais foleiro...

Sucede que a maravilhosa Raquel, ou um tal Sanches da Gama, estudante que a queria impressionar, deram em massacrar João de Deus para uns dizeres, um esboço qualquer, num album da menina. E insistiam, insistiam, insistiam, pela obra-prima.

João de Deus detestava pressas. Mas lá foi desenhando a carvão, para a Raquelinha, um Cristo crucificado.

E era tal o seu vagar que um dia, já em desespero, ou a musa estudantil, ou o Gama, indo a casa de João de Deus, e vendo o trabalho quase concluído, pegaram nele e foram andando.

O Poeta chamou o apressadinho personagem: que queria dar o retoque final... E, com uma borracha, apagou completamente o desenho, deixando a folha em branco, apenas com estes dizeres escritos:

Resurrexit non est hic

Pois se a Páscoa passara, Cristo já não estava na cruz! E essa foi a oferta do Poeta para a Raquelinha.

Digo eu (não Trindade Coelho, nem Antão de Vasconcelos) juraria que, nessa vitoriosa viagem do ressuscitado, algum dia vi Cristo à boleia de uma gaivota de papo alvíssimo...

 

(Desafio da Fátima Bento - https://porqueeuposso.blogs.sapo.pt/branco-hors-concours-498322)

 

 

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