A mó do Tempo
Recordo-a inteira, enorme, ainda telhada. E as paredes brancas, molduras de azul em volta das janelas e dos varandins, a grande portada cá em baixo dando directamente para a morte, ou para a estrada Porto-Braga, se preferirem.
O casarão, eu muito rapazinho, havia de ser antigo. Seguramente do tempo em que se ouvia o tropel dos cavalos, o chiar das atrelagens. E depois, quando um automóvel vindo para norte se fazia anunciar logo à saída da vila. Só para que as criancinhas residentes entre tanta dimensão não fossem esmagadas por quaisquer camião, tractor ou Fangios de ocasião
Não, aquele gigante, com a sua imensa mansarda, viveria no recato das bicicletas da gente de trabalho, vagarosas, pasteleiras, dos carros-de-bois para a feira, da mula do azeiteiro ou de alguma motoreta zumbidora. Conheci-a incorrupta e sem uma vidraça quebrada. Mas sempre desabitada.
O maior mistério: ninguém me sabia explicar o que fosse sobre os seus proprietários. E eu imaginava a Amazónia, uma família inteira dizimada pelas setas das zarabatanas, os meninos e as meninas depois chuchados como vulgares ossos de galinha.
Os anos não ficaram quietos e entraram a apoquentar o casarão: levaram-lhe o caiado, apedrejaram-lhe as janelas e, pouco a pouco, lhe surripiaram as telhas. A chuva tratou do resto: tectos, soalhos, só restaram as paredes. E mesmo estas, em noite já esquecida de tempestade coriscante, tombou-lhe a ventania toda a parte traseira. Sobrou a frontal, ainda pensei, à espera da próxima tragédia, um desabamento sobre quem passasse. Só para animar a malta...
Faltavam apenas os silvados a esconder caibros apodrecidos, urtigas a prevenir certas curiosidades. Mas eis que, postas por algum iluminado, ou trazidas na Primavera, se instalaram as glicínias. Astronómicas quantidades delas, hoje a segurarem as pedras aos seus lugares. E a festejarem a Quaresma, a Páscoa e o Pentecostes. À sua boleia seguem sempre, também, os reclames de algum comércio. Enfim, temos de ser uns para os outros...