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FUGAS DO MEU TINTEIRO

Imagens e palavras de um mundo onde há menos gente

FUGAS DO MEU TINTEIRO

Imagens e palavras de um mundo onde há menos gente

Desafio cartas no correio| Carta ao meu Filho

João-Afonso Machado, 11.04.21

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Meu querido Filho:

As saudades fazem-me a alma um reles músculo muito dorido. Há quanto tempo, meu Filho! Recuso as contas porque elas esbarrariam nas da minha idade, que ainda marcha bem ao som da mochila, mas já baqueia na traficância dos aeroportos.

O meu Filho permanece averso ao nosso Portugal: ao nosso Minho, à nossa Casa, aos nossos. E este pai, a quem tanto custa a falta dos Avós, idos um logo a seguir ao outro (oh! meu querido Filho, faz hoje três anos partiu o meu Pai, que desgosto!), em boa verdade vive com um buraco no coração que o Filho calcetaria, agora homem feito, aventureiro e destemido, o personagem de uma história de lés-a-lés, de ponta a ponta à boleia na Sibéria. Com a literatura de cada um (o classissismo versus o modernismo) posta em cima da mesa da varanda, e as ideias fluindo, fluindo, o jardim nesta altura primaveril, tudo num requebro de palavras as mais repousantes.

Por tudo, a minha imensa vontade de abraçar o meu querido Filho. E acabei resignado: se Maomet não vem à montanha, vai a montanha a Maomet. Esta montanha já gasta, de sedimentos que os anos erodem, é só fósseis de moluscos e plantas espalhados por aí. Tudo lápides de emoções que fraquejam, e de flores que se perderam. Assim Maomet, na sua puerilidade geológica, montasse o alvo corcel árabe e investisse Andaluzia acima, até terras de cá...

Mas ponto final em lamúrias e vamos a coisas práticas: a Sérvia. Andei bisbilhotando a Net e voos possíveis daqui só para Belgrado. (A Bulgária seria uma experiência interessantíssima, mas como tudo está actualmente, um senhor lusitano não se vai sujeitar aos caprichos desses bárbaros...). Portanto, Belgrado. E de Belgrado para Nis?

Deve haver avião. Mas a montanha nunca desgosta do seu sopé. Um ou dois dias em Belgrado, a travessia do país em comboio, a satisfação da minha imparável máquina fotográfica... Sobra o entendimento com essas misteriosas tribos balcânicas...

Meu querido Filho, envio este caligrafado para a última morada conhecida, na expectativa de que os os hunos não tenham chegado aí, nem o carteiro haja perecido congelado numa curva do trajecto mais íngreme. (E esteja lá, carregado de chapas ilegíveis.) Diga-lhe, ande o homem de saúde, venha voando com notícias do meu Filho. Elas urgem, que eu ainda passarei pelo quartel militar para uma breve reciclagem.

Assim o meu Filho venha ter comigo a Belgrado e ciceroneie a passeata!

Entretanto, para o meu querido Filho, um grande abraço, um beijo enorme e sempre a benção do 
Pai

 

(Desafio da Célia - https://raiosechuvas.blogs.sapo.pt/desafio-cartas-de-correio-quem-ja-238180)