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FUGAS DO MEU TINTEIRO

Imagens e palavras de um mundo onde há menos gente

FUGAS DO MEU TINTEIRO

Imagens e palavras de um mundo onde há menos gente

Quem seria a fadista?

João-Afonso Machado, 18.04.21

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Conheci o amigo Sidónio... em Xixón, ambos lá por razões diversas, mas cada um vendendo o seu peixe: eu a poesia, ele numa comandita do fado. Hóspedes do mesmo hotel, em que as histórias iam e vinham numa conversa fiada. Trazidos, os dois, pelo meu editor, homem das Letras e também da fadistagem.

O Sidónio não gostava de palcos grandes. O Teatro Jovellanos, a plateia inteira, deixavam-no pouco à vontade. E a sua guitarrra brilhava mais no botequim após, entre tortillas, muita cidra e boa camaradagem. Era, outrossim, quando eu saía da minha casca. Capaz de dizer mais do que as merdices das conferências...

E, criada a precisa confiança, morriam todas as confidências: o Sidónio falava da vida, saíam de enxurrada tantos episódios como o dessa fadista.

Não me façam perguntas: eu nunca soube quem era a moça (porque moça era), nem onde vivia ou cantava. Não venham à mente o Bairro Alto, Alfama, a Mouraria... Não, não estaria em Lisboa, apenas pelas redondezas. Em um lugar qualquer, sem luzes nem ribalta. Onde se petiscavam azeitonas, broa de milho e pataniscas, com leite-creme para disfarçar o hálito, e fartos jarros de vinho de Setúbal, mistura de castas doces e afrutadas. Um átrio de partida para a poesia dos poetas...

Uma voz, então, anunciava a fadista e um foco de luz dava-lhe imagem. Os presentes perfilavam-se em sentido. A ausência de lantejoulas, a sua chegada insonora, chamavam todo o fado antigo, o fado do tempo dos faias genuínos...

Ela, entrando, dizia apenas - Boa noite! - numa voz quase calada e, com as mãos nos ombros dos músicos, como que os beijava com o maior carinho. Depois, cantava.

Cantava, jamais gingava. Alta, vestida de negro até aos pés. Acrescentava o Sidónio, sem gestos. Nem saltos altos, adornos quaisquer. Lá esticava o pescoço no final do fado, mas desenrolá-la do xaile, isso ninguém. Os braços não se lhe abriam, antes afagavam o seu coração... E com frequência o olhar vinha ao chão, durante os acordes mais doridos. Era o passado, a sua vida correndo na poeira do abrigo, partículas de dor, arejos de esvoaçar. Porque a fadista cantava apenas versos seus, as suas desilusões.

A viola só dizia sim e não, consoante a mandava a guitarra do Sidónio, que se torcia, tocava tristezas, agudava instantes breves e alongava-se em males. A - já para mim querida - fadista arrastava palavras lentas ditas para todos, mas só do seu ser.

E a assistência calada, absorvida nessa plangência. Nunca era dia de festa - apenas de fado.

Vinham mais jarros de vinho, canecas dele, às mesas. Houve alturas, recordava o Sidónio, tantos intentaram uma aproximação, um beijo, um dito apenas, uma esperança para amanhã... Com propósitos só de consolo, até.

Mas a longa cabeleira negra da fadista já tinha ido embora. Surripiadamente, com um cigarro na boca, a vestimenta preta roçando o soalho, e não se sabe se um sorriso na alma, levando consigo um cálice de Porto.

O mais é só meu, da minha cabeça. Vejo-a de mãos na cinta. Vislumbro ritmos lentos e uma voz dorida, um nada corroída. Feições lindíssimas, mas quase submetidas ao destino. A sua vivência bem latente no olhar negro, luzidio, porventura esperançoso. Uma escuridão que havia de ser um vazio a preencher, mas ela não descobrira por quem. O seu sorriso, o encanto maior, falares para quase nenhuns. Seria eu capaz?...

Eis ao que não sei responder. As Astúrias foram uma estadia breve, os arredores de Lisboa longuíssimos. Os meus dias, uma caneta a espreitá-los, uma passagem para aqui ou para ali. Ficou o sonho... Mesmo porque o Sidónio, pouco depois, morria subitamente - pobre Sidónio, que noitadas destas, a fio, pagam-se caro...

(E, em devido tempo, lhe prestei homenagem - https://jamachado.blogs.sapo.pt/homenagem-a-um-artista-353691)