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FUGAS DO MEU TINTEIRO

Imagens e palavras de um mundo onde há menos gente

FUGAS DO MEU TINTEIRO

Imagens e palavras de um mundo onde há menos gente

Os "Liques" ameaçam a Galiza

João-Afonso Machado, 30.05.21

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Domingos da Silva Carneiro, um alfaiate famalicense que ingressou no Exército e foi destacado para a África dos tempos de Mouzinho de Albuquerque. Ganhou a Torre Espada na heróica jornada em que o seu Comandante, juntamente com mais alguns temerários, entraram na sanzala do soba Gungunhana e o aprisionaram. Ele - o Liques, assim era conhecido, - foi parte nessa aventura. Como, agora mesmo, os da nossa terra, a caminho de Melgaço, a vila portuguesa mais a norte.

Eu próprio - dizendo-me Cavaleiro da Ordem de Cristo - participei. O apito da partida foi dado muito cedo. Saímos aos pares (ou quase), desarmados de modernices nesse longo caminho de aventura e incognitude, sujeitos aos maiores percalços, dispondo somente do telégrafo ou de mensagens de fumo.

Mas fomos sempre tentando manter a caravana em boa ordem, não acontecesse os nativos atacarem algum isolado e o devorarem.

As milhas iam em crescendo: Braga, Vila Verde, o Pico de Regalados, Aboim da Nóbrega e a Ponte da Barca à ilharga...; e a subida do Soajo, íngreme, arfante... Os cavalos, ninguém sabia se aguentariam. Mas nós, os Liques, prosseguiamos.

Foi como enfrentámos o búfalo desses longes,

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que nem nada nos fez recuar.  Sequer sentimos a vertigem do Lima, tão lá no fundo.

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Este novo mundo enchia-se do amarelo das giestas e do granito descomunal da Peneda. Nos nossos olhos, o extase e o medo, porque a caravana havia de se manter unida. Ai de quem arreasse pelo caminho!

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Sempre firmes, sempre bem dirigidos pelo mais velho da armada, prosseguimos contra tudo e todos. Mesmo contra as pragas rogadas, já para não falar em tentativas de deserção, prontamente disciplinadas.

Assim passámos ao largo de Nossa Senhora da Peneda, sobretudo atentos ao austrolábio, e da entrada no Parque Nacional da Peneda-Gerês. Enfim, alcançámos Melgaço e adormecemos os cavalos.

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A tropa - os Liques -  chegara incólume: um Lancia Appia, um Austin Healey, dois MGA e um Alfa 2000. Essa a caravana. Sendo, afinal, a missão de calibre assaz maior: ordens expressas - trucidar, dar total sumiço à lampreia!

 

Zamora

João-Afonso Machado, 29.05.21

Entrámos, eu e o meu filho Bernardo, num cerco de avenidas indistinguiveis e de edifícios tijolados, numa típico modo de bandeira espanhola, sempre uma imagem de marca. Parámos no Turismo local, serviço prestimoso, que nos forneceu um mapa e muito amáveis instruções.O meu Bernardo perorando em castelhano, eu em português de boa lavra, que eles, vindo cá, ao nosso Portugal, também não se esforçam...

Entendemos-nos. E da Plaza La Farola seguimos para a zona histórica, com passagem por alguma parasitação na Plaza Alemania, onde ainda sobrevive a Ermida del Carmen del Camino, coitadinha, enforcada nas cordas da modernidade.

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Um mau começo. Mas lá nos entendemos a caminho da Zamora livre, ora pela Calle Santa Clara, ora pela Calle San Torcuato, ambas pedonais.

É um tempo de olhares cheios de edifícios quinhentistas.

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E de bom comércio e múltiplas plazas, cada uma com a sua crónica e monumentos a encher-nos a alma, sejam eles religiosos ou civis. Nos quais, nesta cidade já de tamanho adiantado, as cegonhas continuam a nidificar nos lugares mais altos.

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De pé firme, passámos a Plaza de Santiago,

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a Plaza de la Constitución,

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e a Plaza Mayor,

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finalmente atingindo a Plaza Viriato, um designativo de todos nós, peninsulares.

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Sempre subindo a História. A Plaza de San Ildefonso, o templo que a marca, também nos fala ao coração, - a Eclesia de San Pedro y San Ildefonso - a vir lembrar a freguesia do meu nascimento, com a vida a crescer (como eu me tornei velho) até às proximidades da culminância da urbe onde, se calhar contristadamente, Afonso VII de Castela reconheceu, mediante o célebre Tratado de Zamora, Portugal um país independente. Em consequência das façanhas do nosso primeiro Rei e dos seus guerreiros. - Nós somos livres e o nosso Povo é livre! - assim proclamou D. Afonso Henriques, o Fundador.

Tinha havido muita liça de permeio. Zamora é um ermo de palavras sobre tão capital assunto. Mas não deixa de trepar às suas barbacãs, onde provavelmente Castela se terá rendido a todas as evidências. E este é o único 5 de Outubro que Portugal há de celebrar.

Ficaram mais peugadas até lá: a Catedral de San Salvador e os "mil" sinos da sua torre mestra

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cujo início de construção remonta a pouco antes do Tratado, nata em idos das antigas invasões muçulmanas, velhinha, medalhada, quiçá a anfitreã das hostes do nosso primordial monarca. Se não ela, o castelo arriba,

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de qualquer jeito explicando aos castelhanos que nós eramos nós, e eles os outros. Foi como alcançámos, invadimos a fortaleza. E no seu cimo, comendo talhadas de melância, como os Ramires piratas seiscentistas (conta-nos Eça de Queiroz), gozámos el Duero, já mais próximo da Nação, tropeçando em açudes onde as cegonhas poisam e bicam o peixe.

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A vida nestas paragens é saúde. Quero dizer, é a paz (despida de tolices pseudo-filosóficas), quietude e remansos; é a beleza das águas, da sua limpidez e da sua força eterna.

 

Tordesilhas

João-Afonso Machado, 28.05.21

Os espanhois são desbragados. Poem nas paredes o que o pecado nos leva ao confessionário. Sem pudores, na calmaria das suas vozes castelhanas que ignoram o nosso imaculado português.

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Mas a gente sempre se vingou, com outro saber (esqueço agora Olivença...) e, ao menos, durante o nosso Reino, lá iamos papando esses malandros. Aliás, eles mesmo dão conta dessa comezaina.

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Tordesilhas, estive lá como se estivesse então...

 E dizia-me El-Rei - Machado, chegai aí o pergaminho, que eu assino já! - Ei-lo aqui, meu Senhor...

(Assim à pressa, não fossem os castelhanos dar conta, queríamos mais 370 léguas para ocidente de Cabo Verde, a fanar-lhes o bojo brasileiro, de mui grande proveito.)

O palácio em que os soberanos firmaram o tratado, partindo o planeta em dois, uma parte para Castela, outra para Portugal, ainda hoje o recordo, de caras para el Duero, vasto monumento de dimensões e memórias históricas

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Porém, Tordesillas és um pequeño pueblo. As suas noites são pacíficas

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e as nossas quinas - as quinas da bandeira nacional - ainda nela assomam sem cores garridas a roubar-lhes a solenidade.

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Vagueando por ali, damos ainda conta do célebre Tratado em que as duas potências negociavam terras e mares, talvez ao jeito pintado por alguém que fez ninho nos idos do imperialismo americano-soviético

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porque a vida também se faz das maiores imbecilidades, que hão de ser temperadas com o magnífico Real Mosteiro de Santa Clara, comemorativo da vitória do Salado, na qual os exércitos lusos de D. Afonso IV tiveram uma intervenção decisiva,

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sendo considerado um exemplar único da arquitectura mudejar em Castilla-Leon. (Fica já agendada uma próxima visita ao seu interior...) E mesmo com o falatório da Plaza Mayor, em maré de almoço, a mais propícia,

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senão mesmo com as vistas de el Duero, da sua grandiosa ponte românica, 

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já a dois dias de se transfigurar no nosso Douro, vinhateiro, electricista, barqueiro, rio de mil ofícios até se deixar entrar na sua foz, Portugal avante.

 

A sardinha à Portuguesa

João-Afonso Machado, 26.05.21

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Não há peixe mais português! Nem o velho bacalhau, pescado no friorento Mar do Norte e trazido para salgar, previlégio culinário nosso.

Mas com a sardinha tudo é diferente. Dos tempos idos ficou a moda da sua gordura, dela toda, em cima de uma fatia de broa, moda uma bocado sem jeito de a papar, dadas as cautelas com que hoje guardamos as unhas, o seu aroma, os abraços e os beijos às namoradas.

Ouvi dizer por aí, os óleos da sardinha são benéficos à saúde. Acredito. Mal fora, um peixe com quase mil anos de história portuguesa afinal nos maltratasse as entranhas. Porque o seu paladar é todo o memorial das nossas alegrias.

Apanhá-la... somente entre agora e o Verão, dizem-na a falhar no volume dos cardumes. Disso sei pouco, embora me pareça, a nossa costa está a saque... Sei, contudo, a alegria das redes quando a sardinha rabeia lá dentro, e os Santos Populares cavalgam para nós, no bordo das alegrias finais da Primavera.

Serão boas semanas. Assardinhadas quase todos os dias, regadas de pinga a condizer. Uma época festiva, a alegria nos restaurantes - Hoje há sardinha!

Aqui na Portuguesa é assim. Eu conheço os pormenores... O Sr. Martinho, madrugando, ainda o sol se espreguiça, já vai a caminho da lota de Matosinhos, apreça, discute, compra e traz. Pelo almoço, sem se dar por nada, as travessas chegam à mesa. Um regalo!

Somos o que somos e não havemos de esquecer aquele brilho azulado e esbranquiçado desta nossa menina, a rechinar na grelha, embrulhada em pimentos, num andor de batata cozida. Vão escamas, vai tudo! Da sardinha ficam a cabeça, a barbatana caudal e a espinha dorsal no fim do prato. O resto é o nosso ser de muitos séculos. Uma tradição. Em minha casa, do outro lado da rua, assada com todas as honras que lhe são devidas, por quem há muito lida com o peixe fresco - a Portuguesa!

(Os meses cavalgam. Antes que sobrevenha o aroma das rabanadas, é aproveitá-la, velha sardinha, petisco cá da gente, quase um brasão nacional.)

À boleia

João-Afonso Machado, 24.05.21

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Via-o, frequentemente, saindo logo de manhãzinha da sua villa magnífica, cujo giardiniere eu bem conhecia pela beleza da ragazza sua filha. Enfim, encontrávamos-nos, eu e ela, com assiduidade e bastante às escondidas...

Mas pontualmente o signore surgia no portão, o seu Lancia Appia roncando ainda mansinho, novo, acabado de sair dos catálogos, era uma das grandes sensações do ano e, neste 1954, outro mais não competiria decerto com ele. O rumo havia de ser o dos seus negócios em Roma, como confirmei dessa vez em que me ofereceu boleia.

Trajando com muita qualidade, penteada a rigor a sua cabeleira bem escorada em brilhatina, pró baixito mas cheio de actividade, conduzia assobiando, ambas as mãos no volante e uma velocidade constante. Tinha metido a terceira e a máquina avançava pujante.

Il motore ma que cosa meravigliosa! Che bel viaggio! E assim conheci e lidei com o novo Lancia Appia - eu e o carabinieri que, num apito estridentíssimo, o mandou parar e repreendeu al signore por causa da sua desabrida entrada na ponte Cavour, quase ceifando uma infeliz Piaggio -  Ma che fretta signore!...

 

O Penedo Durão

João-Afonso Machado, 22.05.21

Poiares, freguesia do concelho de Freixo de Espada à Cinta. Deixando a aldeia por caminhos complicados e amarelos das giestas. Sempre a subir até à grandiosidade dos penedos e à enorme varanda sobre o Douro Internacional.

A viagem remata-se num parque de merendas e em carreirinhos para o topo, um bloco granítico que os milénios de ventos e chuvas aguçaram como navalhas.

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São lâminas sobrepostas e apontadas ao céu. Muito ao fundo, o rio correndo do norte, de barriga cheia e luzídia e, decerto, alguma vaidade, tal a opulência das suas formas. Como se os cumes dos montes estivessem ao alcance da sua vontade, das suas águas dominadoras.

Mera ilusão! Diversão de quem espreita cá de cima: o Douro vai enganado, um pedaço adiante cancela-o a barragem (la presa) de Saucelle, aconteceu os espanhois deixarem-no engordar para lhe sugar energia hidroeléctrica e - somos todos testemunhas - do paredão o rio esguicha apenas, e num fiozinho se vai tentando recompor.

(Os rios são assim, nascem e renascem, jamais baqueiam - como as palavras dos homens - senão no lugar natural da sua morte, a foz: para onde, contra tudo e contra todos, deslizam sem desistir ou hesitar.)

Mas é um extraordinário momento de rocha e vegetação selvagem, somente com o incontável valor da monumentalidade e das formas cruzadas e coloridas! Distante da vida humana, cantorio de aves, suposição de feras de bom porte. Rapinagem de grifos, asas de envergadura que assusta, esbranquiçadas, voando muito abaixo do nosso poiso até ninhos inacessíveis, verdadeiros altares de necrofagia.

Na margem de lá, o vislumbre do povoado de Saucelle. Num face-a-face que o Douro vai eternizando.

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Portugal e Espanha. Dois universos?

Nesse dia, ambos o meu mundo. Quedo, coleante à moda dos cursos de água, amaldiçoando o betão entre a Natureza e de olhar consolado no planar dos grifos. Acalorado pela inevitabilidade das correntes que hão de chegar ao mar longínquo e sorrindo, em toda essa vastidão, ao dar com Nossa Senhora.

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A alva Nossa Senhora - aqui - do Douro. Como o é de tantos outros reinos onde o meu coração assenta e esquece tudo quanto o quotidiano tem de feio.

 

Freixo de Espada à Cinta

João-Afonso Machado, 21.05.21

O nome, parece, vem de um fidalgo - não se sabe quem, nem quando - que por ali adormeceu, certa vez, à sombra de um freixo enorme onde encostou a sua espada embainhada e cintada. E essa simbologia é bem evidente nos altos da vila, entre a torre do relógio e a igreja matriz.

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Freixo de Espada à Cinta é uma vila tanina. É a sede do concelho mais a sul do distrito de Bragança. Do lado de lá do Douro estamos em Espanha. E a torre do relógio (de marca Jerónimo e fabrico bracarense) é, supostamente, a do castelo cujas muralhas os arqueólogos intentam desenterrar com uma bravura medieval.

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Mas, a seus pés, o silêncio dos que por cá passaram e já partiram, montes fora, na infinitude do horizonte que cada um interpretará a seu gosto.

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Não obstante, Freixo de Espada à Cinta foi, ao longo da História, berço - imagine-se! - de mareantes e marinheiros grados. E, sobretudo, do poeta Guerra Junqueiro. A casa dos seus pais, comerciantes dali, é hoje ponto de atracção turística e cultural e memória da sua infância, talvez da sua maturidade também.

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De quando, já reconciliado consigo e com o mundo, cantava a sua Oração ao Pão:

«(...) Homem!/Vive por Deus!/Sofre por Deus/Morre por Deus!

E bendito serás na eterna paz,/Porque ao fechar os olhos teus,/Trigo de Deus, absorto em Deus descansarás!...»

Chegam entretanto, - profanamente, pecaminosamente - a estas paragens nacos suculentos da boa posta mirandesa, contrastando com tanta pureza e transcendência... Poisos para dormir é que são menos, quase nenhuns. A não ser, talvez, a vizinhança do pelourinho manuelino

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onde repousam os decanos da vila, em bancada de muitas notícias e um solzinho quente, o melhor bálsamo para o reumático.

 

Carrazeda de Ansiães

João-Afonso Machado, 19.05.21

Na casa dos trinta anos, as pernas lidavam de igual para igual com os socalcos e as maiores infestações de "sujo", as vinhas abandonadas nas margens íngremes e imensas do Douro. Não lhes tolhiam o passo os "mortórios" carregados de aramagem rasteira, em desuso e esquecida, tal a imparável ânsia das perdizes...

E era nas cercanias de Carrazeda de Ansiães, sempre, a abertura da caça, com longa e sinuosa viagem, de véspera, por Vila Real, Alto do Pópulo, Riba-Tua... Naquela idade a jantarada era de arromba, no restaurante do Sr. Paulo, e a dormida na única, tímida, casa que disponibilizava quartos, a 500$00 a noite, um monopólio do Sr. Pereira.

(Com o andar do tempo, os trilhos da caça levariam o secular grupo de parceiros e amigos para terras muito diferentes, as do Alentejo...)

Assim agora voltei a Carrazeda. Sede de concelho, mas vila muito simplória e despretensiosa, onde as éguas entram de tarde em trabalhos de parto, aguardando tranquilamente quem as auxilie, mesmo junto ao casario.

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E, enquanto almoçava umas pataniscas, fui inquirindo sobre essas antigas eras, em que em Carrazeda não havia pizzarias, apenas uma «Pisseteria»...

Do Sr. Pereira, as notícias, sinistras, tinham chegado ao Litoral. Idoso, sozinho, não obstante a abastança, um dia a tristeza, o desespero, o poço dos seus quintais... Enfim, tinham dado com ele em tais águas, sem vida já.

O Sr. Paulo ainda está entre nós. Numa cadeirinha de rodas, após tremendo acidente rodoviário. Mas o seu estabelecimento continua de portas abertas ao público!

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(Entrementes, aproximou-se um velho caçador local, sentou à minha mesa e a conversa demorou-se em saudosas recordações sobre os idos em que não faltavam perdizes e coelhos a enfeitar os ganchos das cartucheiras...)

Carrazeda de Ansiães cresceu, como não podia deixar de ser. Eu diria dela uma vila em reconstrução, a não desperdiçar antigas edificações que o destino deixou cair na ruína.

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É a mesma a pacata Matriz onde iamos à missa, talvez sem grande entusiasmo, mas acompanhando o decano do grupo, escrupuloso cumpridor do preceito dominical.

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Assim também com o seu jardim público, fresco momento entre a secura transmontana.

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Ou com a misteriosa casa na curva do adeus, - hoje o Café Curva - a história por descobrir de alguém mais afoito que um dia se bandeou para o Brasil e voltou com uma mansarda das gordas e macróbias.

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Como não era a, de curta duração, garrafa que o Sr. Paulo nos apresentava na mesa, após o jantar, proclamando - Srs. Drs. está aqui o verdadeiro scotch! - E a famigerada ia toda, na voracidade dos nossos trinta anos, madrugada fora, três horas de sono para uma maratona alvorecendo a sonhar e a correr socalcos e socalcos e socalcos.

 

"Instantes sem tempo"

João-Afonso Machado, 15.05.21

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Longos passos de um cristal limpo.

Espera e ansiedade, o coração no limite

da impureza do sangue transparente e rasgado na dor

dos elos alados esvoaçantes.

 

Três poluentes dias.

Em bocados caindo de horas doridas

de espadas entre o pó e os precipícios onde morrem ilusões

e se erguem fantasmas vingadores de toda a incredulidade

(mesmo arrependida).

 

Uma tarde engasgada de sol e chuva.

No insensível pavimento das ideias

pequenos derradeiros afazeres em lugar meu, vislumbre de terra fértil,

e lápis que é carvão e vontade e arauto-eco

dos modos exactos de uma emoção.

 

 

A heróica Portuguesa

João-Afonso Machado, 13.05.21

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Espreito-a da varanda da minha casa e recordo tempos aparentemente idos - os do famigerado confinamento. Porque por aqui falham os entendedores de culinária, o frigorífico somente dispunha de quaisquer coisinhas para as emergências... Mas do outro lado da rua, a emérita Portuguesa, o restaurante vizinho, o risco diário de uma corrida atravessando o asfalto, rajadas de coronas, os regimentos covid de tocaia até ao take-away salvador.

E regressava pelo mesmo caminho, outra vez sob um chuveiro virulento, a máscara agarrada à boca, em ziguezagues no alcatrão, trazendo a vitelinha assada e uma garrafa de vinho.

Assim todos os dias e semanas, sujeito ao fogo cerrado do inimigo, aplacado depois, já na trincheira, pela vitelinha ou por uma coxa de frango.

E a Portuguesa sempre no seu posto. Infelizmente sem argumentos bélicos, como deles dispôs a Padeira de Aljubarrota, mas audaciosa, dotada de resistência, e da perspicácia de uma Deuladeu Martins face aos sitiantes.

Sobreveio a paz (ou tréguas somente?). O inimigo retirou das ruas e houve estralejar de foguetes. (Conquanto recomendassem prudência por causa dos sempre traiçoeiros snipers...) A Portuguesa escancarou as portas triunfalmente. Tudo, ou quase tudo, voltara aos velhos tempos, sobretudo o peixe grelhado, o arroz de polvo, sempre muito quentinhos no prato à nossa frente.

A D. Alexandrina, o Sr. Martinho e o seu estado-maior tinham resistido. E libertado, enfim, o bolo de bolacha, os bolarecos e os bolaricos, o salmão, o besugo e os verdinhos, mais o combustivel, o alavanca da última colheita.

A Pátria estava salva! Obrigado Portuguesa

 

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