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FUGAS DO MEU TINTEIRO

Imagens e palavras de um mundo onde há menos gente

FUGAS DO MEU TINTEIRO

Imagens e palavras de um mundo onde há menos gente

Um minhoto na Capital

João-Afonso Machado, 01.05.21

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A brincar, a brincar, vai lá uma década! Como o tempo corre, parece ter sido ontem a minha estadia em Lisboa no quartinho ao Campo das Cebolas, a sua dona tão amável, soube há pouco, sucumbira à famigerada covid, coitadinha! Que impressão!, nunca a senhora me falara em familiares, como teriam sido os seus últimos dias, onde repousaria agora?, que eu lá iria a uma visita, um pensamento mais perto pensado...

Então, as minhas deslocações diárias à Torre do Tombo, o eléctrico (o bintóito) propositadamente apanhado para me cruzar com ela: sempre arisca, a pequena, sempre cheia de energia e projectos, sempre defensora de causas agitadas pelo tinir das suas pulseiras. Loirinha, de magnífico torneado.

Custou aceitar, não era menina de se lhe deitar a mão. Mas fomos criando essa amizade com o seu quê de áspero, rematada em fugidios beijos de despedida.

Agora mesmo, invariavelmente envolvido em investigações locais sobre a minha terra, que em absoluto dispensa a Torre do Tombo, vou com alguma regularidade a Lisboa, a visitar os amigos e um ou outro conspirador monárquico, conquanto já não vá nessas balelas da sedição dos quarteis. Ah!, esquecia-me: tenho um telemóvel e assim manifesto à minha amiga um Feliz Natal, uma Santa Páscoa (ela o "Santa" chuta para fora), os parabéns, quando faz anos (do meu aniversário, invariavelmente esquece-se...), e a convido para jantar, se estou na Capital.

Isso aconteceu recentemente, já depois do desconfinamento, num restaurante enorme das Docas, quase vazio, uma pequena fortuna a debitar no meu cartão de crédito...

E não pude deixar de sorrir ao recordar o nosso primeiro jantar. Ainda no tempo do quartinho no Campo das Cebolas. A minha amiga muito empenhada em ensinar-me a estar à mesa; eu forçando uma certa boçalidade provinciana, só porque me sabiam bem as suas mãos nas minhas, a quente fragância do seu perfume (também sei dizer estas coisas) a rondar-me o nariz... Enfim, tão completa massagem espiritual.

Mas não deixei, então, de lhe dar a sapatadita com luva branca: muito esticadinho e em tom discretíssimo, chamei o funcionário - que tirasse de cima da mesa a garrafa do, aliás excelente, tinto alentejano e trouxesse um apoio lateral para a mesma; em alternativa, cumprisse a sua missão de vaivém, a cada vez que os copos necessitassem de recarga.

Ele, muito atencioso, aquiesceu com uma vénia quase. Ela apercebeu-se. Eu nada acrescentei. No entanto, aquelas pulseiras não mais tilintaram essa noite, como num silêncio de quem está na ressaca do Santo António.