Que surpresa!
Quando a topei, já nem lembro onde, custou a acreditar! Mas era verdade, verdadinha, a matrícula confirmava-o. A minha velha Opel, vendida na sucata, que eu definitivamente julgava esprimida, torcida, reciclada, transformada em centenas de latas de salsichas, circulava ainda, toda loira e muito cromada.
Vi-me em rapaz solteiro a fazer as terras do meu Pai. Com o meu irmão, três anos mais novo, já destinado a doutor médico, mas dando ainda uma mãozita a ajudar. Sobretudo em dias de feira, de muita hortaliça a levar à vila, que a horta era rica e farta - tanto que o velhote lá acabou comprando a carrinha, até fui com ele ao stander, assarapantado com as duzias de notas de mil que ele desenrolou de um elástico no bolso. A carta de condução, tirara-a eu na tropa em África...
Até na maré de comprar a leitoa na feira! A ser criada, engordada com lavadura e emprenhada, como qualquer outra marrã. Vendida a ninhada, que ainda rendia uns bons centos de mil reis, lá vinha a faca, goelas acima, arte do Se'Lino, e aquele berreiro de condenada a acordar a vizinhança toda. Chamuscada, pendurada num gancho do tecto da adega, cortada em pedaços... Dia de festa, vinham os compadres do meu Pai a dar uma mão, aquilo era fartura - a lavar tripas para o fumeiro, salgar presuntos e assar lombo e rojões, com muita rega do garrafão ao jantar. Até o néscio do meu irmão não dizia não, e se lambuzava de boas carnes.
(Um panão! Parecia sempre com medo de segurar a leitoa e enfiá-la na mala da carrinha - Ó Zeca, meu murcon, agarra-a pelas patas, firme, isso mesmo, junto aos presunhos, olha que a reca não te morde!...)
E a minha Opel foi ajuntando cheiros e riscos na chapa, a poeira toda dos campos dentro dela. Desgraçada suspensão, nos buracos dos caminhos, quanto chiava já da coluna e do reumático! Chegou a sua horinha, com muitos anos de serviço às costas; eu casado e a vida a correr bem, sempre comprei uma das modernas, a gasoil.
Agora revejo-a fina, pintadinha, a bater no olho de quem passa. Isto é carro de andar em exposições e desfiles, saiu-lhe a sorte grande, deve dormir bem acamada numa garagem, está melhor do que quem a ensinou a andar!