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FUGAS DO MEU TINTEIRO

Imagens e palavras de um mundo onde há menos gente

FUGAS DO MEU TINTEIRO

Imagens e palavras de um mundo onde há menos gente

O sabotador fugitivo e os males de uma pena

João-Afonso Machado, 11.05.21

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A situação é gravíssima e o tinteiro impõe-me uma escrita vagarosa, pensada, e a pena hirta, meditando a cada mergulho na tinta. Hoje utilizar a esferográfica seria um ultraje à moral da minha castelania.

E foi ele, mafarrico, o vilão. Ele e as suas tropelias no tapete do hall da entrada, a água derramada para as limpar e os tacos todos levantados pela humidade. Ele é esse gato insuportável que me acorda às seis da manhã para o acompanhar ao prato da comida.

Chegou, entretanto, o artista da arte, com os mais pessimistas prognósticos sobre o desfecho da obra. O gato na cozinha, incomunicável, o dia todo na solitária. Aliás, aterrado com o barulho da rebarbadora.

Categoricamente expliquei: trata-se apenas de recolocar os tacos: empenados, desenvernizados, assim fiquem colados ao cimento e o escondam. Um tapete por cima encarregar-se-á do restante. Mas a empreitada reclamou já o aspirador, a pá e a vassoura,  até um secador de cabelo que anda para aí.

Devo ter para o dia inteiro... (A pena, quase afogada no tinteiro, regressa ao papel, onde se arrasta pesarosa, eu diria moribunda...) Trespassam-me sonhos de um belo peixe grelhado ao almoço, quando a realidade será um passeio ao Multibanco para pagar o serviço. Tremenda sexta-feira! (A pena chora sobre o escrito e o domingo promete chuva.)

Assim o infernal gato vai gozando uns raiozitos de sol deitado em cima da máquina de lavar roupa. Ou não!!! - vêm agora dizer-me que se evadiu audaciosamente para baixo da cama.

(A pena exala o último suspiro. Foram chamados os bombeiros para procurar o seu bico - o seu cadáver - na negrura sem fundo da tinta. O gato killer matara outra vez...)

 

"Soneto da giesta"

João-Afonso Machado, 08.05.21

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Vamos primavera, vamos em festa,

Encanto do sol nosso, meu nascente,

E vivamos de alma sempre presente,

Mil pés e outros mil, de tanta giesta.

 

Abre-te primavera, anda, sê lesta,

Sol a crescer, estrela e luz dolente,

Deixa vincos, deixa vida – mas sente

A tua marca neste mundo, a tua gesta.

 

Sorri, por fim, primavera descansa:

Virão tempos, tempestades, desgraças,

E depois a vida que vem e avança

 

Em ruas e vilas, na nudez das praças,

Flores do campo, amarelos em trança,

Giesta aos molhos as portas abraças.

 

 

 

Que surpresa!

João-Afonso Machado, 06.05.21

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Quando a topei, já nem lembro onde, custou a acreditar! Mas era verdade, verdadinha, a matrícula confirmava-o. A minha velha Opel, vendida na sucata, que eu definitivamente julgava esprimida, torcida, reciclada, transformada em centenas de latas de salsichas, circulava ainda, toda loira e muito cromada.

Vi-me em rapaz solteiro a fazer as terras do meu Pai. Com o meu irmão, três anos mais novo, já destinado a doutor médico, mas dando ainda uma mãozita a ajudar. Sobretudo em dias de feira, de muita hortaliça a levar à vila, que a horta era rica e farta - tanto que o velhote lá acabou comprando a carrinha, até fui com ele ao stander, assarapantado com as duzias de notas de mil que ele desenrolou de um elástico no bolso. A carta de condução, tirara-a eu na tropa em África...

Até na maré de comprar a leitoa na feira! A ser criada, engordada com lavadura e emprenhada, como qualquer outra marrã. Vendida a ninhada, que ainda rendia uns bons centos de mil reis, lá vinha a faca, goelas acima, arte do Se'Lino, e aquele berreiro de condenada a acordar a vizinhança toda. Chamuscada, pendurada num gancho do tecto da adega, cortada em pedaços... Dia de festa, vinham os compadres do meu Pai a dar uma mão, aquilo era fartura - a lavar tripas para o fumeiro, salgar presuntos e assar lombo e rojões, com muita rega do garrafão ao jantar. Até o néscio do meu irmão não dizia não, e se lambuzava de boas carnes.

(Um panão! Parecia sempre com medo de segurar a leitoa e enfiá-la na mala da carrinha - Ó Zeca, meu murcon, agarra-a pelas patas, firme, isso mesmo, junto aos presunhos, olha que a reca não te morde!...) 

E a minha Opel foi ajuntando cheiros e riscos na chapa, a poeira toda dos campos dentro dela. Desgraçada suspensão, nos buracos dos caminhos, quanto chiava já da coluna e do reumático! Chegou a sua horinha, com muitos anos de serviço às costas; eu casado e a vida a correr bem, sempre comprei uma das modernas, a gasoil.

Agora revejo-a fina, pintadinha, a bater no olho de quem passa. Isto é carro de andar em exposições e desfiles, saiu-lhe a sorte grande, deve dormir bem acamada numa garagem, está melhor do que quem a ensinou a andar!

 

Dias desmascarados

João-Afonso Machado, 04.05.21

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Agora é o auge da mansidão do sol; e do tempêro das chuvas, apenas uns pingos, uns breves instantes de rega. Onde não esteja a verde monotonia dos prados, esperando a guilhotina breve, reina o multicolorido sem vasos nem dono. Por quantas leiras fora, as tréguas primaveris, tons e flores obedecendo somente à Criação. É a sua vez: que a gozem rebrilhando sempre....enquanto o céu não esquenta, as nuvens emigram e os solos torram sem defesa.

Descemos o vale, fomos ao topo da colina de lá, e regressámos no silêncio granítico da aldeia do monte. Os cães, esquecidos das codornizes, dobravam a pata dianteira ao zumbido dos abelhões, ou cheiricavam as borboletas jamais quietas, mas indiferentes, muito caladinhas a esvoaçarem os seus véus.

O supremo congresso floral está aí. Já chegaram quase todos os congressistas: restam alguns arroxeados a emparceirar com os amarelos. E os convidados especiais - as lagartixas, os magnos sardões de boca abrindo e fechando em banho-maria solar - foram tomando o seu assento nas pedras dos muros.

Os dias estão em paz. Neles passeio de mão dada, embalados pela magistral orquestra dos grilos e das rãs, lá longe. 

 

Por aí...

João-Afonso Machado, 03.05.21

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Entre videiras prenhas, como um cão abandonado, os restos mortais do granito e alguns ossitos seus segurando cacos de telhas. Apenas a porta do jazigo era sumptuosa, em chapa de zinco. 

Ouvi-a ranger, só poderia ser um fantasma. Fugi. Talvez regressasse com cereal de viva cor e outras ladaínhas, para de uma vez o afastar.

 

Um minhoto na Capital

João-Afonso Machado, 01.05.21

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A brincar, a brincar, vai lá uma década! Como o tempo corre, parece ter sido ontem a minha estadia em Lisboa no quartinho ao Campo das Cebolas, a sua dona tão amável, soube há pouco, sucumbira à famigerada covid, coitadinha! Que impressão!, nunca a senhora me falara em familiares, como teriam sido os seus últimos dias, onde repousaria agora?, que eu lá iria a uma visita, um pensamento mais perto pensado...

Então, as minhas deslocações diárias à Torre do Tombo, o eléctrico (o bintóito) propositadamente apanhado para me cruzar com ela: sempre arisca, a pequena, sempre cheia de energia e projectos, sempre defensora de causas agitadas pelo tinir das suas pulseiras. Loirinha, de magnífico torneado.

Custou aceitar, não era menina de se lhe deitar a mão. Mas fomos criando essa amizade com o seu quê de áspero, rematada em fugidios beijos de despedida.

Agora mesmo, invariavelmente envolvido em investigações locais sobre a minha terra, que em absoluto dispensa a Torre do Tombo, vou com alguma regularidade a Lisboa, a visitar os amigos e um ou outro conspirador monárquico, conquanto já não vá nessas balelas da sedição dos quarteis. Ah!, esquecia-me: tenho um telemóvel e assim manifesto à minha amiga um Feliz Natal, uma Santa Páscoa (ela o "Santa" chuta para fora), os parabéns, quando faz anos (do meu aniversário, invariavelmente esquece-se...), e a convido para jantar, se estou na Capital.

Isso aconteceu recentemente, já depois do desconfinamento, num restaurante enorme das Docas, quase vazio, uma pequena fortuna a debitar no meu cartão de crédito...

E não pude deixar de sorrir ao recordar o nosso primeiro jantar. Ainda no tempo do quartinho no Campo das Cebolas. A minha amiga muito empenhada em ensinar-me a estar à mesa; eu forçando uma certa boçalidade provinciana, só porque me sabiam bem as suas mãos nas minhas, a quente fragância do seu perfume (também sei dizer estas coisas) a rondar-me o nariz... Enfim, tão completa massagem espiritual.

Mas não deixei, então, de lhe dar a sapatadita com luva branca: muito esticadinho e em tom discretíssimo, chamei o funcionário - que tirasse de cima da mesa a garrafa do, aliás excelente, tinto alentejano e trouxesse um apoio lateral para a mesma; em alternativa, cumprisse a sua missão de vaivém, a cada vez que os copos necessitassem de recarga.

Ele, muito atencioso, aquiesceu com uma vénia quase. Ela apercebeu-se. Eu nada acrescentei. No entanto, aquelas pulseiras não mais tilintaram essa noite, como num silêncio de quem está na ressaca do Santo António.

 

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