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FUGAS DO MEU TINTEIRO

Imagens e palavras de um mundo onde há menos gente

FUGAS DO MEU TINTEIRO

Imagens e palavras de um mundo onde há menos gente

Momentos raros, imperdíveis

João-Afonso Machado, 29.06.21

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Voltei à leitura de António Santos Graça (1882-1956), o autodidacta empregado de balcão, talvez o maior estudioso e conhecedor das gentes poveiras de antanho. Chama-se o livro Epopeia dos Humildes e todo ele é uma compilação de angústias da comunidade piscatória e dos feitos dos seus heróis, os mestres (lobos do mar, pescadores lanchões, Homens de Respeito da Classe) salva-vidas, arrais de embarcações - lanchas - movidas a dezasseis remos sempre atentos à frequência dos dramas ocorridos na passagem da barra.

O "Tio" isto, o "Tio" aquilo. Acima de todos, a figura gigante do Cego do Maio, a quem El-Rei D. Luís condecorou com a Torre Espada, tantas as proezas desse que foi o maior expoente das temeridades salvadoras.

Os pescadores desses tempos viviam nos bairros a sul da então vila. E a pesca era para eles viver, por ser o seu sustento... - e morrer na braveza das águas. Ou sobreviver, logrando os salva-vidas roubá-los às vagas, às correntes e às penedias.

O livro é bem o sentir de quem presenciou assiduamente o terror e a impotência nos areais, a invencíveis dezenas de metros da desgraça de quem o mar tragava diante dos olhos dos próprios familiares.

Hoje não será assim, pertencem ao passado os remos e as velas, mesmo a escuridão das noites de tempestade. Hoje... outros furacões invadem a Póvoa de Varzim, furacões estivais levando de roldão todo o bom gosto, toda a serenidade. A pesca motorizou-se, a baía foi construída e, por vezes, o sol, antes de adormecer no horizonte, presenteia-nos com memórias e histórias na silente quietude da sua generosidade.

 

Reflexões ferroviárias

João-Afonso Machado, 27.06.21

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A locomotiva ganhava pressão. O fumo da sua chaminé, soprado forte, anunciava para breve a partida. - Um bilhete em 3ª, fax'avor... - que os bancos de pau não doíam e estava-se no Verão, os varandins da carruagem deixavam o braço esticar, nas arfantes subidas da máquina, e as uvas das ramadas marginais eram o lanche. Tempo de praia, a mochila carregava todo o guarda-roupa e a cana de pesca também. Numa temporada balnear sempre com as mesmas calças, as botas da tropa e tardes e curvas alucinantes - à Giacomo Agostini - na Solex. Afora a fuligem na cabeleira, ao descer as escadinhas do vagão, vida mais limpa não existiria...

Sobreveio a cidade, os seus arredores. As saídas pós jantar, o regresso depois de esperas de horas estirados na Avenida de França e, por fim, o aviso ao trinca, - Ficamos em Mandim - caso contrário a automotora ignoraria o apeadeiro e afundar-se-ia nos breu da madrugada, para a Trofa, para Guimarães.

A Faculdade em Lisboa e o sinistro semi-directo. Uma jornada a principiar em Campanhã, as tremuras da Ponte D. Maria; e depois Gaia-Espinho-Ovar-Estarreja-Aveiro-Pampilhosa-Coimbra-Alfarelos-Pombal-Entroncamento-Santarém-Vila Franca de Xira-Santa Apolónia, no limite do cansaço. Com vagar para ler e reler a sebenta, que o exame era amanhã...

(O regresso, desobrigado de pontualidade, processava-se à boleia. E uma querida tia, estrategicamente residente em Coimbra, sempre acolhedora, oferecia-nos o Centro, se o Norte não fosse empreitada de um dia só.)

Era assim. Animadamente assim. Uma maçada tão tranquila quão absurda, vista com os óculos da actualidade. Mas a ela sucederam, porquê não sei, quase três décadas destituidas de comboios.

O Alfa neste milénio. Um corredor para a Capital e mais longe. (Ressalvando os descarrilamentos, as frequentes avarias e as pessoas por quem passa por cima.) Confortável, rápido, moderno e musicado, provido de ar condicionado. Portugal, entretanto, matara os velhos ramais e enchera-se de cabos eléctricos, só complicando o livre trânsito dos nossos circuitos neurónicos. Talvez pela indução do sono, talvez pelo facilitismo. Em morte fatal do pensamento, com os interfaces encruzilhados em precipitações e asneiras. Os falsos chamarizes não são modo de vida, somente uma rota descarada para o arrependimento, ainda por cima sem arvoredo nem flores que se enxerguem...

Assim trocámos os cachos de uvas pela comodidade. Trocámos também as vilórias pelas florestas de betão. E o recato pelo correrio esbaforido. Os serões de namorico (com umas beijocas quase ainda requeridas em papel selado...) pelo encontro fortuito. Em suma, a genuinidade, a pureza e a simplicidade por um planeta imenso e anónimo.

Onde se sumiu o ruído e o espalhafato dos velhos comboios. E emergiu o rumor insistente e demolidor da multidão - o mais desumanizado ajuntamento de humanos. Por isso as relações entre semelhantes conseguem ultrapassar em fugacidade o Alfa magnífico e de poucas palavras.

 

A regata de algum dia

João-Afonso Machado, 25.06.21

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Ainda não foi desta vez... E fotografar "por dentro" há de ser imensamente mais interessante do que da margem... Partir da Afurada a bordo de um rabelo, dizer adeus à Foz do Douro e à Cantareira, passar sob o arco monumental da Ponte da Arrábida, deixar a Alfândega para trás, sentirmos a cidade antiga aproximar-se, as "docas" de Gaia também... Eis os tais trinta minutos não cumpridos na minha vida.

Não que não tenha já repetido multiplamente o trajecto. Mas nunca em competição, na regata dos rabelos, com data agendada para as tardes de S. João. Nela participam, cada uma com a sua embarcação, as principais casas vinhateiras durienses. Um homem à ré, sentado num cucuruto, olha pelo leme; outro pelo velame; na proa, vestindo a rigor a fardamenta do regimento, o Confrade; e pelo meio, qualquer curioso, nesse lugar que ainda não alcancei.

Segui a regata pela televisão. Era duas margens tristes, despovoadas, de todo esquecidas do entusiasmo de outros anos. Caladinhas, nada tripeiras. Sinal dos tempos...

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Mas é sempre coisa digna de ser vista. Os barqueiros encarniçam-se e lutam pela vitória. Ao passar o Muro dos Bacalhoeiros, já se conhece o triunfador. A sorte coube, desta vez, à vela negra da Fonseca. Todavia será no rabelo da Ferreira que eu, para a próxima... eu seja ceguinho se não vai ser!

 

História de uma luxemburguesa entre nós

João-Afonso Machado, 24.06.21

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Chegou há cerca de dois anos, em qualquer manhã menos amável troando ensurdecedora no aeroporto. Vinha do pacato Luxemburgo, o mais certo terá sido o susto enorme, o pavor da solidão e de que nem o papel consigo a ajudasse a encarreirar no seu destino.

Tal não sucedeu, felizmente. Mas foi numa aflição de fraqueza, fome e sede, ainda atarantada, que o seu novo tutor a viu chegar. Logo lhe deitou a mão e a conduziu aos seus aposentos. E por perto foi permanecendo, com o tempo a passar e ela sempre acamada, encolhida e apática, um olhar fechado e mudo, indiferente os dias todos do ano.

Morreria?! - assustou-se o tutor. Tão longa viagem e tão inglório fim!... Seriam talvez as saudades, este nosso clima mais irrequieto... E sobre dar-lhe água, às goladas, vai de chamar o maior mago da região, homem de insondáveis feitiços e façanhas. - Mestre Eduardo, salve-me a menina, pela alma de quem lá tem! Pobre doente, não é sorte que mereça... - Pois fique descansado... - Olhe que bem gostaria de a ver feliz, mãe e avó...

O Mestre Eduardo afeiçoou-se à criaturinha, e nela depositou todos os seus saberes transcendentais. Mais lhe tratou da pele e a sangrou, deu-lhe da sua botelha de elixir da juventude.

E ela floresceu, ganhou rosadas cores, deixou-se abraçar pelo tutor, já de pé, prometendo tamanho e beleza, a minha Rosa, a quem estou para contar do seu remetente do Luxemburgo, honra nossa, honra dela, cortesia da Coroa. 

 

Por aí...

João-Afonso Machado, 21.06.21

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Naveguei águas caladas sem fim nem outros sinais, além dos fundos imensuráveis do destino. Sempre na idealização dos monstros amansados no frio, um modo de dizer negrura, o resultado de qualquer imprevisto.

Conheci lugares de silêncio e almas ribeirinhas no seu eterno repouso. E gente ausente, um absolvido resguardo fisico.

Afoguei em abetos. Num mundo de peles contra o gelo, escudos de madeira chapeada, com muitas barbas brancas e metal cornudo nas cabeças, machados na mão, de olhar hostil. Mas sobrevivi, certamente por não ser diferente, um machado como se impõe brilha na distância do tempo inteiro.

 

"Trafaria"

João-Afonso Machado, 20.06.21

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Água sussurrante de cor sem raça,

brilhante

e a sobrevoar de asa caída a fome

durante mil gaivotas de ameaça,

um beijo um só desejo

 

(vida, vida, 

come, come),

 

rouba-me o ar e o ensejo

de me abismar em maresia

 

entre botes, casinhas, essa pose fria andante,

cargueiros de aço devasso,

o areal uma fantasia,

 

tudo nada era real

nesse dia, hoje, doravante.

 

 

Um minhoto na Capital

João-Afonso Machado, 17.06.21

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Agora mesmo me pergunto como fui parar a Lisboa em plena maré dos Santos Populares. Qualquer coisa se me atravessou no espírito, que por cá vou permanecendo sem dar com o caminho de regresso. Enfim, coisas de parolo cosmopolita, guloso de tudo quanto seja novidade, desde a boa mesa do Jockey às maravilhas da Fertagus. Por isso me decidi a uma cristianíssima cruzada na Margem Sul - tomando-a de surpresa a bordo de um comboio.

É claro, dirigia-me, então, para a estação, já nas cercanias do Hotel Roma, quando dou conta da minha amiga, caminhando furiosamente, a parecer falar sozinha. Vinha dos lados da Praça de Londres, em todas as interessantes transparências inerentes a esta acalorada época e, pelo tilintar das pulseiras, muito, muitíssimo, contrariada.

Estaquei, firmei a lança no passeio, como os nossos antepassados guerreiros, e aguardei a arremetida.

Mal me cumprimentou, possessa, a fumegar. Há longos meses preparando a marcha de Roma/Areeiro e, acabavam de lhe confirmar, a besta do Medina este ano proibira o desfile na Avenida da Liberdade. - Por causa dessa estúpida covid inofensiva! - exaltava-se, muito negacionista.

Prudentemente, mantive o silêncio. - Uma marcha de Roma/Areeiro? - pensei - E como seria a coreografia? Eles de blusão negro e capacete, elas de jeans com os joelhos à vista? E as motas rugindo a fazer "cavalinhos"?

Aguardei por mais informações que não chegaram. A minha querida amiga terá pensado que a zona se solidarizava consigo. E vai de ensaiar o seu inédito repertório, desatando a saraquitar, as mãos à cinta, entre as mesas da esplanada mais próxima - «Um craveiro nas águas-furtadas/cheira bem, cheira a Lisboa/Uma rosa a florir na Tapada/cheira bem, cheira a Lisboa», tralará, tralará, lalalá...

E perante a estupefacção dos presentes, este manjerico nortenho, deitou-lhe as mãos aos ombros e, em filinha, gingou e cantou com ela, também, acudindo à sua súbita "branca" - «...A fragata que se ergue na proa/a varina que teima em passar/cheiram bem porque são de Lisboa/Lisboa tem cheiro de flores e de mar».

Após o que, tomando as rédeas ao cavalo do meu destino, montei, desci à gare e embarquei no trem para mais uma epopeia do Barreiro a Almada.

 

Pacotinhos de felicidade

João-Afonso Machado, 16.06.21

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Estou a vê-la entrar naquela lojinha de especialidades siderais, autênticos produtos gourmet dos segredos do Universo. Já de meia-idade e consultório reputado, onde exibia um quadro do Zandinga com dedicatória e falava tu-cá-tu-lá com os astros todos, para sossego dos clientes que saiam dali sempre a cavalo de uma vida nova.

Pois nesse dia fui no seu encalço e entrei, também, com o pretexto de apreçar um buda qualquer. Nunca me encafuara em semelhantes constelações de mezinhas para a felicidade e a realização pessoal, a sós ou em união homo ou heterossexual. Mas o brilho falante das duas - a balconista, magrinha, ela mais cheia, generosamente decotada, - atraiu-me, seriam talvez os magnetes galácticos a bulir com o meu espírito. E também rumava já o rasto de outra vida, alegre, optimista, positiva.

Somente, a conversa, ao lado, entrou a resvalar, a azedar. Cada vez menos transcendente, metafisicando a carestia dos dias, o elevado custo de tantos frasquinhos de pós e aromas. E do círio rechonchudo onde se lia, de alto a baixo - Encontra a felicidade em ti mesmo!

Tarde aziaga. Eu próprio, um ignorante, o pressenti e confirmei, depois, na bola-de-cristal. Em plena pandemia, as freguesas andam mais cépticas e mais unhas-de-fome. Marralhavam os honorários da nossa encartada psicóloga e é sempre um risco augurar a sua imunidade. Havia que inovar, descobrir novos caminhos sistémicos para a paz e o amor. Talvez saquetas de resignação...

A do balcão ofendeu-se. Jamais alguém pusera em causa o bom nome da sua nebulosa de saberes do Infinito. 

Palavra para cá, palavra para lá, as duas ursas, a maior e a menor, engalfinharam-se, já as costelações deitavam as mãos à cabeça e assobiavam a chamar as respectivas estrelas. O círio da felicidade virou meteorito nas mãos da do balcão; e um frasco de pó uma sujidade cósmica que a cegou.

Assim a psicóloga vidente-sensitiva veio de lá com um galo maior do que a Estrela Polar e um baralho de cartas, afanado na confusão, a puxá-la para uma nova ciência a bem dos seus clientes - o Tarot.

 

Caravelas ao seu destino

João-Afonso Machado, 15.06.21

IMG_4533.JPGA vastidão do mar, um horizonte que é mas não se alcança. Ainda assim, uma meta, toda a nossa ambição sofrida no miradouro do Convento dos Capuchos.

Sofrida? Numa breve troca de beijos, ao contrário, acalentada. Na aparente quietude das águas, há incontornavelmente dois caminhos, e um deles é o do medo dos monstros e das tempestades.

O outro rumo extasia-me. Navegar a ondulação, conquistar o inconquistável, não viver para sobreviver. 

Viver os medos, os riscos, as apostas, as derrotas e as vitórias. Nunca apenas sobreviver, ajoelhado ante a prudência. E assim insisti em outro beijo. A caravela foi lançada à sua rota e os Capuchos (que o Tempo escorraçou) hão de a benzer. Deste jeito a pasmaceira saiu sempre perdedora e os corações erguidos.

 

Por aí...

João-Afonso Machado, 12.06.21

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Estou onde não sou. Sei saber não saber onde sou. Mas já não sei se estou. Estarei. Há um longo apeadeiro de permeio entre corpos decerto impenetráveis.

Essa a certeza, a única, chamada dúvida. Além dos pontos de interrogação, persiste a vontade enorme de algo que não será.

Impossível fugir. Manda a alma, cumpra-se o destino.

(Cheguei de outrora. Só ainda não consigo contar os anos restantes...)

 

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