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FUGAS DO MEU TINTEIRO

Imagens e palavras de um mundo onde há menos gente

FUGAS DO MEU TINTEIRO

Imagens e palavras de um mundo onde há menos gente

"Soneto do sul"

João-Afonso Machado, 09.06.21

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Diz-la longínqua sempre indo mais além,

Ilusão cardeal envolta em tule,

Falsa transparência, pulsão de azul,

Céu a mentir, está e não está também.

 

Ou no fim do horizonte grita – vem!

E eu parto. Sem temor qualquer que anule

Este querer partir, chegar a sul

A abraçar-te, abraçar-te vezes cem.

 

Vem nas horas da minha alma e desejo

Livre, na liberdade que almejo

Como desenhei grave fundo risco

 

No mundo apeadeiro ignoto, tão arisco,

Onde chegarei, sul, sul, no Verão

Nada querendo menos solidão.

 

 

À boleia

João-Afonso Machado, 07.06.21

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O ar ardia, o tempo ia passando e o mundo não queria saber de mim. Junto à bomba de gasolina, já só pensava em um recanto para me estender, começando a escurecer, e dormir o que precisasse.

Mas, de súbito, o carro baixinho de jantes raiadas e um motor a resmonear diferentemente. Estiquei o dedo sem convicção, quase um autómato, era um MGA. Assim mesmo, mais um pedido, só para não dizer não.

Ei-lo, porém, a parar. - Good afternoon! - ouvi, assaz parolo, enquanto um braço abria a porta do meu lado. - Olha, olha, mas que boleia me caiu na sorte! - rejubilei entrando, sem sequer pensar onde me conduzia a viagem. De imediato arrancámos.

Houvera tempo para esmiuçar sobre a máquina. Um 1600 Mk II, um bólide descapotado. E dotado desses inigualáveis paineis britânicos, a manete das mudanças curta, sempre activa. O boné aos quadradinhos, cabelo alvo, bigode retorcido nas pontas e a pêra aparada milimetricamente. Circunspecto, o olhar na estrada, fazendo a sua apresentação - Hello! My name is Francis K... - Thank you very much, Mr. Francis... - Sir Francis, if you don´t mind... - Shure, Sir Francis, I beg your pardon...

Os quilómetros da A28 percorreram um largo traço silencioso. Neiva, Esposende, Póvoa... O carro mantinha o ritmo, Sir Francis mostrava-se exímio na condução. E o tráfego punha os olhos em nós. Entre os meus joelhos, a mochila não incomodava. Eu conhecia algo do modelo, quatro cilindros, boa cavalagem... Era só ter, ou não ter, pressa. Sir Francis principiava a carregar no acelerador. - Is having fun yourself - e eu a pensar, a rebobinar, o meu inglês.

Aí por Matosinhos, reabriu a boca, enfim, e perguntou - Where you want to stay? - Anywhere... - balbuciei.

E Sir Francis prosseguiu sem um tolher de vista, impávido, a considerar absolutamente normal nos últimos cartuchos dos meus 60 anos, mais esbranquiçados do que ele, desconhecer um porto de abrigo.

(Ah! soubesse eu inglês, não fora eu um diplomata, para sua inveja contaria a Sir Francis a história dos squires lusitanos!)

 

O livro que a Fátima Bento me ofereceu

João-Afonso Machado, 05.06.21

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Foi em pleno confinamento, num desafio lançado pelo blog Porque Eu Posso (https://porqueeuposso.blogs.sapo.pt/) da Fátima Bento, que me calhou esse livro, recebido pelo correio e lido com toda a merecida atenção. Trata-se do Explicação dos Pássaros, e o seu autor, António Lobo Antunes, não é de leitura fácil.

Dele sempre dei primazia às Crónicas, com as quais creio muito ter aprendido. E ainda agora procuro, na complexidade dos seus romances, os vestígios desses olhares cirurgicamente lançados sobre as pessoas, os lugares e as épocas - encontrando-os sempre entre enredos mirabolantes de ironia, dramatismo ou crueza e ternura, de tudo o que, afinal, faz parte a nossa vida.

No Explicação dos Pássaros é o que sucede. Conforme Lobo Antunes prefere, o recital é tocado a várias mãos e cantado em coro. Calcando voluntariamente a disciplina das narrações, conduzindo-nos sem piedade à decifração do quebra-cabeças. Parágrafo a parágrafo.

Mas os personagens estão lá, vivíssimos, iguais a todos nós, com os mesmos defeitos e as mesmas virtudes, idênticas experiências. Procurando algo, numa interrogação constante, como as pequenas aves empoleiradas nos ramos - alerta, quando não namorando.

Os dias de um homem, a montante e a jusante dos seus instantes de solidão, quando lançados de rojo pensamentos, memórias, sentimentos, hão, em síntese, de significar a escolha do título deste livro, dada a sua semelhança com o voo dos pássaros - inconstante, levado pelo clima para mais longe e regressando entretanto, vítima de fatalidades, sempre imprevisível entre a beleza das suas cores e dos seus trinados, infinitamente gracioso, resistentemente frágil. 

Assim é também a nossa existência. Muito obrigado, Fátima!

 

Mesmo sem bússola

João-Afonso Machado, 03.06.21

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- Onde?

Mas é o silêncio que responde. Um silêncio tosquiado, mais forte do que a aragem. E o chaparro ao longe, talvez conseguisse lá chegar, mas as águas amareladas de fatal secura tolhem os passos e os braços, e a vontade petrifica e afoga-se nas vagas imensas a espumar de terra esfarelada.

- Onde?

Assim desde a manhã. Sem qualquer indicação, Nem um sol, sombra alguma, uma ave voando para sul...

- Onde?

Somente um espírito agitado e pressentindo. Sentimentos revoltos e o febril acordar dos presságios. Mas sempre a irresistível vontade de ir.

- Onde?

 

Mogadouro

João-Afonso Machado, 02.06.21

Vila pequena, no Interior nordestino, já a dois passos da fronteira. Mogadouro é sede de concelho e o berço de um escritor que aprecio particularmente: Trindade Coelho.

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Terra de dias simples, oscilando entre a torreira do sol e os gelos do Inverno no planalto. É no cimo, no seu castelo, meditando nestas fatalidades climáticas, que vamos dando conta de cães e gatos e alguns idosos, afora os turistas da vizinha Espanha.

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Aliás, uma fortificação a impor respeito. Junto a si, mais recente, a "torre do relógio", - desses sempre pontuais, os do sol, - e a Matriz, um nada abaixo. Aqui, na parte antiga do Mogadouro, urgia almoçarmos, num domingo de quase ninguém. Valeu-nos o tasquinho da Sílvia, algo em vias de se tornar inovador, entre as refeições que ainda não serve e os produtos artesanais que já vende. Assim, às costumeiras sandes preferimos uma lata de feijão-frade e uma salada que a Sílvia de pronto preparou. Depois sentou-se connosco à mesa e foi contando da vida. O meu filho declarou-se interessado no dialecto mirandês e ela, num assomo de severidade, logo corrigiu - Não é dialecto, é língua!

- Filho, a Sílvia é de Miranda... - rosnou este velhote. E era. Mas fora para Oxford - Os ingleses de lá? Uns enfatuados!... - (Os londrinos nem tanto...) Sim, a Sílvia não se vestia exactamente à transmontana. Tinha uns bonitos olhos muito azuis e umas feições a adivinharem-se interessantes, por trás da máscara. Conversámos bastante. Explicou os seus planos neste negócio nascido há quinze dias: ia remodelar todo aquele antigo paradouro dos anciães locais, em busca de um copito de vinho... E, a finalizar, quis tirar uma fotografia comigo. - Uma selfie, Sílvia? Mas eu sou monárquico, não posso, isso é para os presidentes da República... - Tudo se resolveu com os préstimos de uma simpática senhora de passagem por ali. E ficamos os dois muito bem. Na despedida, uma oferta sua, as amêndoas da região, às mãos cheias.

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Os fontenários ainda cumprem o seu serviço no Mogadouro. O pelourinho (deverá datar do reinado de D. Afonso III, quem concedeu foral à terra) alberga conversas vagarosas no sotaque melodioso das gentes daqui, já na idade disso mesmo -  de darem uso ao verbo, por todas as benditas horas.

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E mais no fundo, a Praça Trindade Coelho, com uma amplitude digna deste filho do Mogadouro. Arejada, ostentando o bronze da estátua do literato, e a casa onde nasceu, naturalmente hoje um museu.

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São tudo razões para voltar ao Mogadouro: uma visita à Sílvia (como, de resto, recomendaria Trindade Coelho) e outra ao dito museu. A seguir o rasto desse transmontano que foi para Coimbra, casou ainda estudante, teve um filho e muitas, muitas, dificuldades financeiras, foi jornalista, bacharelou-se em Direito, advogou, mudou para a magistratura, não quis ser deputado (!!!), e acabou tragicamente os seus dias.

Os Meus Amores e In Illo Tempore, as suas obras fundamentais. Esta última, memorial da vida académica coimbrã, começa assim: «No tempo em que eu andava em Coimbra, andava lá também a estudar Direito um rapaz chamado Pássaro. Ele não se chamava Pássaro. Pássaro pusemos-lhe nós porque, além de ser alegre como um pintassilgo e vivo como um pardal, usava o cabelo não sei de que modo, que parecia que lhe punha duas asas atrás das orelhas, e que a cabeça lhe ia a voar!».

Escrita despretenciosa, pitoresca, observadora... Uma delícia!

 

"Uma só rosa"

João-Afonso Machado, 01.06.21

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Pensei em todo o canteiro,

pensei-o tão colorido, inteiro

de rosas a oferecer-te.

 

Mas havia uma só, tom do dia

em que não irei perder-te.

 

E foi essa. Foi na alegria

de a encontrar macia

no teu pescoço, em teus cabelos,

casando perfumes

e o imenso alvoroço de um sorriso

assim conciso ao sabê-los

 

(sorriso terno, envergonhado…)

 

o sinal de um dia, um dia a chegar,

sinal de calmaria e o dia a cavalgar

 

(sorriso terno, envergonhado ao sabê-los

em nosso trespassado olhar).

 

 

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