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FUGAS DO MEU TINTEIRO

Imagens e palavras de um mundo onde há menos gente

FUGAS DO MEU TINTEIRO

Imagens e palavras de um mundo onde há menos gente

Pinhel

João-Afonso Machado, 31.07.21

Foi num fim de tarde afogueado a nossa chegada. Deixada a tralha na residencial, a celeridade do passeio impunha logo, dias longos, a inicial visita. Por isso a demanda, fatalmente subindo. Em terras beirãs é assim... E a primeira marca ficou na Igreja de Santa Maria do Castelo,

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sendo óbvio o nosso - acompanhava-me o meu primogénito, rapaz de passada larga, - rumo a tal fortificação.

A raia tem sempre disto: muralhas, alertas, medos, invasões do passado, acolhimentos do presente. A raia é o mais expressivo lugar da sobrevivência...

Pois assim trepámos. No caminho, o muro rijo de uma casa qualquer, de quintal, onde o leonberger sofria o calor, muito abatido, e o centenário perdigueiro lusitano, seguramente mais idoso do que eu, ladrava, ladrava, resmoneava, sob a minha aposta de bicho afável, assim eu lhe contasse a história dos meus comparsas caninos.

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Hei de confessar, demorei o diálogo na busca de algum parentesco com a minha gente das perdizes... Inutilmente. E assim prosseguimos a arribada.

Alcançado, no vagar da idade, o castelo, duas torres no surpreendem, tal a diferença entre ambas. A mais acima, empreitada de D. Dinis, foi depois reformulada por El-Rei D. Manuel, e o resultado, entre janelas e varandios é bem visivel,

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houvesse, ou não guerra, a pedra bem lavrada estava lá, manuelina, corpo inteiro da nossa identidade nos Descobrimentos. A torre mais abaixo (diz a História, seriam outras quatro ainda), supostamente a decana, está muito penteada pela contemporaneidade que a foi buscar à ruína.

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Terras do Portugal antigo que o Rei Lavrador fixou em Alcanizes, ainda assim longe de uma paz que fica por estabelecer, mormente a sul, em Olivença... E toda esta crónica vai confluir na lenda da "Cidade Falcão" em que a ave de rapina, quis Deus, avisasse a proximidade de tropas invasoras. Sem episódios destes, remato, não há o ser das localidades...

Pinhel tem bom vinho. Olivais e amendoeiras. Bocados de muralhas e belas vistas, alguma relativa modernidade

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sempre de cara levantada. Dispõe da sua rua central, limitada ao trânsito, desgraçadamente movimentada, há lá pouco, e eu sempre ficarei rendido a essa imagem,

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de portas trancadas, velha sem dentes, não sabemos desde quando trancada. Sequer sabemos como, e quando, o marisco chegava a terras de Ribacôa, pronto à devora. Pouco sabemos... Apenas imaginamos... uma vida folgazã, dias de alegria, o Interior repleto de movimento (alcanço Espanha da janela do meu quarto...), e um tempo que sobrevirá. Amén!

 

O nosso rali

João-Afonso Machado, 30.07.21

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A manhã desenha-se agitada nas avenidas. É o barulho dos motores, escapes turbulentos, um movimento estranho rumo às freguesias lá longe. São os candidatos a candidatos, sonhos a pesar nos aceleradores, diz-se agora - adrenalina. Tudo porque estamos em vésperas do rali.

Há muito ele vinha anunciado em cartazes. O rali, antes do mais, é uma excepção ruidosa aos vagares da nossa terra. Nunca (antes o fosse..) o circo das grandes máquinas do topo universal. Não, a coisa é caseira, revela talentos e... eu gosto de ralis devidamente doseados.

Gosto das máquinas transformadas, gosto do decor, gosto, nele, da amálgama de sponsors. Gosto de perícia na condução. E desse chinfrim ocasional nas vielas das nossos recantos.

É claro, não gosto das longas filas dos automóveis dos curiosos a tolher-me a passagem. Mas, o que se há de fazer? Mesmo porque uma boa máquina fotográfica vence imensas barreiras e eu gosto de fotografar.

(Sobretudo quando eles vêm de lá completamente descontrolados, a assistência a rejubilar - trau, contra as protecções! - e a gente a fazer uns retratos para guardar. No topo do bolo, a cereja, - se o bólide se larga em sonoridades intestinais, vulgos ratés, e um entendido qualquer, óculos escuros e boné de imensa pala, explica sobriamemente aos demais - O carro está a "dar" problemas!...)

O rali já foi. O milho enche as várzeas e os candidatos a candidatos roncaram em todo o empedrado do regresso, imaginando-se talentosos e com uma fila imensa de patrocínios o próximo ano.

Porque só então. Não nos podemos dar ao luxo do leite de vaca azedar com mais frequência...

 

Sufrágio da Santa Fé

João-Afonso Machado, 27.07.21

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Em determinada esquina da Marginal vilacondense ficava a Casa da Santa Fé, de cara voltada aos mares. Na traseira, com entrada por um portão, o seu jardim de carreiros apertadinhos. Há quantos anos! E em Setembro, o mais pacífico mês de praia, ali decorriam tronitroantes corridas de bicicletas, era o nosso circuito, o circuito dos sobrantes em férias, algumas dezenas ainda.

Por isso as provas eram renhidamente disputadas, numa largada global que incluía todas as classes e idades velocipédicas. Em boa verdade, as duas únicas máquinas de 26 cc (circular centrífuga) eram a minha, preta, sem modificações, e a do falecido Comendador, verde e dotada de avanços. (Uma fera ciclística, o falecido Comendador...) E, geralmente, o vencedor, um de nós dois, seria o de melhor arranque, porque o espaço para ultrapassar escasseava em todo o perímetro.

Como referi, os concorrentes eram mais do que muitos, e nunca esquecerei o carola Ratazana, com a sua 12 cc. Sem excepções, o último da "Geral" e sempre o primeiro - e o único - da sua categoria. Nós, os anciãos de Vila do Conde, todos o conhecemos e temos presente a esponja a proteger o guiador da sua bem preparada machine, as luvas, o fato-de-macaco negro e o capacete com óculos de protecção. Um genuíno motard de inauditas aventuras!

(E, por isso aqui não divulgo o seu nome, o actual nome de um galhardo e ilustre chefe de família, esse Ratazana de outrora.)

Assim corriam (e se despistavam) as bélicas velocidades da nossa juventude, nos idos da Santa Fé. Confesso, adentro da casa, achalezada, nunca entrei. Lembro-a de idade solene, a varanda envidraçada de cara para a praia; e uma certa inveja minha, porque Setembro ia avançado, em sossego, os dias decresciam; e nesse espaço não faltariam o chá, os scones ou biscoitos (nem me ocorria a cerveja...), aquele relógio de parede - tac-tac, tac-tac, tac-tac - soando grave horas paradas no Tempo.

Depois foi o galope inevitável que hoje sentimos todos no corpo já cansado. A Santa Fé deu as voltas que o Destino quis, caiu de cangalhas, ergueu-se giraça mas jamais a mesma, o jardim nosso circuito varreu-se do mapa, há tristezas tão difíceis e, de toda esta história, ficou somente o lugar. E o Ratazana, para escrever rigorosamente.

 

... e Trancoso também!

João-Afonso Machado, 25.07.21

A medievalidade do castelo nesse dia passou despercebida. Cá em baixo, já fora da muralha, D. Dinis impacienta-se e o seu séquito guarda um respeitoso silêncio. Talvez nem mesmo corresse a brisa, e murchavam as flâmulas e o ânimo dos ginetes. A Princesa de Aragão, D. Isabel, demorava-se e as cerimónias do seu casamento com o nosso monarca tinham sido ajustadas aqui para Trancoso. 

Mas ei-La, enfim, chegando, após arrasadora jornada. Os reais noivos, miram-se, apreciam-se reciprocamente e vão-se conhecendo, como ainda agora na pedra que os perpetua.

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Saindo do seu embaraço, D. Dinis apontaria as Portas d'El-Rei e galantemente cederia a primazia da passagem a D. Isabel de Aragão. Fora do seu mando a construção da fortificação que tempo algum demolirá sem que Portugal não caia também.

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Porque tudo Trancoso guardou na sua alma e tudo transmite aos viajantes. Ali sintonizamos a História e experimentamos os trilhos dos mistérios: a quem pertenceria, afinal, o "Paço Ducal" que, uma década atrás, conheci vivinho e sóbrio, muito alumiado à noite, e hoje se desmorona lentamente, barrote após barrote?

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Entaipado, destelhado, porventura foi seu dono o filipino Marquês de Trancoso, que as páginas dos nossos anais desprezaram...  A vila (hoje cidade) fervilhava de actividade nos seus muros, nas suas vielas, e talvez a comunidade judaica levasse vantagem na mercancia. Bem organizada, respeitada à moda das eras, legou-nos partes do seu bairro, da sua sinagoga, entretanto recuperada e oferecida ao culto dos fieis da Tora, mesmo os que vêm de longe. Lindos arruamentos, floridos das muitas cores das hidranjas, cuidados e estreitos como todos os lugares das gentes que se defendem na discrição.

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Assim se compreende, a, dos nossos dias, Casa do Gato Preto integrasse também o recanto dos hebreus e - qual gato! - na sua fachada, em baixo relevo, ostentasse o leão deles, o leão de Javé.

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Nada ou ninguém, todavia, alcança em Trancoso tanta visibilidade como o sapateiro e poeta, profeta inato, o visionário Gonçalo Annes Bandarra, dito o "Nostradamus português". Uma pena, uma voz, que se adivinham com tantos sentidos interpretativos quanto cavadas nas profundezas da alma sua, expressando-se guturalmente, alegoricamente.

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Também a sua casa, lá nos meandros da judiaria, chegou até nós conservada em museu. Homem da segunda metade de Quinhentos, o Bandarra escreveu afincadamente as suas trovas em que augurava toda a grandeza e eternidade de Portugal. A fonte de inspiração seria o Antigo Testamento, circunstância que lhe valeu umas idas a Lisboa e bastantes dissabores com a Inquisição. Mas a essas mesmas suas trovas muito se agarraram os nossos antepassados, quer durante a Dinastia dos Filipes, quer depois, aquando das invasões napoleónicas. E aqui na vila estanciou, neste último aperto, William Carr Beresford, o Marechal Beresford, e Conde de Trancoso por mercê de D. Maria I (1811). Também a sua residência se guardou para a posteridade,

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simples e acolhedora, palco quase despercebido das mais graves decisões militares de tão desesperançados dias.

Ando de novo em torno das muralhas. Ficou-me no espírito a lojinha que a anciã, sua dona, ao balcão, não me deixou fotografar: caixas e caixas de botões e de carrinhos de linha, livros alfarrabizados, after-shaves contemporâneos do Bandarra (eu não descanso enquanto não reencontrar, nestes mundos perdidos, um Pitralon...), quinquilharias e, dependurada do tecto, uma placa metálica azul, informando - «Agentes Oficiais do Banco Espírito Santo Comercial de Lisboa». Valha-lhe Deus, não entre a polícia por ali dentro com um mandato de busca, a assustar ainda mais a velhinha.

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A despedida processou-se através das Portas de S. Pedro. O distrito da Guarda reserva-me ainda muitas outras surpresas, certamente.

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E, juraria, à minha frente, a dar-me a comer o seu pó, a real comitiva, de abalada também. Para o longo reinado de um dos nossos mais cultos e previdentes estadistas e da nossa Rainha Santa, aragonesa tão nos sentimentos dos portugueses.

 

Sernancelhe, enfim à luz do dia

João-Afonso Machado, 23.07.21

Cheguei de manhã, pronto a batalhar com o indígena e regicida Aquilino. Para lhe roubar a terra, o coração, de todos os portugueses uma alma pretensiosa, apontando-lhe o ricochete do tiro mesmo no coração desta vila antiga, sede de concelho no distrito de Viseu. A minha arma, - somente a caneta, mais a magia da máquina fotográfica. É pouco. Aquilino escreveu as serranias, o vale do Coa, e as minhas palavras não descem além do vilório granítico. Assim o pelourinho duocentista se me plantou firme, na praça principal - Aquilino esquecido, o malandro, - nas eras eternas em que a voz do povo sempre mandou.

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Em seu redor, o casario dos de lá. Vivo, sempre vivo. Pedras que o Tempo nada deve à História; histórias a quem o tempo deve explicações. Valha o caso da Casa da Comenda de Malta!

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E, digam os compêndios, a nascença do nome, por que amargas margens não reside nele um orgulho, qualquer boaventurança do berço do regicída Aquilino.

(Vivemos, hoje ainda, almas que ele quis profanas de maldade engatilhada em pontaria de assassínio.)

Mesmo a ladear a Matriz, velhinha nascida no século XIV. Os sinais românicos apontam para gerações anteriores. Não importa, reside ali uma realidade sobretemporal, santa, sã e sineira.

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Onde? - as marcas dos castigos, da sobranceria dos poderes, das vergastadas nas costas dos mais fracos? Sernancelhe descansa neste cimo e renova-se onde as gentes vão à fonte. E conversam e livremente explicam a sua terra, o seu devir. Toda a sua crença em amanhã.

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Não, em Sernancelhe nada condiz com o mundo macabro de Aquilino.

Há é muito para reconstruir. Ruínas datadas de quando? Tudo o abandono leva, menos os pétreos esqueletos que a pobreza mais recente deixou ao léu. Há sintomas naqueles arruamentos estreitos a que eu chamaria "esperança".

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Ou, talvez, desconfiança... Transmitiu-me o gato local, posto no que terá sido janela rasgada, grandiosa, esse medo medonho. Os animais são os iniciais presságios dos desastres; e serão, decerto, os últimos a compreeender a bonança.

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Assim a calçada me levou ao morro maior e aos vagos dizeres de uma castelania suposta. Subir o escadório foi uma aposta nos pulmões, apenas onde se circunvizinhavam restos esparsos de muros, muralhas e degraus.

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De uma fortificação - que terá defendido os antepassados de Aquilino e passou ao lado do Malhadinhas. Porquê? - porque a jactância do Mestre viajou até ao Minho, a Romarigães, lugar benigno em que se aconchegou em casa nobre. É sempre assim...

E em Sernancelhe ficava a velha vila, inspiração de males essencialmente políticos. Outrora grandiosa com episódios menos claros, fonte de investigações, quais as passeatas dos malteses por ali? Como queiram, a velha vila lá está, muito alargada, subindo nos andares dos prédios de hoje. Mas na sua paz e no seu sossego.

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Antiga, reservada (sem me querer intrometer nem expropriar), talvez mais dos visitantes do que dos seus nativos que vivem cá em baixo, preguiçosos de ir lá ao cimo.

 

Por aí...

João-Afonso Machado, 20.07.21

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Quando lá chegar, a neve há muito terá ido embora e a vegetação respirará enxuta, após ter mergulhado e nadado no degelo. Restarão urzes e estevais, calhaus soltos. Talvez ainda algum amarelo das giestas, e antevejo cobras e coelhos, águias flanando em círculo. E a gélida limpidez das lagoas.

É sempre assim, onde o mundo é de mais estatura.

 

À boleia

João-Afonso Machado, 18.07.21

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Era domingo, era Agosto, e o sol escaldava logo pela manhã. A decisão não demorou: praia, Vila do Conde, alguma alma caridosa se prestaria à indispensável boleia.

Assim os meus quinze anitos se postaram na berma da EN209, o braço esticado, o polegar também. Mas os carros, já então em fila interminável, carregavam famílias inteiras e autênticos banquetes espalhados pelos espaços sobrantes. Um tormento de espera, suportado sobre o alcatrão fumegante da estrada.

Até que o jovem casal passou, no seu Toyota Corolla 1200. E simpaticamente parou e a senhora abriu a porta e saiu para eu entrar. Falavam pelos cotovelos, os dois...

Assim fiquei sabendo, tinham sido emigrantes e regressado já com posses para construirem a sua casita. Ele empregara-se na Minhotex, adquirira um pastor alemão, sempre vigilante nos muros do seu império, e, mais recentemente, este moderníssimo Toyota. Iam domingar para a Póvoa.

- Janota, janota... - disse aos meus botões. E mirei o tablier, o pequeno volante e a resoluta alavanca das velocidades; o terço pendurado no espelho retrovisor, o rádio que tocava (salvo erro) o Paulo de Carvalho, o conforto dos estofos; e o cheirinho que emanava da mala... Estabeleci todas as comparações possíveis - o trânsito pasmava exasperantemente - com o velho carocha do Pai que, por acaso, se dedicava mais aos serra da estrela... Enquanto tal, a senhora, amabilíssima, vendo-me magro, escanzelado, com uma expressão de quem atravessara a pé o Sahara, logo inquiriu se eu comia algo.

Senti lá atrás o aroma dos bolinhos de bacalhau, do franguinho assado, ouvi o vinho chocalhar no garrafão. Uma tentação... Mas seria abuso, e interessava-me chegar rapidamente a Vila do Conde, certo ser o meu amigo, o falecido Comendador, me dar albergue. Assim, penhoradamente grato, recusei o petisco.

E em Portas Fronhas, em vez de virarem a norte, os meus benfeitores tomaram o sentido contrário: iriam mesmo deixar-me na vila e arejar o Toyota pela marginal. Uns anjos da guarda!

(Corridos estes anos todos, reencontrei-os e reconheci-os. Lembravam-se dessa boleia, sim senhor. Estão agora reformados e avós. E conservam o seu primeiro automóvel, no qual continuam a passear dominicalmente...)

 

Sernancelhe

João-Afonso Machado, 17.07.21

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Muitas vezes foi assim durante esses anos vividos a alta velocidade. Chegadas tardias, o jantar pródigo e demorado e a noite dormida mais ou menos. No correr de localidades belíssimas que ficavam no limbo, pendendo muito para uma final sentença insatisfatória. Como é o caso de Sernancelhe, décadas atrás, tantas que já não recordo a caçada.

O assunto eram as perdizes. O bródio, ao ritmo dos restantes... E Sernancelhe?

Sernancelhe, vila e concelho do distrito de Viseu, foi então a miragem nocturna de uma voltinha digestiva. O bastante para respirar o granito e aproveitar uma ou outra fotografia. Ainda lembro a praça central, sem lápis para umas notas que ajudassem o futuro; e o pelourinho, casario com vaga aparência de municipalidade e pedra, pedra, pedra - granito, granito, granito - por todas as entaladas vias do nosso respiro, noite cerrada.

Há de ser muito mais, Sernancelhe. A Beira Alta carrega-se de terras neste jeito, à espera de uma visita com olhos de ver. E quem espera sempre alcança...

 

O acaso de um certo livro

João-Afonso Machado, 15.07.21

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Ao ler o Instituto de Antropologia do meu patrício Jorge Reis-Sá, fiquei a conhecer toda a sua poesia anterior a 2014. Com gosto, diga-se já. E com estranhas memórias emergindo de anos imensamente distantes.

Foi seu Pai meu professor de Português em pleno período revolucionário. É certo, patenteou, então, alguma ingenuidade didáctica: eram tempos difíceis para quem ensinava - e pretendia levar a sério o Ensino - e de grandes reivindicações para os que se pretendia aprendessem. Mas as revoluções apontam sempre para uma aprendizagem empírica, casuística e volátil, assaz exaltada. A maciça História da Literatura Portuguesa, por grandes que fossem os pergaminhos democráticos dos seus autores António José Saraiva e Óscar Lopes, não se coadunava com as tentações panfletárias dos estudantes e as suas tardes de bilhar, em que politicavam e fumavam ostensivos cigarros sem filtro.

Enfim, fui apanhado a copiar num teste e, mais do que por mim, o drama foi vivido pelo professor. Anular a prova - eis algo que ficara para trás, sepulto com o fascismo. (Mais a mais, eu folheava, sob o tampo da carteira, em busca de uma dica qualquer, essa volumosa História da Literatura, sem arte, sem perícia, sem premeditação...) Que fazer? Muito ponderou o bem intencionado professor, até se decidir por uma positivazinha e um sermão prolongado, na presença da turma toda.

Creio nos finais do transacto milénio, um cancro voraz levou precocemente o meu professor. Que reencontrei agora, na poesia do seu Filho:

«Lembro os sonhos que tinha sem sono, aqueles que espero/quando fecho os olhos todas as noites. E digo que te sonho,/pai.Que leio quem te ofereça o maior sentido/- a presença inteira nas letras de um poema».

Há linearidade e genuinidade dos sentimentos. Há uma forma nova de escrever que cativa. E saudade, fidelidade, sempre serenidade. Jorge Reis-Sá utiliza pouco as maiúsculas, adivinha-se que escreve ao ritmo em que vive as suas emoções.

E depois... «Vou para casa esquecer que parti», ainda diz ele, a porta da rua fechando sem qualquer estrondo. Com o seu Instituto de Antropologia poisado na mesinha de cabeceira...

 

Da Gazeta de Vila do Conde

João-Afonso Machado, 13.07.21

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«Fomos agradavelmente surpreendidos com a inesperada visita à redacção deste jornal do nosso conterrâneo e amigo, o Ex.mo Comendador Diogo de Lima, há muito radicado em Roma.

Sua Ex.cia teve mesmo a amabilidade de nos convidar para um almoço no restaurant de Mme. Deborah, onde se revelou um profundo conhecedor da cozinha francesa, enquanto se inteirava das novidades da nossa Vila.

Acompanhado do seu irmão, o distinto cirurgião Dr. Eduardo de Lima, que de longa data e com os maiores méritos, vem exercendo em Cascais a ciência de Esculápio, ambos pretenderam apreciar as mais recentes inovações da nossa riqueza balnear. Conduzimos-los, pois, às praias, não tendo Suas Ex.cias resistido a descer ao areal, gozando mesmo, prazenteiramente, as virtudes das nossas águas em que molharam os pés.

Tratou-se, porém, para infelicidade das nossas gentes, de uma curta estadia em razão dos negócios de Estado que chamam Sua Ex.cia à Capital. E não foram poucos os que acorreram à estação ferroviária a apresentar os seus cumprimentos de despedida. Sabemos que o distinto sportman embarcará depois num vapor para Roma».

 

«Última hora: já depois da saudosa partida do Comendador Diogo de Lima, voz fidedigna confidenciou-nos que o grande benemérito recebeu no seu palacete as autoridades escolares do concelho, a quem entregou um generoso donativo visando melhorar a nossa rede do Ensino. É com cavalheiros desta cepa, e com tal coração, que Vila do Conde progredirá sempre. Bem haja Senhor Comendador!»

 

(Local descoberta nos arquivos da Gazeta de Vila do Conde, datada de 10 de Junho de 1921; assina-a um desconhecido JAM.) 

 

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