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FUGAS DO MEU TINTEIRO

Imagens e palavras de um mundo onde há menos gente

FUGAS DO MEU TINTEIRO

Imagens e palavras de um mundo onde há menos gente

Pacotinhos sem vento

João-Afonso Machado, 30.08.21

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Há quem lhes chame também "pacotinhos de escorbuto", invocando as desesperantes vagas de calmaria oceânica, as caravelas estagnando ao sol. E o tempo dos alimentos a sumir, os citrinos ignorados no sossego das suas ramagens. Bocas em chaga, incapazes de deglutir e a marinhagem de antemão condenada.

É, o suminho de laranja quantas vezes substitui com vantagem a cerveja e o tabaco, a conversa pastosa. Não raro, o chorrilho imenso de disparates proclamados em gestos, e na eloquência dos grandes obreiros, simplesmente atiça caminhos ínvios de tempestade e morte...

As semanas passam, passam os meses e, sem ventos, os pacotinhos desfalecem como bigodinhos descuidados. E dormem um sono enganador, letal, que lhes rouba a percepção: afinal os ares tornaram a agitar-se, as velas enfunaram-se e a embarcação renascida chegou já ao destino.

 

"Soneto do xisto"

João-Afonso Machado, 27.08.21

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Regam o mapa tantos filamentos

Perdidos e soltos, traços escuros

Sem voz nem letras, para além dos muros

Cravados nos montes lisos dos ventos.

 

Uma árvore, alguém, um só pensamento…

O verde vegetal, frutos maduros,

Ínfimas gotas de córregos puros,

Um cão, os gatos, um acontecimento…

 

Mas nada. Nada senão um vão ninguém

Entre lajes semelhando defuntos

Jazendo de almas em ignoto Além.

 

Foi assim, aldeia despida de untos

E fumeiro, o teu acolher imprevisto

De pedra e arestas - aldeia de xisto.

 

 

Da nossa Gazeta - o Comendador a banhos em V. do Conde

João-Afonso Machado, 26.08.21

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«Para gáudio dos verdadeiros vilacondenses, que de pronto assinalaram a boa nova, o Ex.mo Senhor Comendador Diogo de Lima, um cavalheiro perante o qual a nossa terra tirará sempre o chapéu, veio de férias e trouxe a gente sua toda.

Velho amigo da nossa Gazeta, logo nas primeiras horas da sua estadia correu a convidar-nos para um almoço junto das cristalinas águas do Ave, o dilecto rio que o viu nascer e crescer. Vinha S. Ex.cia pelas novidades locais, pelo jamais esquecido peixinho da nossa costa, acerca do qual S. Ex.cia produziu opiniões de excepcional valia.

Assim passámos uma tarde quase inteira, entre o robalo e o peixe-espada e o vinho duriense que os faz nadarem, espertíssimos.

Sua Ex.cia, o Comendador revelou-nos o seu segredo, o projecto que tenciona apresentar nas Cortes. Em síntese, só veraneará em Vila do Conde quem tiver, ao menos, três gerações para trás de prática balnear nas nossas praias. Afirma S. Ex.cia, conseguirá, como apoiante do Governo, alcançar este propósito que aplaudimos veementemente.

Competia-nos acompanhar depois sua Ex.cia ao novo e requintado hotel local, onde se encontra instalado. A sua já respeitável idade pedia-nos o apoio do braço e nesse coloquial propósito  atravessámos a Vila com o estimadíssimo Comendador de Lima.

Sua Ex.cia, munido de um actualíssimo modelo kodack, fez ainda questão de um cliché com a D. Carla, a simpática e acolhedora proprietária do restaurante Patarata, onde tão agradavelmente almoçámos.

Dos familiares de S. Ex.cia, decerto dispersos entre os das suas relações, a mais notável gente da vila, nenhum alcançámos. Ressalvando, muito à distância, o seu mano, o prestimoso Dr. Eduardo de Lima, aliás visivelmente cansado depois de uma tarde devotada a quantas ânsias se cruzaram com o insigne obstetra que é S. Ex.cia.

Terminamos envidando a toda a Família de Lima, imensamente reconhecidos pela generosidade do Sr. Comendador, os nossos acalorados votos de uma estadia sã, tranquila e animada pela presença dos que lhe são mais queridos».

 

(Local descoberta nos arquivos da Gazeta de Vila do Conde, datada de 20 de Agosto de 1921; assina-a um desconhecido JAM)

 

Por S. Pedro do Sul

João-Afonso Machado, 23.08.21

Proclamou-se a "Capital das Termas". E por estas tudo começei: ali estabeleci o quartel-general, a menina Diana dos mais lindos olhos cinzentos esverdeados atendeu-me, serviu o copo de vinho, mas ignorava em que freguesia estava. Na Várzea - envangelizei. E fui descarregar as trouxas na residêncial.

Depois desci a saber mais destas margens do Vouga. Por onde se lavaram do pó e da tripa os romanos e, ao que se sabe, D. Afonso Henriques também; são, enfim, milénios e milénios de clientela arqueológica e patriota. Os vestígios restam óbvios, na pedra trabalhada, um conservante como outro não há. E no centro das Termas de S. Pedro do Sul, o Largo do Balneário Rainha D. Amélia (!!!), a excelente Senhora pelos portugueses tão injustiçada, ali firme, com o seu nome nesse tal estabelecimento vocacionado para relaxe e massagens.

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Um pouco além, o outro balneário, moderna construção apadrinhada pelo nosso primeiro Rei, onde a especialidade são os tratamentos de fisioterapia.

Calcular-se-á, o sítio das termas é fundamentalmente hoteis, pensões, alojamentos locais... No Largo que não deixa esquecer a nossa D. Amélia, sempre muito concorrido, assombrado pelas esplanadas, circulando de porta em porta nas lojas de artesanato e lembranças, isso mesmo se verifica, aliás com sobeja beleza.

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As Termas de S. Pedro do Sul são essencialmente um território de idosos. Abundam as bengalas, a pacífica gente que ali busca descanso - e, sendo tantos e infindo o convívio, é a caixa das alegrias a abrir-se, o reencontro com as amizades de anteriores temporadas... Mas há gente nova também, famílias com os filhos pequenos, a usual busca de alternativas. Numa das muitas confeitarias pedi um "vouguinha", pastel de ovos e amêndoa típico destas paragens... E dei comigo no maior espanto - o Museu da Rainha D. Amélia, ainda não aberto ao público... O que sairá dali?...

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Tudo era movimento, mesmo o Vouga. A jusante da ponte, o Vouga está para obras! As escavadoras passeiam no seu leito barricado por línguas arenosas, num ar putrefacto de poeira em que a água se ouve distante, invisivel, furiosa do engarrafamento criado. Assim um fotógrafo se vira para o lado oposto a pedir imagens decentes, oriundas da ponte pedonal. E assim capta a gigantesca torneira laranja

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(uma ilusão à Luís de Matos), e o repuxo de tons bem engraxados pelos raios solares.

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A povoação (um termo demasiadamente rural, considerando esta ventania de forasteiros...) trepa a encosta em ruelas desconcertantes, autênticas ameaças à chapa dos carros. Mesmo porque tudo ali é branco, bonito, em multicoloridos de jardim. Como uma menina oitocentista e a sua sombrinha...

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Já noite feita, o jantar na residêncial. No imenso círculo de velhinhos, comeres de hospital - para mim a sopinha, uma posta de salmão, muito obrigado, e uma garrafinha desse branco tão ao jeito da pureza seminarista.

Entrementes: urgia explorar a cidade sede do concelho. Logo ao raiar da manhã seguinte. Cheguei, deixei o carro na primordial hipótese, entrei numa livraria para informações, e - imagine-se! - comprei um livro de Baptista-Bastos! Hei um dia de reflectir sobre estes actos isolados e incompreensíveis, literariamente absurdos. Posto o que marchei, em caminhos de urbe nova, e perguntei, perguntei, até dar com a veneranda S. Pedro do Sul. Encontrei-a no Convento de S. José,

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junto a esconsas ruas por onde dealbei até ao setecentista Palácio Reriz, o mais prestigiado da terra. Ao que apurei, ainda habitado pela família de origem, esse antigo pousio dos Reis de Portugal quando vinham a águas nas Termas.

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O palácio está acabadote, desdentado e meio cego. A seus pés, o antigo centro de S. Pedro do Sul e a Religião a apertá-lo de um lado e do outro. Ou seja: o magnífico edifício espreita, entre a Matriz e a Igreja de Santo António, para o antigo Largo da Rainha D. Amélia (outra vez a excelente Senhora!), hoje Praça da República - e nada mais agora senão um movimentadíssimo cruzamento de ruas onde, certamente, já não subsiste o falatório de outrora, políticos, curiosos, cuscuvilheiros, mensageiros e outros que tais.

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Por mercê do Grandioso, mesmo abaixo do Palácio, o Largo da Matriz. Um tecto de árvores, os anciãos da terra nos seus bancos a jogar ao cavaco de língua, sob a orquestra tocada pela pardalada. Benigno momento de repouso, do meu repouso, refrescado por meio litro de água. O calor não poupava, as forças iam-se...

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E tanto é, de S. Pedro do Sul dei após, somente, com a Fonte dos Namorados, um lugar de amor entre moradias de agora, a marca incontornável do crescimento urbano roubando os lugares onde antes a vida era tão singela quão prometedora, em tardes dominicais que - estou para saber... - galopavam ou se eternizavam.

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Voltei ao carro, no interior em infernais labaredas. Atravessei a ponte do rio Sul, confluenciando com o Vouga umas dezenas de metros à frente, e fui ver as modas. Havia um "vira" que me toldou o espírito - trutas! Sim, trutas neste pequeno curso, bem à vista do freguês, a dois passos da criançada no banho. Claro, em Agosto a sua pesca é proibida e as manhosas decoraram o nosso calendário! Já nem as trutas conseguimos manter no analfabetismo...

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Era um parque bem dimensionado. O sol morava no areal junto ao rio, a frescura sob a frondosidade dos plátanos. Tomei ar, pausei, olhei em redor. Muitos, nas suas mantas na relva, procediam igual. E a ninguém se escapava o húmido aroma das águas, avidamente sorvido. Ali, S. Pedro do Sul dormitava entre troncos de perímetro atlético e altura record...

Ganhei forças. Ainda havia muito combustível para gastar. Rumo à serra de S. Macário, em demanda das aldeias do xisto. Mais precisamente, de Fusaco, ou um percurso levado da breca. 

Por S. Félix, por Sul (que animadora casinha branca, de janelas verdes!),

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por montes e vales, devagarinho não fosse o diabo tecê-las, aspirando os sabores medicinais das folhas de eucalipto, a sua cantilena na brisa.

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Até lá. A Fusaco, cravada na encosta, bem camuflada, a pedra a encobrir a pedra.

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À chegada, o corregozito a morrer de sede, que a temporada das chuvas está longe e há que poupar, represar. Alguém disse já, a ponte é uma miragem...

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Ainda assim, nesse derradeiro reduto, uma cobrinha-de-água de descomunais dimensões. Tentei estabelecer diálogo mas mais não consegui senão, a uns centímetros, a sua lingua bífida, o medo disfarçado, eu a prometer-lhe uma vida melhor...

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Escapuliu-se na primeira oportunidade... Lamentei, seria, pelo seu porte, um troféu de valia guardado no bolso. Vistas as coisas, nada interessou o meu fatal olhar galã defronte ao seu, sempre glacial. E assim desesperançado subi a aldeia, não topando com vivalma.

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Casinhas, havia-as muitas, as de quem desconhece as restantes do mundo cá fora, e as dos habitantes deste mesmo mundo, que vão optando por vidas de eremita com antena parabólica. Ou é de mim ou estamos de regresso ao comunitarismo, com restaurante de luxo à porta...  Mas agora era tempo de mudar de ares...

O próximo poiso - o Poço Azul, na freguesia de Sobrosa, sítio previlegiado da ribeira da Landeira. Com o bólide sempre a subir, cheguei a uma largo com estranhas formas de piscina, dois tanques quase cheios, e uma roullote vendendo comeres. Mais a fatal esplanada. Perguntei, o Poço Azul era em baixo, meio quilómetro íngreme que eu desci, et voilá!

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A rampa dava bem conta do que seria o regresso, na sofrida e esfolada volta de quem tinha estado. Por fim, a piscina natural, a sua limpidez, talvez um convite recusado, tanto se avantajava a multidão, dentro de água, posta em toalhas de praia, berrando, berrando, berrando. Porque perdi as minhas notas, subi e desci três vezes esse calvário em busca do meu caderninho (e de umas canetas predilectas) que jamais reencontrei. Semelhante tristeza, só posso acrescentar, serviu de medição do meu folego para as perdizes. Talvez o velhote ainda participe em outra campanha...

No regresso às termas foi uma caixa de biscoitos e uma botelha de vinho de Lafões - eu estava incomodado, tanto pelos meus perdidos apontamentos quanto pelas canetas com que escreve este coração. Entre os mais desabafos, valeu-me a menina Diana, a sua companhia, senhora de uns olhos como outros não há nesta enorme Beira Alta.

 

Vida

João-Afonso Machado, 21.08.21

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Só o nome – endoscopia – já assustava. Era a primeira vez, precedida da papelada bastante para generalizar o alarme, com a vida assim colocada em tão pouco tranquilizante visão. Sobretudo nestas alturas, o Passado regressa à tona e a vida olha-se como foi, medita, fará mesmo promessas em troca da sua sobrevivência no Presente.

A vida está embatucada. Muito ciente da sua carreira, do seu currículo, e já perdeu a conta aos anos que demorou a erigi-los. Somente… não dá a obra por terminada. A vida reclama mais tempo e a endoscopia responde-lhe com pontos de interrogação, reticências.

Furiosa, a vida folheia capítulos da sua adolescência e da juventude; e lança àquelas ameaçadoras tubagens fascículos inteiros da sua maturidade e do seu labor. Anos e anos a dar no duro, engolindo azares, provações, contrariedades, os seus momentos de felicidade são agora um inoportuno argumento, é o Presente exigindo, aos murros na mesa, o tempo do Futuro, uma prorrogação do prazo, faltam pedras nas paredes da torre e o telhado está por cobrir.

Exasperante endoscopia! Já deslizando garganta abaixo, já cheiricando o abdómen e suas adjacências. Escorregadia como o silêncio de uma cobra matreira, de olhar fixo, quase inexpressivo de tão parado. E desprovida de palavras, a provocar engasgamentos, o médico que a coordena somente recomendando sossego – Está quase, está quase!

Vale à vida a enfermeira, com os dedos no cabelo da padecente, cabelos brancos que a senhora alisa, acaricia. Parecendo querer tranquilizar, há vida para além da endoscopia… E talvez haja mesmo, tão personalizada se assumiu a vida, rejeitando a sedação, querendo-se vida vivida, acordada, consciente, senhora de si até para passar um mau bocado. Um Presente que deseja rapidamente Passado; rumo ao Futuro, ainda que assustada, ardendo de impaciência para também o guardar – quando outro Futuro substituir esse já velho Futuro - num arquivo qualquer, dos muitos em que deixa esquecidos os seus lances mais estúpidos.

A vida não é masoquista, dá-se mal com certas expectativas, alturas há em que quer-se a correr desabridamente, em total desprezo pelos excessos de velocidade, pelos minutos, pelas horas em que será penalizada.

O suplício da endoscopia, a espera do seu resultado, com certeza constituem um desses momentos de desenfreada aceleração. A vida quer o Céu, recusa o Inferno, mas não se vai dando mal na Terra, toda material. Tais as ideias que lhe ocorrem, ainda por força da maldita endoscopia. Deitada de lado na maca da clínica, a vida, percebendo que não é senhora de si mesmo, tudo promete: comer e beber moderadamente, caminhar todos os dias, olhar para um lado e para o outro ao atravessar as ruas. A vida é tenaz, combativa, orgulhosa e – aqui entre nós – um pouco vaidosa também.

 

(participação no desafio da Célia - "Vida" - no seu blog Raios de Sol - raiosechuvas.blogs.sapo.pt)

 

Nem recensão nem funeral

João-Afonso Machado, 16.08.21

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No meu mundo faz todo o sentido ocupar um naco de Agosto relendo um autor que parece desesperar precisamente por não encontrar um caminho que lhe explique a existência. Porque Agosto há de ser o silêncio; e o silêncio, o breu, integram muito o conjunto de terrores espelhados no Húmus de Raúl Brandão. A vida, a morte, o sonho, a alma, o nada, talvez alguma esperança... Tudo pincelado em tons pardos, esquivos, de personagens «da vila» enganando-se a si mesmas e ele, Raúl Brandão, já se dando por contente com a realidade do Inferno - «sinto o desespero de não haver dor eterna. A dor pela eternidade das eternidades era ainda viver. Sofrer sempre com a consciência do sofrimento é viver sempre. Antes o Inferno! Antes o Inferno! O Inferno em lugar do Nada. O Inferno era ainda o Céu». E tal é o horror à finitude - «a morte não existe, Deus não existe, a vida eterna não existe. Uma luzinha e depois a escuridão!». E tal é o contrassenso, invectiva Deus, acusando-o de o deixar «sozinho com este peso em cima, com a ideia da vida e a ideia da morte».

Assim diz se refugiar no sonho porque «a realidade é uma figura de dor». Até o xaile de uma das suas personagens estava «encharcado de sonho».

Em síntese, Raúl Brandão escreveu Húmus sofrendo o terror do vácuo, do prazo da existência, da claustrofobia que lhe causavam os enterramentos - «não quero morrer de vez. Não quero perder a consciência do Universo nem a sensibilidade do Universo».

Ser-lhe-ia salutar ouvir a D. Leocádia, outra velhota da sua lavra, - «sem crer não sou nada - sem crer não existo - sem crer não compreendo a vida. Preciso de caminhar para um destino. Crer é uma necessidade absoluta, um sentimento primário, a própria vida, sua razão e seu fim».

Agosto, comportadíssimo, nada dado a excessos térmicos, ameno e convidativo. Verdadeiramente, um intervalo aberto na sageza da D. Leocádia. Resta agora, então, encher a mochila e partir a entender o mundo dos outros, descobrir, ler nos lugares o sentido da vida que todos deixam transparecer. Só não crê quem não quer e trocou o instinto por uma atitude insensível. Traga a máquina fotográfica do melhor ao pior da visão alcançada, e escolha depois a caneta as palavras que mais definirão as vivências e assegurarão a sua perpetuidade.

 

A caneta na canícula

João-Afonso Machado, 14.08.21

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Dia de sol sobreexcitado. A caneta azulou-se clara e deslizou silenciosamente no papel, num rasto solitário de trancas à porta e janelas cerradas. A defender-se do calor, do barulho de quem demanda as areias e os mares.

Não lhe restará companhia, sabe-o bem. A não ser, talvez, ela própria, o traço em que tece o passeio das horas, como um ribeiro furando o leito pedregoso na montanha.

Houvera de empunhar a faca de cortar papel e a sua escrita ecoaria de cipó em cipó, ninguém lhe espreitando a nua visão das feras e de outras armadilhas; ou a sua escusa em companhia...

Mas o intuito é outro. Do lado de fora da fornalha, fica esse azul que não seca e cintila como o dorso dos peixes farejando os fundos aquáticos. A cor vagarosa do que lhe vai no espírito e na ausência das palavras ditas. A caneta prossegue, é todo um frondoso vale de ideias por desbastar, e as tais chamas do inferno ardem por onde vagueie a multidão; no seu luzidío curvetear, a caneta escreve também, decerto chora, a desdita desses que não lêem os seus escritos.

 

Por aí...

João-Afonso Machado, 11.08.21

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Fatalmente armado, carnivoramente esfomeado... Rondando lugares conhecidos na solidão de um animal velho, em savanas tão distantes da realidade.

Assim a apanhei desprevenida, castanha como uma gazela. Porém ainda criança. Restou-me digerir a insuficiência da vítima. Carnivoro contrariado, armado e inconformado, lá parti coxeando, em busca de uma nova presa, fosse ela as cores todas da passarada num baobá qualquer.

 

Chegam em paz...

João-Afonso Machado, 09.08.21

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Zappa, um filho de imigrantes, pastores shetland que para cá se dirigiram não sei exactamente quando; iguaizinhos aos outros, os que alcançaram e dominaram o Novo Mundo, puritanos, de negro vestidos, alvo peitilho, a cabeça muito resguardada.

Egas, o lusitano perdigueiro. Não é rocker, pouco ou nada sabe de música. Corpo tisnado ao sol, nativo, eternamente nativo, habituado a mandar. Bom conhecedor dos amanhos do Grande Pai Branco, preferindo embora a vastidão das planícies.

Ambos se encontram, ambos se avaliam, entre ambos reina uma certa desconfiança inicial. Depois foi a brincadeira. A folia, dançada, latida, corrida. Uma tarde animadíssima.

(Mesmo porque estas mesnadas chegam com os meus sobrinhos. Agosto é um bom mês para os rever, nas suas vindas ao velho ninho. Zappa, hiperactivo, pula na vertical e não se cala, a sua guitarra produz solos acutilantes; Egas, menos exuberante, gosta de umas festas e, acima de tudo, de uma boa, pacata, conversa. Os dois findaram a entrevista em correria lado a lado. Amanhã haverá mais.)

Se é necessária diplomacia? Se a gestão destes convívios se torna difícil? Nada, nem por sombras! Aqui não se inventam conflitos nem se cultiva o gosto pela diferença. Quer-se é estar bem.

 

A Volta, a nossa querida Volta

João-Afonso Machado, 08.08.21

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Acabo de ganhar uma etapa. Creio, foi ao sprint, aqui no meu sofá, já não sei se patrocinado por uma lata de bolachas, se por uma fábrica de móveis. Enfim, faz calor e a Volta magnífica a suar na estrada e eu a regalar-me na sala. Viva a Volta, vivam as férias!

Ainda vamos andar nisto mais de uma semana. No fim de cada almoço, o programa segue entre montes e vales, a assistência a mimosear-nos com palmas, banhos de água fresca, palavras de incentivo. E nós, queda aqui, queda ali, a pedalar, pedalar... Alguém imaginará desporto mais sóbrio, mais de salão?

Chegaremos à montanha. As minhas almofadas transformadas em avioneta com pedais... Na berma, o público em xanatas aguarda-nos desde a madrugada anterior, vindo nas suas caravanas. Comeu frango assado e fez jús ao tintol do garrafão. O pelotão zune ao longo do asfalto e a minha camisola amarela mantem a postura no sacro encosto, esfolem-se os concorrentes todos, que na meta lá estarei primeiro, a vê-los chegar.

Venci e tenho direito à subida ao pódio. E ainda a umas beijocas das beldades. A Volta é isto, Marco Chagas todos os dias se refere à minha excelsa e ganhadora pessoa. Mesmo porque só participo na prova nacional, jamais - tal a minha humildade de campeão - nas restantes provas congéneres em França, Itália ou Espanha.

Há muitos anos é assim. Grande Volta, correrio esmagador! E Marco, - o mais fanhoso falar mundial, uma autêntica matraca, - o que seria a Volta sem os seus comentários? Então mas Agosto o que é senão isto? O mundo lá fora e a gente à espera de que a imensa vaga sossegue... Força, Marco Chagas, por muitas e boas giro-tours-vueltas e voltas!

 

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