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FUGAS DO MEU TINTEIRO

Imagens e palavras de um mundo onde há menos gente

FUGAS DO MEU TINTEIRO

Imagens e palavras de um mundo onde há menos gente

"Soneto a Kalina"

João-Afonso Machado, 11.09.21

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Onde te descobri, perfil de outrora

Jamais esquecido, sei-o de cor,

Onde lembrei anos de mundo maior

Afinal pequeno, que o grande é fora.

 

Esse nariz, o olhar, pedra de agora,

O corpo, a túnica, tudo uma flor,

E o canto, a fala, mais outro amor

Apelando – vamos, vamos embora…

 

Kalina, Kali te chamam os teus,

Vieste de longe, tempo trirreme,

Por esses sacros mares de Zeus

 

Como alva vestal que jamais treme,

Kali, acima nós hoje vera fada

Dos nómadas, e a mim, Kali, – nada!

 

 

Sófia - logo arribados lá

João-Afonso Machado, 10.09.21

Essa noite em Sófia carregou-se de beleza e movimento, fez-se inesquecível. Parecia, à chegada, uma noite escura e calada, perdida entre prédios sujos e suspeitos; uma noite trilhando carreiros entre arbustos, de muita terra e pedra solta, luz quase nenhuma e semi-desfeitas bandeiras búlgaras nas janelas de um ou outro edifício. O primeiro restaurante recusou-nos o jantar, eram já desoras. Guiados por Kalina, a amiga do meu filho, alcançámos um segundo, amplo e acolhedor, sonoramente em festa.

Kalina é uma jovem nada em Sófia, guardando consigo o que há de mais bonito e atraente. Em casa dela pernoitámos, e foi ela a nossa guia enquanto na capital búlgara. Kalina podia ser minha filha, e é na maior dedicação de um pai velhote que tudo narro do que se foi passando.

Tratava-se de uma noite de grande comemoração no restaurante. Essa garota, gorduchita e loirinha, muito activa no bailarico, festejava, de uma penada só, o seu aniversário, o casamento que estava quase aí e o bebé também já a caminho.

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No centro de uma das salas da casa, a cantora, - mais madura - os tocadores de orgão e de instrumentos de sopro. - O que é isto? - E Kalina apressou-se a explicar, era o folclore deles, dito o "horo".

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Concentrei-me nas dançarinas. Em roda, de mãos dadas, acompanhavam graciosamente uma música suave de voz firme e serena, tudo decerto com berço mais a oriente, lá para as bandas da Turquia. Não, não eram possíveis quaisquer comparações com os nossos viras e malhões...

Ali não pontificava a exuberância, o garrido, o sôfrego movimentar do corpo e das cordas vocais. Mais o coleante serpentear do grupo que, aliás, ia crescendo.

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Das mesas vizinhas chegava gente, a criançada também queria participar. Pares de sapatos ficavam a uma canto, que tacões altos não ajudam.... Ouviam-se palmas e incentivos. E sempre melodiosamente, num ritmo que se empolgava, as dançarinas dançavam, o restaurante inteiro comia do espectáculo, e muitos (mais eu) disparavam em fotografias.

Ocorreu-me a ausência da balalaica. Já alguns homens se erguiam também e entravam na dança...

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Era total a sintonia dos gestos, o seu enlevo. A menina dos anos, incansável. E até a mim, tão desajeitado, apeteceu dar um pezinho no salsifré.

Eis, porém, que cercada por excelentes batatinhas assadas, muito bem condimentadas, chegou finalmente à mesa a truta que eu escolhera, gorda, de carne rija, alvíssima, sem espinhas. Não a truta dos nossos rios, um outro qualquer salmonídeo dos Balcãs, benza-o o Senhor. O meu filho e a amiga escolheram já não sei que prato regional, onde ainda petisquei uns bons legumes estufados. O pior foi, sem dúvida, o vinho branco indígena, compensado por um copazio de cerveja a rematar.

A viagem, com escala em Genebra, cansara. Os ossos pediam repouso. E essas escapatórias entre prédios que ainda não substituiram as cortinas de ferro foram o nosso regresso e a proximidade do condizente Trabant,

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emergindo do breu, uma relíquia dos tempos em que na Bulgária era obrigatório recolher muito, muito cedo.

 

Desafio Trinta Dias de Escrita|"Cem palavras de poema"

João-Afonso Machado, 07.09.21

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E nem mais um ai! – eu pobre poema

espartilhado entre cem palavras cumpridas a rigor

reprimido ou alargado o tema, botão colarinho dor.

 

Adjectivo – sai, frase vã sai também

eu sou tão cativo como ninguém.

 

Com o mundo privo pelo postigo da cela,

asfixiante visão, mar e planície, azul e trigo,

triste ilusão, o vento embalando uma vela…

 

Onde iria, onde meu espírito vai além

das cem palavras e nem um ai,

alguém imaginará?

 

(Mãos às grades torcendo dias de asas que não há,

horas jamais a esvoaçar

e a maré a secar

em cem palavras sem mais um ai.)

 

 

(Publicado no Desafio 30 Dias de escrita - https://rainyday.blogs.sapo.pt/tag/desafio30diasdeescrita)

 

 

 

As notas à José Maria

João-Afonso Machado, 03.09.21

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Pessoa amiga trouxe de Tormes, e ofereceu-me, o bloco-notas, aperreou-me com muito mais, o temor de escrever à sombra da efígie de Eça de Queiroz e da sua assinatura. No tamanho natural dos caderninhos que levo sempre comigo, trarei agora esse velho e querido "fantasma" dos meus que já foram. Ah!, coubesse a sorte a eles!

Enfim, eu escravo de mim próprio, seguindo caminhos que não sei... Mas sempre de lapiseira em riste, em formato (hodierna palavra maldita!) do calibre do que hei de transmitir. Um dia contei o perdido na Beira Alta... Mas logo corri a recuperar o olvido, a súmula e o remate destas poucas artes. Só fui capaz de as renascer em parte. A parte maior salvou-as o fatal confinamento...O catálogo era parco.

Sucedeu nas cercanias de S. Pedro do Sul, lugar invejoso dos bons minhotos. Ora a gente não pode é hesitar e, por isso, dei-me à compra de bloco de iguais dimensões e condição conforme. A senhora da loja tanto atentou na minha Provincia que usou de um X-acto para demover da capa do missal uma nódoa verde-rubra posta no lugar do meu eterno azul-branco. Que eu, proclamei, não me vendia...

Assim, sem escrófulas, recomecei a viver. Num breve momento de hesitação sua, ameacei-a com reliosidades semelhantes, em dimensão, oriundas da agência funerária da minha terra. Ela, a senhora, temerosa, aboliu ante os meus olhos o caixão e a República. Palavra de honra!

Isto tudo seria nada, nada mais senão a minha herança. (E não pensem os meus herdeiros o contrário.) No bloco, seguindo a regra de ouro de não cortar nem rasurar. Escrita transvia, escrita que, melhor ou pior, volta aos trilhos e sai a público. Perdida, colha caminhos para se recuperar... E com disciplina, que ela comigo não brinca!

Desandei. Já não sei onde vai o José Maria. Agora mesmo, ouço-o, de antigamente, mandar-me ter tento na língua. Com razão, decerto. Com toda a razão do Mestre sublime que puxa as orelhas a um discípulo, um escriba qualquer.

 

Para início de Setembro

João-Afonso Machado, 01.09.21

Eu tinha sete anos e estava em Lisboa. Lembro vagamente, um tio foi buscar outro familiar a Santa Apolónia e, no regresso, informou já só conseguira passar «por um triz».

Agora, mais localizado no tempo, preciso esse início de noite a 25 de Novembro de 1967. Foi talvez o mais mortífero cataclismo natural que se abateu sobre o que comunmemte hoje se denomina o Vale do Tejo. 

Vai lá pouco tempo, estanciei em Alenquer, onde os efeitos da catástrofe também se fizeram sentir. E ainda então, conversando com os locais, - alguns de uma geração abaixo e meio século volvido - o desastre era tema: a propósito de coisa alguma, sempre se referenciavam as chuvas de 1967, o seu efeito desvastador, a destruição e as muitas dezenas de mortes na baixa da vila, engolida pelas vagas pluviais dessa noite funesta.

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O que sucedera?

Simplesmente a hecatombe. Numa madrugada, apenas, caiu tanta chuva como o habitual num mês inteiro. Em Lisboa, já ninguém sabia onde acabava a cidade e começava o Tejo. Mas isso foi o menos. Em Algés, Oeiras, sobretudo nas áreas de Loures, Odivelas, Amadora, Vila Franca de Xira, as ribeiras subiram o leito uns vastos metros, eivaram-se da terra circundante e, de roldão, uma imensa vaga assassina varreu povoações e as tantas construções que as marginavam. Recorde-se, era a "época de ouro" dos "bairros de lata", da miséria de centenas de famílias oriundas de longe à procura de melhor vida na Capital. Encontraram foi a morte que, mais ou menos, a todas atingiu.

Porque, fechando os olhos as entidades governamentais, armavam as suas barracas junto desses pequenos cursos de água, assim possibilitando ainda a horta, a capoeira, ajudas de vulto à sua subsistência. Madeira, zinco, lusalite, uns tijolos... Naquela noite, o arrastão das águas sublevadas sequer se confrontou com alicerces, e o resultado traduziu-se em mais de 700 mortos!!!

O Regime da II República, incomodado com este números, deu ordens à Censura e o cômputo oficial das vítimas fixou-se em cerca de um terço da realidade. Ajudas? Qualquer coisa igual à da calamidade dos incêndios de 2017. Valeu então o empenhamento da Igreja Católica, dos bombeiros, da mobilização estudantil, da boa vontade cívica dos particulares.

Muito mais havia a dizer. Muito já li sobre o tema. Ultimamente descobri - e "devorei" - um livro de Joana Amaral Dias, o Dilúvio sem Deus.  Subtítulo - As Grandes Cheias de 1967, a tragédia escondida pela Ditadura e esquecida pela Democracia. Apreciei devidamente. Muitíssimo. É a narração da verdade dos factos, repleta de testemunhos de sobreviventes e de intervenientes de auxílio. Com imagens arrepiantes e um discurso altamente emotivo, mas nem por isso menos credível. Ao que tudo acresce a análise psicológica da situação e a crítica à criminosa inacção do Poder.

Resta a pergunta: porquê a menção a este quadro de terror, logo no dealbar de Setembro? Talvez porque todos sentimos a imprevisibilidade climática do nosso mundo. Talvez porque eu esteja de partida, ainda não sei para onde, mas seguramente em bom barco. E um bom barco foi o que faltou a esses tantos milhares de desgraçados.

 

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