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FUGAS DO MEU TINTEIRO

Imagens e palavras de um mundo onde há menos gente

FUGAS DO MEU TINTEIRO

Imagens e palavras de um mundo onde há menos gente

À boleia

João-Afonso Machado, 31.10.21

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A auto-estrada morria em Vila Franca de Xira e eu estudava na Faculdade em Lisboa, mas vinha com frequência ao Norte. Andando as finanças por baixo - um estado quase crónico - o remédio estava num passeiozito à Rotunda do Relógio, com vénia a S. Cristóvão, sempre presente na sua benção a estas tormentosas viagens, e o trajecto final (a pé) até às bombas de gasolina já nas imediações das portagens.

Era um self-service pioneiro. Assim abordava os condutores enquanto abasteciam - Desculpe, vai para o Porto? - Às vezes respondiam ficarem por Coimbra, ou assim... Não interessava - Então, se não se importa... Eu lá depois desenrasco-me. - E eles anuíam, sem jeito de dizer não.

Nessa manhã, um cavalheiro, alto, bem constituído e bem forrado com um casaco de pele (era inverno) atestava o depósito do seu espectacular BMW 3.0 CSL. Aquilo seria percurso dos extensos... Enfim, a conversa usual e - Sim senhor, vou para o Porto e levo-te!

Fiquei consolado! Ainda por cima numa máquina daquelas! Entrei, o meu salvador tirou o seu abafo (havia ar condicionado, claro), sentou-se ao volante e, reparo então, à sua cinta um coldre com um revólver lá dentro. Não contive uma exclamação - Armado?! - Que queres pá, eles andam aí de G3, nem assim a gente se defende.

Este «eles andam aí de G3» deixou-me mais tranquilo. E foi uma viagem excelente (para a época...), o bom homem pagou-me o almoço num qualquer restaurante de berma de estrada, contou a sua vida toda. Era um «empresário da noite», aliás o proprietário do estabelecimento tripeiro de pior fama. (Anos volvidos um nosso valhacouto de despedidas de solteiro e efemérides congéneres.)

Mas bom condutor, seguro, responsável. O bólide de um conforto inexcedível. Assim pelo meio da tarde chegámos ao destino, já amicíssimos, com este meu mestre de Moral a oferecer-me um livre-trânsito para o dito seu santuário.

Mais tarde estive com ele, nesse período em que a rapaziada começava a casar e dizia adeus à liberdade em noites de muito álcool e muita asneira. O meu prezado «empresário da noite» viria a morrer, entretanto, de forma violenta, e por isso omito nomes.

Nunca esquecerei o seu BMW 3.0. Nem a suadela suportada horas dentro dele. Porque não tirei o blusão, apesar do ar condicionado, não fosse o pistoleiro topar a faca de mato que trazia escondida, embainhada nas calças. Por mera cautela, obviamente. Mas vamos que ele, de revólver à mão, se convencia de más intenções nesta minha alma tão pura? Eu estava seguramente em desvantagem!

 

Sistelo (Arcos de Valdevez)

João-Afonso Machado, 29.10.21

A comitiva partiu dos Arcos tendo por horizonte pesadas cargas de montanha. Atravessou o Vez, mais adiante, e encheu os pulmões para a subida. A freguesia de Sistelo exigia ainda uns arfantes vinte quilómetros.

Não houve o debacle dos motores. A estrada passava à ilharga de Sistelo e o estacionamento foi na berma, onde logo se nos deparou, como sempre acontece no Minho, a igreja paroquial e a magnitude da sua torre sineira.

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Depois embrenhámo-nos na aldeia. Estas idas em grupo requerem a ciência de um certo afastamento, os minutos necessários para que a máquina fotográfica consiga operar e uma pessoa sorva as lições dos lugares, o que eles nos contam de si. Muito rapioqueira, Sistelo exulta com o fim da lavoura de subsistência: tem boas carnes, boa cozinha, tudo agora é o turismo... Assim o primeiro edifício que cruzámos disponibilizava artesanato e souvenirs!

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Nunca tal eu vira em povoados perdidos entre os montes da minha Província!

É claro,  não ficaram esquecidos os séculos da Via-Sacra popular. Rezada pelas vielas da aldeia até à estrada, copiosa lamúria, à 11ª estação já só no recolhimento de um gato cinzento da região: o minhoto anda agora menos ocupado em motivos de súplicas... Felizmente!

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Mais zela pelo povoado. Das antigas vendas fez apelativas tasquinhas. Esperto, sabedor, deixou ficar tão bem a melodia das suas águas, o fontenário da comunidade.

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E, outrossim, os espigueiros. Pedra limpa, tábuas novas, a estética pela estética, que são sempre mais os que vêm de fora, e esta cama das espigas (assim o confirmam as datas oitocentistas gravadas nos seus frontespícios) é a marca da casa, genealogia do povo.

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Somente... coexistindo agora com as esplanadas. A do restaurante O Cantinho do Abade de vistas magníficas para a magestade do Soajo, e uma posta de vitela de se lhe tirar o chapéu. Foram mais de 50 esfomeados à mesa e a genica, a simpatia, de uma só minhota a servi-los. Sempre ágil, bem disposta no traz e leva dos pratos e das garrafas. Muito bonita - acrescente-se - a deixar-me fotografá-la sob promessa, que cumpro, de não publicar o retrato. Com pena enorme: as minhotas serranas são diferentes, geniosas, queridas, de uma beleza seca, trigueirinhas, os olhos de azeviche...

E foi ela, essa formosa minhota, que me falou do «castelo». Enfim, uma torre do século XIX, apta a obstaculizar os terrores imaginativos de idos massacres sarracenos. Actualmente (mais) um restaurante, uma varanda régia sobre o vale do Vez.

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Assim o Minho está. De cara levantada, cioso da sua riqueza, hospitaleiro para quem a quiser usufruir. E sempre verde, sempre granítico.

 

Desafio Arte e inspiração|A torre mágica

João-Afonso Machado, 27.10.21

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O mundo anda complicado, meio torto, sem a noção do equilíbrio. Pode dar para deixar cair aos retalhos uma boa casa capaz de albergar umas poucas de famílias necessitadas; ou pode pegar nessas, e em muitas mais famílias, e encaixotá-las num tipo de construções Lego, umas coladas às outras, quase sem respiro.

Por isso a arte de recurso, os desenhos a colorirem as portas e janelas entaipadas, ou no exterior das muitas camadas de Lego que impelem ao céu essas torres verticalíssimas.

Assim as pessoas se movimentam na cidade, já muito alheadas destas contradições. Mais as chamam os cantares do mar, mais as atraem a falésia, o fundo imenso no bordo no qual alguém plantou o derradeiro edifício.

É este sobejamente alto, esguio, de estranhos contornos humanos. Está ali há décadas e foram aos milhares os que vaticinaram a catástrofe, o seu mergulho iminente nas rochas e na braveza das ondas que se chocavam e ecoavam. Mas não, aquele volume descomunal, a dobrar-se sobre si, parece preso por raízes ao centro da terra. E os mais atentos, que são os mais noctívagos, juram essa torre tem vida própria, a de um casal eterno, sempre enamorado, ela de pés firmados no precipício, ele abraçando-a com tentáculos de polvo escapulindo-se pelas aberturas da construção - num beijo infinito (frisam), resistente aos ventos, às chuvas, a todos os caprichos da erosão.

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Tal beijo simbolizaria o compromisso de duas vidas, por assaz dificeis fossem os seus trilhos. Nunca a plasticina quebraria uma extensão, ténue que fosse, para desmembrar um amor verdadeiro e sem medo de se mostrar. Um amor tão rijo quão versátil que um dia (ou uma noite...) terá apanhado em pleno Gustave Klimt, e o levou a desenhar O beijo a cimentá-lo. Hei-de ir em romagem a essa magia, se não me falha a memória assim entusiasticamente apresentada pela Olga Cardoso Pinto.

Não será mais um desenho colorido: serão antes os momentos de dor, formas nunca rígidas, do melhor humanamente alcançável, a perenitude, um cântico que só o luar repercute.

 

Publicado no Desafio Arte e inspiração do blog Porque Eu Posso (https://porqueeuposso.blogs.sapo.pt/).

 

Maria Antónia, anda ver!

João-Afonso Machado, 26.10.21

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Devo confessar, sentia-me verdadeiramente excitado. Tinham sido muitos anos de queixumes, a mulher, coitada, sempre do pai, preso lá entre as serras onde não chegava qualquer um. Horas, horas e mais horas de viagem, um sem número de curvas e buracos e nem uma alma durante essas penedias, o rosário inteiro rezado por uma jeitinho da Senhora à borda das ravinas, a suster os nevoeiros...

- Anda ver, Maria Antónia! -  o diacho da mulher enfiada na cozinha, eu à varanda de olhos no pátio a faiscarem de gozo, e ela nunca mais. A luz já era pouca e, de caminho, tinha ali uma multidão de vizinhos de volta do meu Peugeot. Um 404 novinho em folha!

- Então Maria Antónia? É para hoje ou para amanhã? - Ó homem, que queres tu? Acalma-te, ainda te dá uma coisa! - Pois põe a vista neste espada!

Ela veio, agarrou-se temerosa ao bordo da varanda e espreitou lá para baixo. - Ó homem, que rico carro. Isto é alguém que ganhou o totobola e se calou muito caladinho... - É nosso, mulher! Trouxe-o hoje do stand, que os negócios vão indo bem... E não querias tu ir mais vezes ao teu pai? Pois olha tens aqui uma máquina capaz de atravessar África!

A mulher abria e fechava a boca, sem saber soltar uma palavra. Havia de pensar eu perdera a cabeça, mais o que diriam o Victor e a Geninha quando chegassem do trabalho. Ora! Vão ficar tristes, decerto?! Até que lá conseguiu - Ó Nelo, ó homem, tu és pior que a canalha, não tens juízo algum!

Não me apanhava de surpresa a minha velhota. É assim mesmo, assustadiça dela. Mas quando se vir a rolar sentada naqueles estofos, a Amália a cantar na telefonia do carro, e nós a caminho da terra, tudo lhe passa e o farnel há de vir acomodado a condizer. O moço, esse, não se vai cansar de pedir para o deixar guiar um bocadito. A cachopa há de botar essas calças largas de agora, que um 404 não é para qualquer. E lá iremos todos esses quilómetros malditos com num avião cheio de luzinhas...

- Ó Maria Antónia, vem comigo ver a mala do meu 404. Cabe lá meia porca das que o teu pai costuma matar em Dezembro. Olha, para lhe adoçar o bico, trouxe do armazém duas caixas de morangos. Partimos amanhã, que é sábado, cedinho. Os filhos hão de vir connosco visitar o avô e a Geninha pode trazer o conversado dela, que é do modo sempre fica a saber com o que conta...

 

"Silêncio!"

João-Afonso Machado, 24.10.21

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É hora do poema,

a hora da concentração,

 

- Ó Ema, ó Ema,

atende o telefonema

e diz-lhes que não!

 

- Que não estou nem sei de mim,

é a hora do poema

e tu conheces, Ema, velha servente,

eu fico doente,

nunca anjo, santo ou querubim,

 

diz-lhes Ema,

não sei de mim nesta escuridão.

Dás-lhe toda a razão, Ema,

sim, sim, sim,

e não! enfim,

 

nada de recados Ema,

olha-me pelo poema

não vás em rapapés,

(anoiteceu, o patrão faleceu…).

 

Silêncio! – impõe-te assim Ema,

por quem és!

 

 

Pacotinhos de incoerência

João-Afonso Machado, 23.10.21

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A "fábula" foi-me contada assim: ela desconhecia a minha amiga mas logrou arranjar o contacto. Convidou-a para um encontro n'A Brasileira. Por qual motivo? Marcou hora e surgiu, a madame, empoleirada nuns saltos stiletto (penso que assim se diz), pouco faltando para o trambolhão e para se fracturar toda; vinha embrulhada em peles de raposa e com um penteado saído há minutos do cabeleireiro. (Não, não trazia boquilha somente pela inoportuna razão de não fumar.)

Sentou-se, pediu um chá, descarregou a bílis e foi-se, tão misteriosamente quanto tinha chegado, sempre vai não vai para se estatelar na calçada húmida.

Isto ocorreu há uma duzia de anos. Ao jantar, a minha amiga, ainda embasbacada, a tentar descrever a figura e eu a rir, a rir, a rir. Como se a estivesse a ver e a ouvir, - meia boca pregando a paz, a outra meia rogando pragas vicentinas.

Que não se afligisse a minha amiga. A história de cada um está repleta disto mesmo. Eu sou tudo menos apologeta e, sinceramente, entendo nada ter a pregar aos meus semelhantes. Roubem-se, matem-se, esfolem-se... Mas algo exijo, e sem isso vamos a parte nenhuma, - coerência. Uma afirmação feita pode ser retratada; mas jamais modelada ao sabor da argumentação.

Por tudo, penara a madame o piparotezinho que se impunha. Era dessas que querem curar todas as angústias do mundo, mas vivendo em conflito aceso com ele e consigo mesmas. Mais uma senhora da guerra, «sempre com o desembaraço de proprietária do destino», como escreveu Vergílio Ferreira.

 

Desafio Arte e inspiração|O Sobreiro Grande

João-Afonso Machado, 20.10.21

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Nunca tive outro ofício. Nasci entre sobreiros e entre sobreiros vivi e casei, que a família da Mulher também andou sempre nestas lides. E ambas - a minha e a dela - trabalhando para o mesmo patrão, o mais rico de muitas terras em redor. Porque isto, todos os anos, são carroças e carroças a saír daqui, carregadinhas de pranchas de cortiça, consta que a caminho do norte, onde estão as fábricas das rolhas.

O patrão é muito rico, mas conhece bem o que tem e sabe governar as suas propriedades. Nós lá as vamos vigiando, com vagar para as nossas hortas e uns biscates, até Agosto, quando é de pegar no machado e começar a descortiçar. Diz o patrão, não há mais habilidosas mãos do que as minhas, conforme as herdei dos meus avós, "machados" de alcunha posta e apelido firmado por esse jeito vindo tão de trás.

Pois em toda esta extensão um sobreiro restava que se plantou no coração do patrão. Diziam-no com mais de 300 anos, e consta ali se enforcassem, antigamente, os criminosos e se deixassem as suas cabeças espetadas nos galhos. Era o pai do sobral inteiro! Dele já não se extraía cortiça, apenas a sombra a refrescar o mundo todo! O Sobreiro Grande dera até o nome a um tasquito na berma da estrada que passava perto. E, certo era (o patrão nem queria tocássemos no assunto), os seus ossos - o nervo dessa árvore com o berço esquecido -  andavam já a fraquejar.

Mas no final do inverno, uma noite de tempestade das bravas, o Sobreiro Grosso rachou dois metros acima do solo e tombou para sempre.

Ia dando uma coisa ruim ao patrão. Retirou para a cidade, deixando ordens para encastoar em pedra e cal o pé que ficara hirto. Veio o povo todo testemunhar o desastre, o jornal falou dele e dos "medonhos matos" da herdade. Que procissão! Parecia mesmo os filhos, netos e bisnetos da velha árvore a aproximarem-se para a velar. Duas sobreirinhas novas, descortiçadas por mim a primeira vez ("depiladas", diz o Manel Barbeiro, a rir), choravam ante a falta de remédio para um cadáver a perder cores. (Que aquilo só era lenha para as lareiras.) E a mãe delas, muito entrada nos anos, coxa larga e meio empenada pela vida, apanhou-a o José Malhoa também sucumbida, - as mangas arregaçadas, já familiarizada com a morte - e assim a retratou.

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Não sei porquê, zanguei-me e ainda lhe atirei - Ó compadre Malhoa, vossemecê não tem mais que fazer? Deixe lá as maleitas, vossemecê que se gaba de ir tanto à cidade, ocupe-se com uns fados e o mar, dê trato a mulheres bonitas, não seja o pacóvio que anda aqui em tais artes de tristeza! Diz-me assim o compadre - Compadre Machado, não venha cá com lérias que isto não é obra minha mas do Senhor Rei D. Carlos!

E eu calei muito caladinho. Afinal de contas, Sua Magestade era o dono desse sobral sem fim.

 

Publicado no Desafio Arte e inspiração do blog Porque Eu Posso (https://porqueeuposso.blogs.sapo.pt/).

 

O meu pisco-pedreiro

João-Afonso Machado, 17.10.21

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Oficialmente, acabei caçando, em razoável tiro fotográfico, um rabirruivo. A não me falhar o tino, lá para a Beira, decerto numa estreita ruela de falares tão familiares que só lhe faltava vir comer à mão das pessoas.

Se é de rabo ruivo - é. E por isso o seu nome fala por si mesmo. Mas nós sempre lhe chamámos - pisco-pedreiro.

Notas técnicas de lado, o passarito entretém-se muito nos telhados. E gosta de paredes de pedra. Anda o dia todo esvoaçando das janelas para as coberturas, ou a fazer equilíbrio em qualquer cume granítico. Tchac-tchac-tchac - os dotes melódicos não lhe dão para mais. Vem ao chão, sim, que é insectívoro e nem todo o seu alimento é alado...

Pois gostei muito de o trazer comigo. Tenho já muitos, mas decerto este valeu a correria do Verão, foi um descansado apontar da máquina numa viela do Interior.

E foi uma memória. É sempre uma memória. De criança habituado aos piscos-pedreiros nas telhas do meu telhado, musguentas, cheias de bifes que os consolavam, dar com eles é vestir os calções, sentar-me ao sol na varanda e sonhar - Quando for grande hei de ser...

 

Por aí...

João-Afonso Machado, 16.10.21

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Disseram-no ornamento de jardins milionários, contaram histórias antigas e cavalheirescas e gentis damas cavalgaram ginetes de chapéus dourados pelas suas penas. Ficou na memória das gerações pela sua beleza - quão desantentas e pouco imaginativas são as gerações, incapazes de medirem a ameaça felina de um fixo olhar galináceo!

 

Desafio Arte e inspiração|O sonho é a vida

João-Afonso Machado, 13.10.21

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Usava uns óculos de lentes espessas e o cabelo particularmente desalinhado, farripas dele. O café inteiro já o conhecia, de tardes todas sentado a uma mesa, mirando em êxtase a cidade que se desbobinava ante a vasta vitrine. Em papeis soltos, desorganizados, que tirava e levava ao bolso do casaco, escrevia exultante coisas súbitas.

Invariavelmente, o empregado trazia-lhe uma chávena com uma bebida quente e um copo de água. E um cinzeiro que era quase um porta-contentores. Agradecia, sem tirar os olhos do seu mundo, e acendia o primeiro de um maço inteiro de cigarros fumados essa tarde de escrita e inquietação.

Creio, às vezes falava sozinho. Agitava-se na cadeira. Quando não, talvez se fechasse, a passar pelas brasas. Aquele cantinho do café era dele e o tempo todo também. Conheciam-no por "Poeta" e havia quem trocasse ideias com ele ou deitasse circunspecto olhar ao ler algum escrito seu.

Aconteceu isso comigo, a pretexto de lhe pedir o isqueiro emprestado. Palavra puxa palavra,  - Machado - apresentei-me; - Alexandre O'Neill - retorquiu, a firmar este recente conhecimento. E, respeitando a minha curiosidade, deu-me aos olhos o que acabara de escrever: «Ao lado do homem vou crescendo/E defendo-me da morte povoando/De novos sonhos a vida».

Foi há muitos anos. Alexandre O'Neill continuou ironizando o quotidiano através da vitrine do café, tornou em pedra escrita as suas ansiedades. Quando foram publicadas as suas Poesias Completas (1951-1986), comprei-as logo.

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E revejo-o agora em El sueno de Frida Klalo, avalio melhor o quantum surreal (ou inconsciente) da nossa existência.

Não sei porquê, a Ana D. - Poderia como eu navegar estas águas/e poderia também/rumar iguais mágoas...

 

Publicado no Desafio Arte e inspiração do blog Porque Eu Posso (https://porqueeuposso.blogs.sapo.pt/).

 

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