À boleia
A auto-estrada morria em Vila Franca de Xira e eu estudava na Faculdade em Lisboa, mas vinha com frequência ao Norte. Andando as finanças por baixo - um estado quase crónico - o remédio estava num passeiozito à Rotunda do Relógio, com vénia a S. Cristóvão, sempre presente na sua benção a estas tormentosas viagens, e o trajecto final (a pé) até às bombas de gasolina já nas imediações das portagens.
Era um self-service pioneiro. Assim abordava os condutores enquanto abasteciam - Desculpe, vai para o Porto? - Às vezes respondiam ficarem por Coimbra, ou assim... Não interessava - Então, se não se importa... Eu lá depois desenrasco-me. - E eles anuíam, sem jeito de dizer não.
Nessa manhã, um cavalheiro, alto, bem constituído e bem forrado com um casaco de pele (era inverno) atestava o depósito do seu espectacular BMW 3.0 CSL. Aquilo seria percurso dos extensos... Enfim, a conversa usual e - Sim senhor, vou para o Porto e levo-te!
Fiquei consolado! Ainda por cima numa máquina daquelas! Entrei, o meu salvador tirou o seu abafo (havia ar condicionado, claro), sentou-se ao volante e, reparo então, à sua cinta um coldre com um revólver lá dentro. Não contive uma exclamação - Armado?! - Que queres pá, eles andam aí de G3, nem assim a gente se defende.
Este «eles andam aí de G3» deixou-me mais tranquilo. E foi uma viagem excelente (para a época...), o bom homem pagou-me o almoço num qualquer restaurante de berma de estrada, contou a sua vida toda. Era um «empresário da noite», aliás o proprietário do estabelecimento tripeiro de pior fama. (Anos volvidos um nosso valhacouto de despedidas de solteiro e efemérides congéneres.)
Mas bom condutor, seguro, responsável. O bólide de um conforto inexcedível. Assim pelo meio da tarde chegámos ao destino, já amicíssimos, com este meu mestre de Moral a oferecer-me um livre-trânsito para o dito seu santuário.
Mais tarde estive com ele, nesse período em que a rapaziada começava a casar e dizia adeus à liberdade em noites de muito álcool e muita asneira. O meu prezado «empresário da noite» viria a morrer, entretanto, de forma violenta, e por isso omito nomes.
Nunca esquecerei o seu BMW 3.0. Nem a suadela suportada horas dentro dele. Porque não tirei o blusão, apesar do ar condicionado, não fosse o pistoleiro topar a faca de mato que trazia escondida, embainhada nas calças. Por mera cautela, obviamente. Mas vamos que ele, de revólver à mão, se convencia de más intenções nesta minha alma tão pura? Eu estava seguramente em desvantagem!