Desafio Arte e inspiração|O sonho é a vida
Usava uns óculos de lentes espessas e o cabelo particularmente desalinhado, farripas dele. O café inteiro já o conhecia, de tardes todas sentado a uma mesa, mirando em êxtase a cidade que se desbobinava ante a vasta vitrine. Em papeis soltos, desorganizados, que tirava e levava ao bolso do casaco, escrevia exultante coisas súbitas.
Invariavelmente, o empregado trazia-lhe uma chávena com uma bebida quente e um copo de água. E um cinzeiro que era quase um porta-contentores. Agradecia, sem tirar os olhos do seu mundo, e acendia o primeiro de um maço inteiro de cigarros fumados essa tarde de escrita e inquietação.
Creio, às vezes falava sozinho. Agitava-se na cadeira. Quando não, talvez se fechasse, a passar pelas brasas. Aquele cantinho do café era dele e o tempo todo também. Conheciam-no por "Poeta" e havia quem trocasse ideias com ele ou deitasse circunspecto olhar ao ler algum escrito seu.
Aconteceu isso comigo, a pretexto de lhe pedir o isqueiro emprestado. Palavra puxa palavra, - Machado - apresentei-me; - Alexandre O'Neill - retorquiu, a firmar este recente conhecimento. E, respeitando a minha curiosidade, deu-me aos olhos o que acabara de escrever: «Ao lado do homem vou crescendo/E defendo-me da morte povoando/De novos sonhos a vida».
Foi há muitos anos. Alexandre O'Neill continuou ironizando o quotidiano através da vitrine do café, tornou em pedra escrita as suas ansiedades. Quando foram publicadas as suas Poesias Completas (1951-1986), comprei-as logo.
E revejo-o agora em El sueno de Frida Klalo, avalio melhor o quantum surreal (ou inconsciente) da nossa existência.
Não sei porquê, a Ana D. - Poderia como eu navegar estas águas/e poderia também/rumar iguais mágoas...
Publicado no Desafio Arte e inspiração do blog Porque Eu Posso (https://porqueeuposso.blogs.sapo.pt/).