Desafio Arte e inspiração|Ma belle époque
Sou malquistamente do Porto, confesso. Dos quatro costados portuense, mas nunca cidadão da capital portuguesa de la bourgeoisie. E sou muito rico, podre de rico, não porque haja mercanciado (uma sardinha que fosse...), simplesmente porque herdei. Assim a tripeira Invicta me enfada e me obriga a viajar, um acto, para mim, tão elementar quanto o da respiração. Além do mais, adquiri gostos caros, luxuosos, e foi em Paris que topei o meu Talbot - confesso já não sei exactamente quando; lembro, somente, regressei com ele e com Madame Bovary, que eu conhecera, entretanto, no Cafe de la Paix, aux Boulevard des Capucines, em tarde quase outonal, com muitos predicados literários.
(Porque, é lógico, nas artes das Letras, e outras, é Paris, jamais o Porto...)
Ela, encantadora. Très insinuant. La Guerre etait fini, alors c'etait la diversion... Tocavam-se ritmos ainda desconhecidos nesta nossa Republicazinha, era o charlston, et Madame (ou Mademoiselle...) Bovary, de cabelo à garçonne, saia subida, saltaricando, rodopiando os colares ao pescoço, de uma energia que não se compadecia com tardes ao piano... Ajeitei a fatiota, compús o laço do colarinho e o chapéu que se colava à brilhantina, e investi que nem Nun'Álvres, esse desperdiçador. Eu não era peco em tais torneios... Fui-me chegando, - Ça va bien?, c'est mon plaisir... - Madame Bovary (assim se apresentou, entrementes), inspirou a boquilha, e, mais dolente, dirigiu o seu requebro para mim...
Safei-me como soube. Aliás, sobremaneira menti. Dei-me como refugiado au Portugal, ressonei o estrondo dos canhões, os horrores das trincheiras nas Flandres e... trouxe-a comigo.
Julgo, na realidade era casada. Mas sobre isso nunca falámos.
O Porto burguês recebeu-nos mal. As portas conhecidas fecharam-se-nos. E a humidade era imensa. Madame resguardou-se, envergou o vison et son chapeau. Eu, mais aclimatado, somente lhe oferecia o braço. Et cigarrettes, très dificilles cigarrettes, celles-la que ma chérie aimait, seulement achetés en Lisbonne... Vivemos na nossa "Toca", a Nevogilde, um bom par de anos. Um quotidiano modernista que, de surpresa, o meu amigo Almada Negreiros, parceiro de infindos serões de Arte, apanhou em flagrante.
Ainda hei de lhe perguntar com autorização de quem. E quem lhe permitiu ilustrar a minha vida de então. É que, sinceramente, não me recordo!
E num atavio tripeiro, tomando conta desta publicidade, expandi-me verbalmente - coza-se, carago!!!
Publicado no Desafio Arte e inspiração do blog Porque Eu Posso (https://porqueeuposso.blogs.sapo.pt/).