Pelos canais de Bruges
Assim cada embarcadiço fosse um medievo saco farto de cereal... Mesmo aquele fantástico par azul de olhos ferozes, a cada vez que me levantava para fotografar. (E eu repimpado neles, nos sacos, dono do mundo o trajecto inteiro.) Conduzia a lancha a ganância do ganho, bancos repletos, e uma vozinha fanhosa que o ruído do motor abafava. Restava-me a percepção daqueles meandros, os remos da minha imaginação.
O canal sobejamente labiríntico. De águas escuras sem remédio, impenetráveis. Agora talvez por efeitos dos óleos, e antes em resultado do que vinha das janelas aos baldes. Buracos negros, como escotilhas rentes à maré, indicavam o refúgio e a idade pétrea dos monstros.
Corremos os intestinos de Brugge. Por vezes rasando as cabeças no vão das muitas pontes onde expressões vazias nos observavam, como quem olha fardos de farinha vindos da moenda.
Quase sempre navegámos as traseiras da cidade. Sucediam-se os palácios, forças inquebrantáveis a obrigarem o canal a curvar submisso.
Quando não, mais floreados, não esqueciam a janela da princesa, curiosa e sempre melancólica.
(E a jurar a si mesma, certamente, aquele cisne é o seu embruxado cavaleiro a rondar-lhe o pátio, sapateando como um cavalo ferrado o silêncio das maldades mais atrozes.)
Por isso as tílias, os carvalhos, as heras lançadas dos terraços às águas: amarras, escadas, lianas em selva burguesa, sem bússola nem cronómetro.
Mas os dias amarelecem outonalmente e o mirante transborda lágrimas tão verdadeiras quão a elegância das suas formas.
Na margem oposta, o são gargalhar da moçoila visitada pelo aprendiz, vindo na bateira com a encomenda para o senhor paizinho. Só mesmo se ela o desprezasse alguém toparia ali qualquer muralha...
Enfim, rezam todos pardas orações rogando não desembarquem os piratas, ávidos de riquezas acumuladas. Brugge fecha as janelas e espreita frinchas ao mais pequeno alarme,
ou envia archeiros dissimulados na frondosidade das amuradas,
levando sempre as mãos aos céus, tentando erguê-las acima do pináculo da igreja de Notre Dame
nesta, como em outras histórias, omnipresente, abençoando com as vestes da sua sombra o burgo, nos muitos séculos de vivência levados.
Se tudo isto é uma peça mal encenada? Reparo agora - não! Mal contada será, mas o que se trata é apenas a realidade mais vera, essa que se acumula sob águas mortas-vivas, entaipadas como padecentes de outrora, vista cansada da grandiosidade que jamais abdica de si mesma.