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FUGAS DO MEU TINTEIRO

Imagens e palavras de um mundo onde há menos gente

FUGAS DO MEU TINTEIRO

Imagens e palavras de um mundo onde há menos gente

Desafio 52 semanas -5|Os meus Pais?

João-Afonso Machado, 31.01.22

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Evidentemente, não posso falar ou publicar sobre Eles, os meus Pais. Atrever-me-ei a ficar pelo óbvio, somente, - a minha Mãe foi pioneira na escolar educação de infância e o meu Pai o melhor caçador de coelhos e perdizes que alguma vez conheci. Ponto final, parágrafo.

Depois os anos foram passando, os Pais velhinhos de idade muito aconchegados à lareira e um dia o Pai, o ano seguinte a Mãe, tivemos de os levar lá acima, ao topo da freguesia, onde já descansavam os corpos dos avós dos nossos avós.

Houve lágrimas, confesso. mas não demorou a percepção de que os Pais, afinal, tinham ficado connosco. E, tal como na meninice, surgiam no quarto à noite, vinham ver se tudo era tranquilo. Os sonhos poem a nossa vida a nú e Eles lá se manifestavam como sempre: protectores, zangados, meigos e compreensivos ou intransigentes... Sempre devotados e atentos, enfim.

Não, é absolutamente certo - talvez devido à minha situação de reformado, até - hoje acompanho os meus Pais assaz mais frequentemente do que antes. E o facto de haverem ultrapassado a idade tornou-os de uma juventude comovente. Entre as roseiras e as camélias do jardim é agora onde os Pais estão bem (Qual lareira, qual carapuça!) E passeiam e voltam a passear na mata, dir-se-ia terem ganho asas, leveza, uma imensa destreza, a gente ri-se, regala-se, com este seu eterno namoro.

 

(Desafios da Abelha - https://rainyday.blogs.sapo.pt/52-semanas-de-2022-introducao-392169)

 

Um dia, quiçá, depois de muito...

João-Afonso Machado, 28.01.22

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Da escrita cada um sabe de si. Perdoar-me-ão se disser que opto pela escrita literária; e aceitarão quando digo ainda estou longe, muito longe, da razoável literatura.

Estes meus joelhos assentes no confessionário têm todas as chagas resultantes do último volume de crónicas publicado por António Lobo Antunes, coisa vasta povoada de imensos pequenos episódios dos seus dias e dos personagens em que se transforma. O mesmo é constatar o seu olhar atento, minuncioso, sobre o mundo. Eu creio em Lobo Antunes a crença em Deus e uma vida a interpretar a existência. Acredito na sua Guerra Colonial de dolorosa memória, na medicina que abandonou e no jeito singular em que o seu sentir aterra nele mesmo e comanda a sua escrita. Por isso percebi que eu falo da "ditadura" da caneta tanto quanto esse Mestre.

(Não, não o copiei. Foi, no maior rigor, a verificação de que as palavras eram as mesmas.)

Fica a noção clara da escalada de cada um e a resignação perante a genica de quem vai mais além. Também publico livros... Mas o blog dá-me o alívio do dia-a-dia. Se escrevo para os outros lerem? - alguma vez pensarei nisso.

Lobo Antunes, herói, conta as suas origens em Nelas. Beirão... Deixo-lhe, então, por homenagem, as maias de Santar. Ele deve conhecê-las, são de ali ao lado. Eu, a custo, vou-o conhecendo mais porque não ser tanto doi.

 

Desafio 52 semanas -4|Loch Ness

João-Afonso Machado, 25.01.22

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Visitar lugares é um cheiro tonto, mesmo vazio. Porque o andar não come ruas ou monumentos, menos ainda a hóstia do prospecto turístico. Haja saúde e pernas e mente para vasculhar aqui e acolá, mais perto ou mais longe. Com o devido pontapé na ânsia da abrangência, uma entorse do miolo que tolhe tudo, mesmo as montras e as janelas dos indígenas, esses que vivem onde gostamos de saber como é a vida lá.

Em boa verdade, o planeta não é desbravável. Nunca iremos além da nossa paróquia, o complexo lugar dos imensos e inatingíveis comparoquianos de mil e uma surpresas... Mas a tentação de galgar o mapa, espetar neles alfinetes de cabeça larga é comum, é um palmarés. Assim perdi o medo aos aviões com imensos projectos e o centro do mundo fixado na Escócia. Onde um dia desembarquei.

A Escócia seria (e é) povoada de castelos, de fantasmas, de gado lanzudo e de prolongadas cachimbadas. De rios: ou truteiros ou nascidos no pipo, a transbordar de whisky desaguando em bares acolhedores. E de, cobrindo toda a parada, o Loch Ness e a minha querida, fabulosa, Nessie, essa paixão.

Coisinha amorosa, a Nessie. Uma palpitação constante neste fraco coração. Foi então, em Aberdeen, ameaçado pela síncope,  que entre os mais turistas me impus: passarinhar na Escócia sim, mas esqueçam as destilarias, as almas penadas e vamos ao que importa: a minha Nessie, o seu Loch. O roteiro assim o mapeamos, iriamos para norte - até Inverness, até ao Mar do Norte - apreciámos o nativo a queimar o leite epidérmico e nós de pullover nesse Agosto quase polar, e alcançámos, finalmente, ruinas castelãs junto do abençoado lago. Só faltava o principal...

Pois corremos o perímetro todo!!! Circundámos Loch Ness comigo de mãos em concha à volta da boca - Nessie! Nessie! Where are you? Please, come here! Nessie! Nessie!... 

Debalde. Nessie prima pela timidez. Dizem os beberrões locais, a vê-la, só em madrugadas de lua cheia. Ainda alvitrei, umas horitas, mais logo..., mas a revolta na Bounty ameaçou-se num motim vomitado de sangue e retaliações de pescoço pendurado nos seus mastros. Diplomaticamente acatei.

E assim, mesmo lá, não realizei a minha mais ambicionada visita. A não ser sorvendo nevoeiros tão líquidos quão a mais cristalina água. Tencionando regressar, fotografar Nessie desnuda a banhar-se, beijá-la na boca e poemizá-la, acarinhá-la, numa intimidade só nossa e jamais revelada. 

 

(Desafios da Abelha - https://rainyday.blogs.sapo.pt/52-semanas-de-2022-introducao-392169)

 

A 24 de Janeiro

João-Afonso Machado, 24.01.22

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Abri ao calhas um livro do Cardeal Tolentino de Mendonça como se soltasse uma rolha da garrafa de espumante: certo de que acertaria na mouche. E foi deste jeito - «(...) há um dia reservado para o chamado "tempo do deserto". Estamos habituados a pensar no deserto como um lugar, mas pode bem ser um tempo».

E deixei-me por aí. Por esse deserto de compreensão e estímulo e afecto. Onde pára a minha Mãe? Os seus 93 anos seriam hoje, em instantes vagos, carecidos de palavras suas, um dito antigo e controverso, talvez uma discussão nossa - a Mãe sempre dogmática, eu de todo mais pragmático - tanta certeza versus tanta maluquice...

Ficará para a altura devida o instante da leitura de T. de Mendonça, desse livro que aguarda a finalização de outros que leio. Mas é o «deserto do tempo» que me tolhe quando chamo em mente a Mãe, e a Mãe responde-me aos neurónios, na memória, numa pouco suportável ausência fisica. Resta-me o hábito e a aceitação. E uma forçada, mas fiel, comemoração dos seus anos no «deserto do lugar» porque ao outro volto as costas e piso, faço por pisar, o inferior destino do tempo, o relógio e o contra-relógio da vida.

(A Mãe gostaria: numa página aberta simplesmente assim, a Verdade estava lá toda explicada, obra e querer de Deus!...)

 

Verín

João-Afonso Machado, 22.01.22

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Uma localidade residente no meu coração, Verín, os anais do bivaque das derradeiras tropas d'El-Rei. Notícias que se entrechocam, esperanças e frustrações, coragem e espionagem. Houve de tudo nesses meses em que a  Bandeira não se quis derribada, houve essencialmente a crença em amanhã. 

Verín não é um percurso inalcançável. É já o Tamega a caminho de Portugal navegado por memórias e nacos de História. Mesmo nos dias mais carnavalescos de uma população toda na rua em centenas de disfarces, como num disfarce só os soldados da Bandeira ansiavam por ordens para marchar.

Vale dizer: Verín tem de ser uma estadia de morosidade, de meticulosa reconstituição daquilo que há mais de um século lá se viveu. Decerto não faltará a literatura nem lugares de romagem. Nem mesmo o testemunho transmitido nas gerações de nuestros hermanos...

 

Desafio 52 semanas -3|Memorial do Mix

João-Afonso Machado, 17.01.22

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Quantos anos terão passado desde essa manhã de geada em que o Alberto, o pastor, me chamou a sua casa?, entre o solene e o agitado, era assunto urgente e do meu interesse.  Não recordo, sei que segui na sua peugada miudinha e veloz, enquanto me explicava atabalhoadamente tinha para mim algo muito especial, um gatinho chinês.

Demorei a perceber que o Alberto se referia a um siamês. Ainda assim não acertando, coitado, tratava-se de um gato pardo, pelagem belíssima de tigre de jardim. E, logo topei, um mariola, arisco mas a gostar do colo em que viajou comigo e com todas as pulgas da sua colecção.

- Obrigado, Alberto! Era mesmo um bichano assim que eu queria. Fico a dever-lhe um cachorro...

Coisa rara, foi familiarmente bem recebido. Um brincalhão com graça e um grande sentido de independência e mando. A varanda ficou por sua conta, não temia os cães e banqueteava-se com lagartixas, uma chatice que lhe prejudicava o lustro do pêlo. Abordá-lo com meiguice era uma coisa; outra provocá-lo - lá vinha unhada certa e afiada. Até o Pai, pouco amigo dos felinos, apreciava as suas proezas, ria-se e exclamava - Eh gato fadista!

Tinha as suas pendulares e assíduas ausências. Por causa do femeaço das vizinhanças, obviamente. Era um galã corpulento, felpudo e autoritário. Por isso alguém o baptizou com o nome temido de um mafioso cá da terra, o Mix.

E o Mix ganhou uma fama inexcedível por toda a quinta. Uma égua, a cozinheira, deram à luz tardiamente? Pois fora obra do Mix, o gatarrão... Quando, de regresso, se alapava na varanda, indiferente a comentários, gozando os seus (eróticos) sonhos e o solzinho abençoado, já ninguém se atrevia a pedir licença ao Mix para se sentar naquela cadeira!

Um atleta, um d. juan, um espadachim. Vaticinava-se-lhe uma longa vida de romance e aventura... Mas eis que, num sopro, o Mix se apagou, morreu. Geral consternação! E não foi necessária a autopsia: lá em casa, declarado o óbito, a causa para todos só podia ser uma... O HIV, pois claro!

 

(Desafios da Abelha - https://rainyday.blogs.sapo.pt/52-semanas-de-2022-introducao-392169)

 

Burgos

João-Afonso Machado, 15.01.22

Espreito a cidade do cimo da muralha do finado castelo. A catedral é a grande evidência e, mesmo onde estou, sinto os seus pináculos a comicharem as minhas narinas.

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Acrescentaria, sem medo de exagero, esse templo imenso, a Catedral de Santa Maria, um parto do século XIII, quase absorve Burgos, pouco deixa aquém dos montes no horizonte, erguida a festo acima deles no gótico mais exuberante que pela Península possamos encontrar.

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E em maré de comemorações natalícias, a catedral nocturna dá de si o melhor,

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tomada de cores diversas, ângulos infindos, arestas cortantes,

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ora mais quente, ora mais fria; ora menor, ora maior,

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cercada de gente empunhando máquinas fotográficas ou, simplesmente, pasmando e passeando ao longo do seu logradouro, a Plaza de Santa Maria.

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O resto da sua história, que é muita, temos nós, depois, de puxá-la das entranhas. Burgos foi a capital do Franquismo durante a Guerra Civil espanhola. Antes tinha sido o berço do romântico medievo El Cid Campeador,

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crescendo ao longo do rio Arlázon, do qual os nossos Lima, Neiva, Cávado, Ave, etc, etc, se rirão desalmadamente,

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conquanto não dispondo, talvez, de tão bonitas e alegres e bem frequentadas marginais.

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Burgos é, por fatalidade, a noite espanhola também. E variadíssimos outros monumentos, arvoredos e momentos bonitos neles.

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É um passeio sempre no início. É, acima de tudo, uma raça,

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a do Perdigueiro de Burgos, a primeira estátua que topei, logo à chegada, a complacente expressão deste companheiro, uma justa homenagem que lhe fizeram os caçadores locais.

 

Hotel Ruína*****

João-Afonso Machado, 14.01.22

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Venho de parte nenhuma mas já descansava os pés e as costas tão enferrujadas da chuva. O dia hoje é de sol, decerto de boa colheita no estacionamento dos carros, a verdade, porém, é que aproveitei o frio nocturno para viajar... Até tomei o pequeno-almoço num self-service de berma do passeio, estabelecimento verde acaixotado, umas excelentes fatias de pão de anteontem.

Agora, o repouso. Ena!, ena!, grandes inovações no jardim aqui do hotel... Podaram os cactos, os picos, podaram as silveiras, desenharam arte junto da entrada principal! Isto presta-se a uma bela sorna na varanda do meu quarto!

(Gosto destes hoteis modernos, sem check-in nem check-out, sem recepção nem horários.)

E o meu quarto habitual livre, sorte a minha, não fizera reserva. Naquele cantinho, cama baixa e colchão de cartão, o espaço todo para a minha sacola e os andrajos que carrego comigo. Houvesse alguém por aí, - mas a esta hora... - sempre lhe pediria lume, a minha provisão de piriscas é farta. E talvez mesmo uma voltinha no picadeiro, meia dose fiada de cavalo a dançar-me os sentidos... Deve ser deste maldito covid, a clientela do hotel baixou para menos de metade. Oh turistas da vida, por onde vos refugiais?

(Gosto deste hoteis modernos, cultivando o ambiente, enxameados de latas de conserva abertas e vazias...)

Os medos, esses fantasmas, onde estais?, decerto sem lareira, sem uns pauzitos apanhados cá fora, o fogo colorido e as paredes mantidas negras do fumo, como no charme das aldeias.

Bom, vamos mas é ao descanso. De caminho dá-me a fome da ressaca, arranco cedo amanhã. Uma só passagem antes pelo toillete...

(Gosto destes hoteis modernos com toilletes comunitários: mais acessíveis e facilmente localizáveis, basta seguir a correnteza do cheiro.)

 

León

João-Afonso Machado, 11.01.22

Vale a pena estudar a formação dos reinos ibéricos surgentes após a ocupação sarracena... Leão é um dos primordiais e, dessa história toda, restaram imensas marcas. Entre outras - talvez a principal - a respeitável cidade de León.

Essa fatia não é agora chamada e ficará para os entendidos. Estamos em León presente, justamente numa cidade que encanta, convida e não se quer esquecida. Curiosamente, não distante da nossa fronteira a norte.

León, ou o seu miolo, é a Catedral de Santa Maria de Regla. O gótico que vinca a Região,

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porquê não sei, pensando no românico a sul, o nosso, o português, menos esculpido e mais vetusto e rude. Que se pronunciem os leitores... Mas há imagens que não esquecem,

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interiores que magnetizam

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e, sobretudo, aqui em León, os famosos vitrais, uma viagem densa de espiritualidade, momentos de traves e naves,

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templos sempiternos de culto e vida, este o estro de tantos deixados consigo na arquitectura da pedra embaixadora da imortalidade.

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Depois León é a noite espanhola, a omnipresente Plaza Mayor, foi o Natal e as luzes, é o quotidiano,

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as vielas e os amores, muros da cidade, luzes esparsas a pedir sentinelas

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e, no dia seguinte, o tempêro das praças e ruas,

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a quieta manhã de uma gente que tarda em acordar... Uma gente tão distante, só do lado de lá, despercebidamente do lado de lá de um marco qualquer a partir do qual o mundo é outro hemisfério e não sinto ficar-me bem falar outra língua senão a natal. Porque, apesar de tudo, o entendimento é unânime e, pelo andar da carruagem, um novo dialecto surgirá fatalmente, só não sei se o portunhol ou se o espanholês.

Para ustedes. Por supuesto.

 

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