Desafio 52 semanas -2|A minha felicidade
A desnecessidade de listar os dias, como quem acrescenta notas sucessivas ao seu curriculo, e fica enredado nos prazos do sucesso, transmite-me uma agilidade de espírito libertadora. É quando se abrem as gavetas à procura de outras palavras, escondidas no bico desta ou daquela caneta. Elas são muitas, herdadas, oferecidas, compradas... Às vezes esquecidas, semimortas de sede num deserto de inacção, pejadas de crostas escuras a lascarem-se do corpo e eu com mil cuidados, a lavar-lhes as chagas, dando-lhes o tinteiro a beber. Uma troca de olhares, gratos e enternecidos, possivelmente uma escrita mais nostálgica... Ofereceu-me o meu irmão uma carteirinha de cabedal com quatro esferográficas Parker do nosso Avô - Toma, tu é que escreves! - e eu, comovido, tacteando aquele estojo que de repente me voltou à memória, saído do bolso interior do casaco do Avô, eu revendo o Avô na sua grafia miudinha, corri a tentar fazer melhor do que aquilo que sei, sentei à banca e fui de instante em instante atrás do Avô, sempre o Avô, as suas colecções, os seus livros, a fotografia e os slides do Avô, lugares do Avô, o Avô é vivo e eu gosto do meu Avô. Agora mesmo estou com o Avô na sua quinta na Bairrada, a cana de pesca furando silvados ribeirinhos, todas as manhãs, e o peixe, no regresso, enfiado pela guelra num caule de planta brava.
É o meu mundo, vale dizer, o meu presente: feito de memórias redivivas e de sonhos atirados para a frente. A espremer, sempre a espremer, as sensações, as emoções, sempre em busca do melhor caminho literário. Eis aí muitíssimo da minha felicidade.
Não me desloco desarmado, que "eles" andam por toda a parte. Comigo, a espingarda ou a Canon. Ou ambas. E seria o extase a presença mais assídua dos meus filhos...
(Pronto, a caneta tomou o freio nos dentes, perdi a mão nela, já lá vai em Beja, com o meu primogénito e eu próprio, é o seu baptismo cinegético, ofereci-lhe uma cal. 20, em anos de ouro do Jardel, que perdigueiro! Lado a lado, pai e filho, o Jardel adiante, num baixo, parado, uma estátua. - Atenção! - E as armas prontas, a pata dele dobrada, a cauda abanando, para que dúvidas não ficassem. E foi a restolhada das asas, uma perdiz para a esquerda, outra para a direita, dois tiros, cada um tombara a sua! Um abraço, o entusiasmo do rapaz, o seu desembaraço, o cobro do Jardel, depositando as peças na minha mão... Eia, eia, caneta, já chega, já te falta o folego!...)
Os anos, no seu trote, vão-se saciando das nossas próprias forças, depois recicladas em energia dos que ainda fazem a curva ascendente da vida. São noções, são livros, são conhecimentos - tudo é a aceitação das suas leis imutáveis, creio que tendencialmente um sofá onde a vamos estudando, apreendendo, sempre mais disponíveis de idade para aceitar os ensinamentos de outrém. Para, com essa muleta, solidificarmos os nossos dias numa busca que se prolongará até ao pote no fim do arco-íris... (Mas porque quer agora a caneta divagar sobre as baleias dos Açores? Gaita!, está quieta!... Pronto, açaimei-a que são horas de ir almoçando.)
Enfim, não faço elencos, fartei-me deles, cansei de tanto arrolar testemunhas em processos judiciais. A felicidade está na nossa liberdade, na independência que alcançámos e em toda a anarquia em que possamos viver. (O estafermo da caneta soltou-se e aqui mesmo fez as suas necessidades de teorização!...)
(Desafios da Abelha - https://rainyday.blogs.sapo.pt/52-semanas-de-2022-introducao-392169)