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FUGAS DO MEU TINTEIRO

Imagens e palavras de um mundo onde há menos gente

FUGAS DO MEU TINTEIRO

Imagens e palavras de um mundo onde há menos gente

Desafio 52 semanas -2|A minha felicidade

João-Afonso Machado, 10.01.22

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A desnecessidade de listar os dias, como quem acrescenta notas sucessivas ao seu curriculo, e fica enredado nos prazos do sucesso, transmite-me uma agilidade de espírito libertadora. É quando se abrem as gavetas à procura de outras palavras, escondidas no bico desta ou daquela caneta. Elas são muitas, herdadas, oferecidas, compradas... Às vezes esquecidas, semimortas de sede num deserto de inacção, pejadas de crostas escuras a lascarem-se do corpo e eu com mil cuidados, a lavar-lhes as chagas, dando-lhes o tinteiro a beber. Uma troca de olhares, gratos e enternecidos, possivelmente uma escrita mais nostálgica... Ofereceu-me o meu irmão uma carteirinha de cabedal com quatro esferográficas Parker do nosso Avô - Toma, tu é que escreves! - e eu, comovido, tacteando aquele estojo que de repente me voltou à memória, saído do bolso interior do casaco do Avô, eu revendo o Avô na sua grafia miudinha, corri a tentar fazer melhor do que aquilo que sei, sentei à banca e fui de instante em instante atrás do Avô, sempre o Avô, as suas colecções, os seus livros, a fotografia e os slides do Avô, lugares do Avô, o Avô é vivo e eu gosto do meu Avô. Agora mesmo estou com o Avô na sua quinta na Bairrada, a cana de pesca furando silvados ribeirinhos, todas as manhãs, e o peixe, no regresso, enfiado pela guelra num caule de planta brava.

É o meu mundo, vale dizer, o meu presente: feito de memórias redivivas e de sonhos atirados para a frente. A espremer, sempre a espremer, as sensações, as emoções, sempre em busca do melhor caminho literário. Eis aí muitíssimo da minha felicidade.

Não me desloco desarmado, que "eles" andam por toda a parte. Comigo, a espingarda ou a Canon. Ou ambas. E seria o extase a presença mais assídua dos meus filhos...

(Pronto, a caneta tomou o freio nos dentes, perdi a mão nela, já lá vai em Beja, com o meu primogénito e eu próprio, é o seu baptismo cinegético, ofereci-lhe uma cal. 20, em anos de ouro do Jardel, que perdigueiro! Lado a lado, pai e filho, o Jardel adiante, num baixo, parado, uma estátua. - Atenção! - E as armas prontas, a pata dele dobrada, a cauda abanando, para que dúvidas não ficassem. E foi a restolhada das asas, uma perdiz para a esquerda, outra para a direita, dois tiros, cada um tombara a sua! Um abraço, o entusiasmo do rapaz, o seu desembaraço, o cobro do Jardel, depositando as peças na minha mão... Eia, eia, caneta, já chega, já te falta o folego!...)

Os anos, no seu trote, vão-se saciando das nossas próprias forças, depois recicladas em energia dos que ainda fazem a curva ascendente da vida. São noções, são livros, são conhecimentos - tudo é a aceitação das suas leis imutáveis, creio que tendencialmente um sofá onde a vamos estudando, apreendendo, sempre mais disponíveis de idade para aceitar os ensinamentos de outrém. Para, com essa muleta, solidificarmos os nossos dias numa busca que se prolongará até ao pote no fim do arco-íris... (Mas porque quer agora a caneta divagar sobre as baleias dos Açores? Gaita!, está quieta!... Pronto, açaimei-a que são horas de ir almoçando.)

Enfim, não faço elencos, fartei-me deles, cansei de tanto arrolar testemunhas em processos judiciais. A felicidade está na nossa liberdade, na independência que alcançámos e em toda a anarquia em que possamos viver. (O estafermo da caneta soltou-se e aqui mesmo fez as suas necessidades de teorização!...)

 

(Desafios da Abelha - https://rainyday.blogs.sapo.pt/52-semanas-de-2022-introducao-392169)

 

Um pint à Portuguesa

João-Afonso Machado, 08.01.22

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Um pint pode ser uma tarde toda, ou o regresso do trabalho a prolongar-se por um serão sem obrigações no dia seguinte. O pint envolve ainda a amizade com quem está do outro lado do balcão, ou a conversa fiada com os desta banda ou os parceiros de mesa. Porque só assim o pint escorre bem e alcança as transcendências do futebol, enquanto os nossos dedos desembaciam a caneca com cubicagem para meio litro de cerveja - tirada de pressão, bem entendido, sugada de longos pescoços com um manípulo de velocidades oscilantes.

Não duvido das origens saxónicas ou germânicas do pint. Nem discuto onde reside - se nos pubs, se nos botequins.

Pessoalmente falando, fomos apresentados há uns anos em Canterbury. Dessa formalidade se encarregou o meu filho mais novo - Pai, mister pint! - Nice to meet you! - Nice to meet you too, I'm the pint! - E logo uma firme amizade brotou, acompanhada de um rosbife esplêndido e The Old Weavers por anfitreão.

No regresso a casa, despedi-me do pint com um vigoroso shake-hands e já muitas saudades. Correram os anos e a cada passo o encontrava, aqui e ali, mas fugaz, mortiço, quase sem chama nem humor...

Espanto dos espantos, revi-o recentemente mesmo defronte ao meu esconderijo. Na Portuguesa, onde frequentemente almoço. Chegara da Alemanha numa maçaneta verde, por ora a única, o reinício da sua vida em terras lusitanas. Levezinho, fresco, um apetite de ser bebido. Quem diria?! - o pint por cá! Dei-lhe um abraço, emborquei-lhe duas copázias. E os mais tranquilos fins de tarde são agora com ele, em redor de todos os dramas existênciais do F. C. de Famalicão. O pint sabe da bola mais do que todos, é um gosto, uma lição, ouvi-lo. E a gente quando se despede - See you later! - vai mais sossegado e crente, a gente volta a acreditar, diz-nos a fé em breve o pint ganhará mais torneiras, uma bela policromia, e o Famalicão um lugar na Europa.

 

Outeiro Seco

João-Afonso Machado, 06.01.22

Esta é uma história real que eu desenterrei a norte, na raia de Chaves, precisamente na freguesia fronteiriça do Outeiro Seco, tirando com ela, de um buraco qualquer, uma saca toda de moedas de ouro romanas. Foi no curso de uma certa investigação que me interessava e, tão inusitadamente, levou a essas recônditas paragens, onde dei fé de um felizardo topando o dito tesouro nas suas terras sáfaras e mal-agradecidas.

O tempo de uma euforia imensa mas prudente, espreitando de esguelha, desconfiadíssima do temível Erário Público. A aconselhar uma fuga célere a cavalo do ouro todo, com o século XVIII ainda mandrião. Sequer se despedindo do Rev.do Domingos Pinheiro, o Abade, a essa hora dormitando na sua apessoada casa,

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sequer indo pela igreja paroquial em acção de graças,

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ou mesmo pela capelinha da Senhora da Portela que, toda a vida, tantas preces lhe ouviu.

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E onde viveria o "totalista"? É o que não apurei. Talvez em alguma ruína do Presente, de casario menor

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ou mais avantajado

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Talvez em construção condigna que algum parente (a quem também não disse adeus...) conservou e transmitiu à descendência. Seguramente não no solar que então se levantava e agora tomba, posto não pertencer à família em causa.

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Era solteiro, abalou sozinho. Decerto em maré de sementeiras, as Festas já passadas, esquecidas, jamais revisitaria o presépio da sua terra.

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E os vizinhos montes de Ourense,

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a ribeira a traçar em dois a aldeia

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e o granito firme do seu casario.

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Enfim. Fui dar com ele em Estremoz, onde casou e teve geração apontada a Borba. Era gente rica, então, e foram importantes, assentados em cargos administrativos e militares. Chamavam-lhes «os Moedas», donos de toda a irreverência transmontana posta nas horas vagarosas do Alentejo. De tal modo que o metal sonante findou e o poderio também. E eu sei tudo isto porque desse clã irrequieto e mesmo insubordinado apenas herdei a minha Avó materna. Obviamente - uma grande Senhora! O ouro lhes tenha feito bom proveito...

 

Desafio 52 semanas -1|Pacotinhos de eu

João-Afonso Machado, 03.01.22

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Vão lá dez anos e eu não entrei em Gijón pelo mar. Era um congresso de literatura ibérica em que intervim apresentando um livro meu. A comitiva portuguesa incluía o fado e houve espectáculo no Teatro Jovellanos, uma espécie de viagem no tempo alumiada por candeeiros de latão e lâmpadas amarelecidas nesse retrocesso. Mas o que mais alto falava, o que tudo dizia dos Anos 20 ou 30 em que paráramos, eram os vestidos das damas asturienses, os seus penteados e batons. Um espantoso cenário em que, nos intervalos, se fumava de boquilha, e muito palrava, ao longo de circulares corredores bordeaux.

Nada quis me escapasse nesta incursão pelo Principado das Astúrias, onde principescamente fomos inundados em cidra e iguarias regionais, apaparicados com a melhor disposição e levados em visitas guiadas, uma embarcação ao largo do Cantábrico com o azul das águas e da cidade, da bandeira deles, a crescer-me no espírito, a anunciar-se a cor da vida e dos ideais, um  alvo grito cá dentro de liberdade e independência.

Há dez anos. Quase desaparecia então um advogado, por troca com um homem com tempo ainda para conhecer e interpretar o mundo. Para escrever, mas não já nos jornais, o seu ganha-pão da época estudantil. Não, o aperfeiçoamento da palavra riscada no papel seria o seu caminho, e a pequena cidade minhota das suas origens o seu descanso.

Já lá me esperava a, de todas, mais encantadora Mulher. Com ela viajei e tomei nota do seu apreço por me ler. Desenhava maravilhosamente e fazia-me surpresas... Levou-a a doença, conquanto ainda esteja comigo, sempre comigo, em gratidão e amor. Transmitindo força, determinação, perseverança. Permanentemente ao meu lado, a cada novo livro...

Porque a vida é isto - é ser livre e é viver tentando descobrir porquê e o que vai no eterno azul do branco Além. E conseguir expô-lo, na mais feliz composição de fórmulas literárias.

 

(Desafios da Abelha - https://rainyday.blogs.sapo.pt/52-semanas-de-2022-introducao-392169)

 

Um ano de tinta

João-Afonso Machado, 01.01.22

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Faz hoje precisamente um ano, logo depois de a idade ter levado,  com mais de 10 anos, o antigo patrão desta pena, o respeitável MACHADO, JA, o tinteiro respectivo vertia as primeiras lágrimas aqui, esguichadas deste ou daquele modo, entretanto.

Foram os tempos do confinamento e de uma intensa, febril, actividade da bloogosfera. Fiz amigos novos, iniciei-me nas lides dos "desafios" e a caneta lá se teve de ajeitar a novas escritas.

Enquanto isso, a lapiseira viajava no bolso, ao lado do bloco-notas, e ambos, combinadamente se encarregavam de apontamentos sobre vários mas não muito remotos recantos do planeta. Mais o resto, enfim, conforme o estado de espírito, a ligeireza da mão, a leitura em curso ou as vicissitudes meteorológicas.

A  croniqueta tornou-se um hábito corrente, sem grande pudor roubando o tempo dos contos e de outras publicações de maior folgo. Mas sempre com uma expressão tão divertida que não há como lhe ralhar, castigá-la.

Assim o tinteiro encara o ano agora nascido: com mais tinta derramada, mais rabiscos do momento em volta dos cromos da minha infinda caderneta. Defende ele, ainda há muito caminho a percorrer, a perfeição está na linha do horizonte, mas esta fica em lado nenhum.

Talvez tenha razão, o meu tinteiro. É o que veremos este Ano Novo que a todos desejo - excelente!

 

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