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FUGAS DO MEU TINTEIRO

Imagens e palavras de um mundo onde há menos gente

FUGAS DO MEU TINTEIRO

Imagens e palavras de um mundo onde há menos gente

Desafio 52 semanas -9|Quo vadis?

João-Afonso Machado, 28.02.22

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Será dos meus mais antigos livros e dos que mais repetidamente li. E nada me admira ter sido escrito por um polaco, aliás Nobel da Literatura em 1905, - Henrik Sienkiewicz.

Está ali o início de um conceito de vida que é, ainda agora, o "depois" do "antes". Quando talvez se tenha falado a primeira vez em seres humanos que se erguiam a tomar o lugar das divindades e dos escravos.

Entre a decadência do Império e o cavalheirismo epicurista (apesar de tudo, uma derradeira manifestação de honra e coerência), um romance belíssimo, o inexplicável poder da Fé e Pedro - Quo Vadis, Domine? - regressando a Roma para, concluindo o seu apostolado, eternizar Cristo morrendo como Ele.

Eu, em cujas minhas entranhas a apologética não passa, sempre hei de confessar toda a emoção na leitura desse suave assentimento de Pedro e da sua serenidade ao dirigir-se para um suplício que seria a perpetuação da Cristandade.

 

(Desafios da Abelha - https://rainyday.blogs.sapo.pt/52-semanas-de-2022-introducao-392169)

 

Um minhoto na Capital

João-Afonso Machado, 27.02.22

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Enfim, vão lá doze anos em que sempre pontificaram os nossos encontros fortuitos. Mas agora a gente combina previamente o programa, por norma de raiz cultural. E os Jerónimos, fatalmente, estavam no roteiro da minha máquina fotográfica. Planeámos tudo, incluindo a deslocação no eléctrico, o tempo bastante para uma antecipada explicação de mundividência histórica que ouvi sem interromper. - Ah!, o manuelino! A imagem de um mundo finalmente aberto e ecuménico! - E todo aquele estilo arquitectónico foi devassado, traduzido, nessa imensa viagem palratória. Com as suas pulseiras tilintando de fulgor e patriotismo.

O facto é que chegámos ao dito "Oriente" de uma riqueza que já lá vai. (Eu nem aconselhei a minha loira amiga a ler Antero, as suas Causas da Decadência dos Povos Peninsulares, não se desse o caso de ser respondido à estalada...) E desembarcámos com o seu anúncio de uma visão mística da Arte e da Fé, da História e da plenitude do ambiente que envolve o mosteiro.

Assim fomos andando. Esperava-nos a memória de Camões, de Vasco da Gama... Entre visitantes plurirraciais, predominantemente de olhos em bico, uma visão que eu colocaria no Terreiro do Paço pré-Terramoto, aos magotes para bisbilhotar o interior dos Jerónimos, longas filas que se atropelavam. Foi quando a minha cintilante amiga se exasperou e bradou que Portugal era dos portugueses e outras atoardas que felizmente a Catarina Martins não ouviu. Dando ordem de marcha para os célebres pasteis de Belém, onde idêntica moratória nos penitenciou, sempre no cantochão da gentinha que nem sabe ao que ali vai e diatribes similares.

Finalmente o (aliás, delicioso) docesinho. Acompanhado de umas águas-das-pedras (naturais, implorava eu) assaz acalmantes. E o regresso ao Cais do Sodré. Não, jurei calado, nunca mais. Doravante, qualquer jantarinho em pacato restaurante do Bairro de Alvalade ou até mesmo umas codornizes em churrasqueira de Sacavém. Os gritos de - Por S. Jorge! Por S. Jorge! - é que chegaram uma vez por todas... Nós, minhotos, entendemo-nos bem com os galegos, não nos queremos privados das tainas deles. Que se dane a Cultura!

 

"Um tom mais claro de palidez"

João-Afonso Machado, 25.02.22

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Num repente contámos os anos e medimos a distância do tempo. Demos conta do nosso curvilíneo e imprevisivel segmento de recta. Conquanto a dança não parasse, nem mesmo com a morte de Gary Brooker.

Ainda o vislubrámos, voz dos Procol Harum, menos melódica em concerto na Dinamarca... E tornámos a dançar...

(Egas, no desenho que me ofereceste, sobre a minha secretária, meiguíssimo, a espreitar esbugalhadamente, de olhos calados a dizer o teu nome - tu!, tu!, tu!, artista, mulher querida, parte da minha alma...)

E a dançar permanecemos. Whiter Shade of Pale. Às vezes, com a prosápia do Conquistador. Porque nenhuma guerra venci que tivesse assim valido a pena.

Tudo a morte reúne. Um dia lá estarei - eu, o que falto - num baile em que Egas também dará o seu pézinho de dança. Mas para já a saudade. «As the miller told his tale/That her face at first just goustly/Turned a whiter shade of pale».

Não são fantasmas, somente as caladas e esvoaçantes mariposas: todos os intervenientes, Egas incluido, num momento feliz da vida. Porventura na palidez da emoção... Que contigo, minha querida, agradeço a Gary Brooker no baile imenso da Eternidade.

 

Pacotinhos de mantras

João-Afonso Machado, 24.02.22

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Eu ando no encalço das manicures e pedicures e do seu recente saber. Mas é difícil. Somente conheço bem, aqui no "bairro", os restaurantes, a loja de ferragens, a mercearia e o sapateiro, o alfaiate e o pronto-a-vestir, a loja dos cartuchos para a caça... Donde fico desfalcado dos mais secretos saberes das mãos e dos pés e das novas ocultas ciências.

Ciências tão isotéricas que alcançam a futurologia e o determinismo. Tremendas! Assim eu me embrenhasse nesse subterrâneo posto ao ar livre, assim conduziria a mente e ganharia o que nem jogo, o euromilhões...

Porque é de exclamar: como se houvesse o Destino! Como se tudo (a acreditar no que vou lendo) dependesse de exercícios respiratórios depois dos quais a bem-aventurança está aí!

E como se Antero de Quental andasse mentindo ao poetifilosofar - «Faze um templo dos muros da cadeia/Prendendo a imensidade eterna e viva/No círculo de luz da tua Ideia!»

Misturei imensas coisas. (É o meu mantra...) Já temo a insurjência das manicures e pedicures. E das cabeleireiras. Desse mundo que arranja as senhoras e lhes veicula convicções orientais diversas: os mantras (rodinhas em unicentro e muitos símbolos e meditações manhosas), posturas de corpo e espírito em dó menor, disciplinas diárias, manipulações do "eu" e outras malandrices. Tudo com muita venda livresca.

Enquanto não (enquanto não descobrir uma divindade trabalhando a cabeça que jamais trabalhará), vou vivendo disto -  do quotidiano, dos bons e maus momentos, das revoltas que hei de subjugar e das vitórias que fui e irei gozar, de uma vida que vai andando. Sempre sob o velho mote - "resistir, nunca desistir". Porque aí reside a razão do nosso orgulho. Ser sem azares é ser sem ser. Domesticar dores não se traduz em manhãs de sol na praia ou caminhadas ao alvorecer...

(Findo aqui. Não sou nem manicure nem pedicure... Assim o «círculo da luz da Ideia» me alumie sem precisão das candeias mantricas logo aos pioneiros raios de sol.)

 

Desafio 52 semanas -8|Jantar no Oh! Vargas

João-Afonso Machado, 21.02.22

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Iamos chegando a Santarém, o ponto de encontro ficou determinado no restaurante Oh! Vargas. Há sempre um responsável por este lado gastronómico, alguém absolutamente fiável ao longo destes anos todos de faisões e tiros. A gente, muita, eles e elas, os mais novos e os mais velhos e a memória dos que já não estão entre nós conjugada com a esperança nos que vão surgindo agora. Tudo numa agridoce sensação do tempo e de afectos, trinta ou quarenta anos que já não sabemos se doem ou se confortam.

Não tenho "amigos do coração" - apenas um coração preenchido pelos amigos. Por isso, provavelmente, o Oh! Vargas foi, para mim, um jantar inteiro de silêncio e recordações, ouvindo e observando, sorrindo ou lacrimejando para dentro. Com a naturalidade exacta de quem não se sente obrigado a conversar para "fazer sala".

Gostei da decoração e da enorme divisão por nossa conta, o poiso habitual dos forcados escalabitanos em noites de farra. Eles e as suas façanhas preenchem as fotografias que fui analisando uma a uma. Isto a propósito de, nesse grupo dos meus amigos, haver quem goste e quem não goste de tauromaquia. E esta ser tema de conversa e argumentos contra ou a favor, nunca, porém, de discussões e irredutibilidades. Invocar a educação das pessoas parece-me dispiciendo: prefiro frisar o entrosamento do clã.

Vimos de muitas bandas, sobretudo do Minho. Há-os sociáveis q.b., de encontros semanais; e há-os nos refúgios respectivos, o meu caso, sem que assim se ponha em causa esse espírito em que já os nossos ancestrais viviam entre si.

(Tanta criança cujo crescimento presenciei, hoje casada e com prole já...)

E nada descubro para ensinar ao mundo. Apenas sublinho que nesse comedidamente povoado mundo em que nos movimentamos, a amizade é uma cordilheira, não somente umas pedritas que se encontram e juntas decidem defender-se da erosão.

 

(Desafios da Abelha - https://rainyday.blogs.sapo.pt/52-semanas-de-2022-introducao-392169)

 

O Barreiro

João-Afonso Machado, 19.02.22

É a outra margem. O inóspito lugar de outra imagem: encarnada e impiedosa, sobremaneira politica, barulhenta e povoada de fatos-de-macaco e chaves-de-porcas. A viver nas alturas dos guindastes e das gruas e dos prédios encavalitados. Enfim, sempre assim pensei, quase num medo dos infernos da catequese. Até aos dias de agora, quando me decidi à travessia do Tejo disposto a confrontar a mitologia.

Basta a referida viagem náutica para abrandar a ira dos deuses...

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As águas um modelo de quietude. O ferry absolutamente desprovido de pressas, a gozar também o fim da semana. E o Barreiro a tomar formas mais consistentes, depois da atracagem, ainda assim pouco entusiasmantes. Um parque de estacionamento, a fatal rotunda e uma breve ameaça da tremenda propriedade horizontal.

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Também Gil Eanes se assustou na eminência do Bojador. Mas seguiu em frente... Nós (eu e o meu octogenário amigo) do mesmo modo procedemos, desta feita em marcha de infanteria, inquirindo aqui e ali, sobre o Barreiro primitivo, onde era?, até darmos com a placa «Zona histórica», essa tal que nos levaria aos encantos mais recônditos de antes da cavalgada dos humanos. O percurso não trepava orografias nem sociologias - somente ia andando nas proximidades ribeirinhas. Dando a conhecer, por exemplo, vestígios de moínhos de maré

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e também dos seus parceiros impulsionados pelo vento, recuperados, visões do passado ou regalos do presente.

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Outrossim no Barreiro uma Leticia, rainha da ameijoa ou do berbigão, dormindo sem sobressaltos a sua maré menor,

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algo desmazelada, decerto, o outro lado do esplendor da magestade do Tejo. Eu diria: a sua intimidade. E, nela enfiadas, as omnipresentes damas de honor,

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eternas vítimas da maledicência mas personagens jamais fora dos meus encantos. Gaivotas: ladras, pragas, zaragateiras... mas bonitas e bem postas. No Barreiro a demonstrarem que nem tudo é siderurgia, luta de classes e dormitórios.

O meu octogenário amigo contava os quilómetros corridos e reclamava cansado. A igreja paroquial não lhe podia valer, fechada como um túmulo, matéria somente, quase uma guilhotina fulminante sobre o pescoço do Espírito.

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Foi o que a Magda nos confirmou, com um ar de "ali já ninguém mora, está esquecida"... A Magda, a proprietária do salvífico Moet, o bar onde mendigámos umas bifanas e umas canecas de cerveja, com o meu octogenário amigo assaltado por um súbito desempenho de galã, piropo sobre piropo,

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e o patrão lá dentro a fatiar a carniça, a preparar-nos o comer e, por aquele andar, de faca em punho, sabe-se lá que mais... Enfim tudo correu bem, o meu octogenário amigo saciou-se, acalmou e foi a minha aberta para saber coisas. O Barreiro ali, além de um parque bem arborizado, são todas as ruecas de casinhas de um ou dois pisos. Algumas impecavelmente recuperadas mas estranhamente desabitadas; outras, muito depauperadas mas cheias de gente, roupa a secar na via pública, antenas parabólicas aos montes, carros mal estacionados...; um bom lote delas em completa ruína desaproveitada.

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Outra vez a Magda elucidando, aquilo era o cancro do seu negócio, a vizinhança pouco amistosa e, por isso, a clientela mais arredia à noite. Gabámos-lhe a destemida decoração do bar, as duas cabeças de bovinos na parede, os muitos cartazes antigos publicitando espectáculos de tauromaquia, via-se bem, a política não passava na porta do Moet. E com o meu octogenário amigo protestando veementemente, encetámos a volta de regresso.

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Aqui e ali, os primeiros vagidos desses enormes cogumelos que hoje se estendem por áreas infindas. E os restos mortais do casario que pereceu envenenado por eles... O comboio vem até à beira-rio. Vem de Setúbal, trará gente como nós a apanhar o barco,

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mas não sei se, como nós, tão envolta no espanto desse todo que é o céu e as águas e os pequenos cometas que rompem o cinzento nessa gigantesca abóbada.

 

"Socalcos"

João-Afonso Machado, 17.02.22

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Trepando o tempo já muito alto

socalcos balcões da vida

tão no fundo

inaudíveis palcos em distante mundo

 

- ósseos socalcos!

da carne de bicho do monte

que amareleceu bravia

e seca de ócios secou a fonte.

 

Tudo se foi um dia,

ecos e as perdizes

horizonte xistos felizes

após a vindima

 

socalco a socalco nessa via

acima o destino calco,

 

- talvez feroz, o destino

de todos nós.

 

Desafio 52 semanas -7|Só quase alcançável

João-Afonso Machado, 14.02.22

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Por acaso não escreverei sobre a felicidade, decerto um paraíso em cujos arrabaldes me fico. E não escreverei pela razão singela - essa mesma, apenas me apetece chegar quase lá. O mais arriscava tornar-se monotonia, ou até a miserável demonstração de que a felicidade não existe.

Sigo outros rumos: leio de Mário de Sá-Carneiro - «É meia-noute. No baile/Folga tudo e tudo dança./À mesma hora o lavrador/No seu casebre descansa.»; e procuro respirar fundo, compassadamente, e encontrar um céu com as estrelas bem ao léu. Um horizonte generoso e um estado de espírito de bem comigo próprio. Se calhar exigente, mas com força para enfrentar as adversidades. A transmitir-se em todo o potencial para sentir, reflectir e sistematizar. Sem jamais interferir no movimento giratório desta bola em que vivemos.

Tento, enfim, ir além do sossego e enunciar a sabedoria da paz. Esta me basta e dela careço - a paz de que, evidentemente, faço busca todos os dias. Através do mundo, da imagem e da caneta.

 

(Desafios da Abelha - https://rainyday.blogs.sapo.pt/52-semanas-de-2022-introducao-392169)

 

Por aí...

João-Afonso Machado, 12.02.22

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Sinto agora todo o pulsar da inferioridade descritiva ou narrativa. Como se ela nos seus carris, muito compenetrada e pontual, já avistasse no horizonte a estação, os passageiros e apitasse alegremente, a anunciar-se, enquanto de lá uma voz correctíssima informava a plataforma, no maior rigor e placidez.

Descrever, narrar... Sendo tudo uma eterna contorsão de silêncios e emoções inominadas. Uma implosão de ideias, o poema jamais alcançado. É noite, restam-nos ainda algumas horas para ignorar os rituais da sincronia. Longe da geometria das palavras, simplesmente por aí...

 

Missão cumprida!

João-Afonso Machado, 09.02.22

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Foi o seu voo final, sobre vinhas novas que o esperavam desde a casca rachada do ovo. Os faisões são beleza, asas de planador e um tiro com sabedoria. São caça. Milenariamente caça, penagem a enfeitar sucessivas modas de chapéus e uma carne sempre - mas sempre! - apreciadíssima. Até por raposas, ginetas e toda a gama de felinos que lhes deitem as garrras.

A Natureza é assim, são estas as suas regras que urge não sejam abusadas nem distorcidas. A Natureza é primitiva e nós parte dela; logo, primitivos somos também.

E o grande mal do Mundo, no andar dos tempos, está em os povos auto-proclamados "civilizados" pretenderem impor as suas normas aos outros, os "anacrónicos".

Impor é proibir. E as pessoas educadas não proibem em território alheio...

 

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