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FUGAS DO MEU TINTEIRO

Imagens e palavras de um mundo onde há menos gente

FUGAS DO MEU TINTEIRO

Imagens e palavras de um mundo onde há menos gente

Alturas do Barroso

João-Afonso Machado, 31.03.22

É o cabo dos trabalhos chegar lá a cima, ao povoado. À cabeça desta freguesia - Alturas do Barroso - do concelho de Boticas. Onde se vai por diversos motivos óbvios, um dos quais a fama envolta no mistério sem letreiros do restaurante A Casa do Ferrador.

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Recomenda-se procurem a mais imponente edificação, mesmo no largo do fontenário, o centro cívico, como soe dizer, da aldeia. E encontrarão, então, o santuário que tantos remotos romeiros atrai. Ali trabalha uma família inteira e A Casa do Ferrador só abre mediante o pedido de reserva para um grupo, ocorrência esta quase diária!

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São os devotos da boa comida, da lareira e do fumeiro barrosãos. Das suas carnes. E de um repasto que deixa quem quer a jiboiar a semana adiante.

Residem em Alturas do Barroso, aldeia que não é assim tão pequena, 160 irredutíveis serranos. Crianças - nem uma para amostra... Apreciei, sim, a bravura dos idosos quando uns distraídos estacionaram os carros na entrada do lar local da Misericórdia.

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Esteve quase o motim. Erguendo-se dos bancos onde conferenciavam (muito agasalhados, que a Primavera aqui demora, vem a pé...), agitadíssimos, quase em convulsão, desataram em sonoros protestos. - Não podia ser assim! - Há sempre ambulâncias a chegar e a partir! - Lá no Porto, se lá fossem, respeitariam as regras! - Olha para isto, para este abuso!

E toca a pedir-lhes as maiores desculpas, a levar os carros para outro cubículo, desintupindo o acesso da putativa catadupa de ambulâncias ao lar de dez utentes acamados. As gentes do Barroso nem todos os dias são  tão pacíficas como os seu canídeos, que proliferam à solta vagueando pela urbe.

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Uma urbe onde o que não é granito são remendos, tal o custo da cantaria.

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E onde grassa a ruína, filha da imigração,

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e o modo de vida dos que ficaram é a lavoura e a criação do gado de engorda, a matéria-prima da célebre "posta" barrosã.

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Assim por quelhos e quelhos sempre providos de preciosas partículas de bom gosto,

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de uma significativa presença da ausência. A não ser no largo onde se reunem os denodados defensores do lar da Misericórdia...

 

Desafio 52 semanas -13|Tempo perdido...

João-Afonso Machado, 28.03.22

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O coração há de ter várias camadas, tal qual o planeta que, dizem, no seu núcleo é todo fogo. Pois este nosso músculo requer cuidadíssima atenção, dada a sua ambígua aptidão para nos pregar mortais partidas e construir a nossa felicidade.

Colesteróis à parte, a viagem ao centro do coração (quase uma ficção à Júlio Verne) vai-se cavando da simpatia aos graus diversos da amizade, até alcançar o raramente verdadeiro amor, lá bem no âmago de uma existência pronta a aliar-se a outra congénere, permanecendo ambas tão juntas quão independentes

Quem o conseguiu já com êxito pleno? Vivendo esse eterno fogo nuclear?

Falando apenas de mim (aliás, este é um domínio em que jamais falo dos - ou aconselho os - outros), para se dar o milagre, uma primeira exigência é que se tratasse de alguém que não teorizasse sobre o amor. E a seguinte recomendaria não se aventurasse em terrenos de chico-espertice, nem confundisse a sabichonice com a erudição. Que fosse mulher, evidentemente, iscando o seu anzol com a voz e o olhar. A captura do meu coração consumar-se-ia, então, com a sua arte culinária, rica mas despretensiosa.

Ora, é bom de ver, esta minha douta prelecção tem todas as pompas das minhas exéquias amorosas. O meu coração é, por conseguinte, imprestável e, ainda que estivesse disponível, nenhuma senhora o quereria... 

(A não ser Dona Mécia, mas ela é quadrúpede, de uma meiguice extrema e um belo falar ladrado.)

 

(Desafios da Abelha - https://rainyday.blogs.sapo.pt/52-semanas-de-2022-introducao-392169)

 

Minas da Borralha

João-Afonso Machado, 26.03.22

Os horrores da II Guerra Mundial, como sempre acontece, foram a fortuna de uns tantos. A calamidade passou-nos ao lado mas certo é muitos portugueses enriqueceram mineirando e exportando uma pedra densa, negrada, - o volfrâmio - que proficuamente servia à fabricação de munições letais.

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Era a sinistra raiz de algum desprezo que ainda hoje paira sobre os "volframistas" de então. Houve-os por todo o lado, e nas minas da Borralha também.

Estamos na freguesia do Salto, do concelho de Montalegre. Mesmo num cantinho dela, no fundo de um vale onde desliza a ribeira do Amiado, vulgo «rio da Borralha» ou o «Basófias», para alguns. Um curso de água truteiro e convidativo, alheado da História, que os males levam-nos as águas imparáveis, onde irão as de há seis décadas atrás?

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A Guerra é uma reminiscência longínqua. A actividade das minas da Borralha outro tanto. Ficaram as memórias de uma época infrene e os famigerados "centros interpretativos". E ficou mais. Porque naquele recanto da freguesia muito se construiu - até um bairro operário - muito se ergueu em nome de uma exploração razoavelmente passageira.

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Robusto casario. Vidas vividas e quase não substituídas senão pela intransigência da idade. Serviços de primeira necessidade como os correios,

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o telefone,

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e o café onde o pessoal sobrevivente se encontra e joga qualquer batota e se lava em bagaço ou cerveja, consoante a maré do ano.

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(Uma carrinha de funcionários da edilidade procede à limpeza dos arruamentos, fornecendo informes. Ali habitam, presentemente, 196 almas que labutam fora e vão e vêm todos os dias. Mas aquilo é «um paraíso», garante uma senhora de vassoura em punho.)

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A terrinha está abastecida de boas moradias e cada edifício, cada memória. Não longe, sucedendo-se umas às outras, as cascatas da ribeira. Do «Basófias». 

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E o turismo? - perguntei. Pois o turismo vem aí. Até porque as ruínas do velho palacete do Director das minas será transformado, a breve trecho, em pousada ou qualquer coisa parecida.

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O lugar foi comprado por uns canadianos investidores e o resto competir-lhes-á, e à riqueza do ambiente...

Gostei. Cada bocadinho do nosso mundo tem a sua expressão

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e nada melhor para a traduzir do que a atitude dos animais ante este bicho estranho que somos nós.

 

À boleia

João-Afonso Machado, 25.03.22

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Foi há dias. Deu-se o caso de o meu médico me receitar as águas termais de Boticas para estes padecimentos dos ossos. Porém, para tais bandas, os comboios são todos uma recordação do passado e os autopullmans viram a cara às terreólas onde não carreguem ou descarreguem em abundância. Nada me ocorreu, então, senão a boleia... Na berma da estrada, uma magra sacola à banda, com o indispensável, e o joelho  em descanso, apoiado numa tosca bengala de marmeleiro comprada em Baião.

As minhas alvas cãs terão ajudado: não demorou o notável desenho de um Mercedes 350GD - um jipe dotado de um prestabilíssimo estribo a consentir me alçasse, seguro na bengala, lá para cima.

Os estofos magníficos, de cabedal da melhor raça. Parecia de um avião, a colecção de manípulos no tablier. Música e ar condicionado. Quão melhor alternativa às tranvias dos transportes públicos!

O Mercedes era dos bravos, mudanças automáticas e o motor a rugir na aceleração, claramente afastando-nos do nível das águas do mar... Cruzei as mão na bengala sob o queixo e assim fomos por Braga, Póvoa de Lanhoso, desviando depois para as alturas do Barroso. O meu benemérito ia em cruzeiro e revelou-se um requintado conversador. Deu com força nesta República pejada de pulgas, proclamou programas de salvação cultural, as preferências gastronómicas dos literatos. Eu ouvia atentamente enquanto lavava o olhar nas albufeiras de Salamonde e da Venda Nova, e o secava depois nos caprichos esculturais da natureza granítica. Por quilómetros e quilómetros de montes e planalto.

O jipe levado com a destreza e a robustez que a minha alquebrada pessoa solicita. Sim, - alquebrada! Alquebradíssima, meus senhores, alquebradíssima! Velho, roído do esqueleto, impaciente de o demolhar em águas milagreiras. Chegámos, e outra vez o estribo salvador, a bengala de Baião a amparar-me e um adeus até ao meu regresso. (- Deus lhe pague, bom amigo! - agradeci penhorado) E fui tropeçando a calçada adiante.

E depois? Como será depois? Ora, depois logo se verá...

 

Montalegre

João-Afonso Machado, 23.03.22

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Da última vez era ainda inverno e um desfile de samarras no frio. A minha, a mais vistosa gola de raposa nas redondezas. Talvez nevasse. Mas o calor que emanava do Feira do Fumeiro aquecia Montalegre e as muitas almas visitantes. Essa macacada do lítio não se sonhava sequer então.

Terra robusta de gente dura e bem dona dela. E livre, independente, quanto também anfitreã de primeira água. É o que tenciono reviver brevemente, já em maré primaveril, buscando pelo olfacto o filão de uma senhora posta de vitela barrosã. 

 

Desafio 52 semanas -12|Saudades, e muitas!

João-Afonso Machado, 21.03.22

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Eram dois rapazitos, o mais velho loirinho, o caçula amorenado, muito mimalho. Aprenderam a falar, a fazer perguntas, e viviam felizes sentados cada um numa das pernas do pai, ao seu colo ou às suas cavalitas... (O dito pai, por acaso, eu próprio.)

À noite, antes de fechar a luz para dormirem, a inevitável sessão de histórias improvisadas, uma girândola de personagens vindas dos quatro cantos da imaginação e juntas todas no mesmo episódio de perlimpimpim - o Hércules, o Astérix, o Tintin, a gentinha do Sítio do Picapau Amarelo, o Rei Leão... E quantos guerreiros lusitanos, revestidos de peles de urso, cocando do alto dos pedregulhos do Marão ou da Estrela, não lhes apontei em longas viagens de automóvel, maçadoras não fora o entretém e as espadas afiadas e as barbas hirsutas desses figurões...

A Primavera era uma vasta caçada de rãs e de tritões, às vezes de cobras, e as borboletas fugindo num alarido às redes atrás delas. Enquanto no Verão, em lugar da burguesa pastelice em volta da piscina (!) em Tróia, os mergulhões das lagoas, a pesca aos achigãs, passeios diários nos areais do estuário do Sado, com búzios gigantes, golfinhos brincalhões e as alforrecas traídas pela maré a lancear com canas afiadas. 

Correram anos de perfídia e guerra que tranformaram os dois rapazitos em ursinhos de peluche possuídos com ganância. Não fui capaz de os ter comigo, ao modo são das vidas que se constroem com ideias e ideais. Desorientados e desamparados do espírito, os meus filhos debandaram para parte que é nenhuma. Com a sua actual idade eu, já um homem feito, estava ciente de que muito ainda tinha para me fazer. O meu futuro seria a minha obra.

Assim me lembro dos dois filhos perdidos. Irreconhecíveis, postos num mundo burguês jamais o meu. Trago-os no coração, permanecem em fotografias do tempo antigo, para as quais tanto me doi olhar. As saudades são às toneladas, quase as mesmas toneladas do meu desgosto por sabê-los de uma apenas ilusória liberdade sem rumo. Algo com que nunca poderei contemporizar, apenas deixo correr... 

 

(Desafios da Abelha - https://rainyday.blogs.sapo.pt/52-semanas-de-2022-introducao-392169)

 

Ponte da Barca

João-Afonso Machado, 19.03.22

A lampreia, basicamente, é uma cobra com uma ventosa na boca e uma carne negra e feia, sabendo a nada parecido com ela. Por isso não é réptil nem peixe, é um ciclóstomo. E há quem enjoe só de olhar para o bicho, jurando ser detestável sem vez alguma lhe ter metido o dente. Quando não: a lampreia come-se muito bem "à bordalesa" e justifica sempre um passeio de amigos, a almoçarada generosamente regada com verde tinto vinhão. Daí a Ponte da Barca, vila sem o pretenciosismo de querer ser cidade, nas margens do Lima onde a lampreia é apanhada quando sobe o rio para desovar (e escapa aos artefactos da vizinha Ponte de Lima, a jusante...).

Na Barca, então... Já há uns tempitos não ia lá.

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E eu gosto do seu recato, gosto dos automóveis, um agora, o outro só daqui a bocado.

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Gosto do comércio arrumadinho, quase de pantufas, muito sonolento; das tasquinhas e dos restaurantes, das esplanadas onde moças minhotas, daquelas lindíssimas, servem mesas vazias de gente e carregadas de um valiosíssimo silêncio.

Gosto da Misericórdia onde jovens e idosas dão, como rezam os Mandamentos, o seu contributo à comunidade.

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E dos becos prenhes de história e da grandeza do granito,

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fascina-me o rio na Barca, de outra timidez, outro choroso olhar, tão mais apelativo do que em Ponte de Lima.

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E o Vade, o seu afluente, despenhando-se em cascata junto do moinho agora restaurante (onde decorreu o repasto)?

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Nem cem metros adiante despejará as suas águas todas nele, Lima. E as margens, passeios claustrais de pescadores absortos na fortuna do tempo todo seu, as trutas a acumularem-se nos bornais...

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Ponte da Barca! Ou como uma lampreia nos espeta a ideia da migração para norte, senhor todo-poderoso do rio, dos petiscos, do fim do ruído e das esplanadas de minhotas belíssimas.

 

Por irremediável defeito...

João-Afonso Machado, 17.03.22

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Porque entorta a lapiseira com este joelho agarrado à bengala? Para onde foi toda a gente num evidente cansaço de palavras? Que céu tão estranho de cinzentos e silêncios! Qualquer coisa está para suceder e não é bom, não...

Aviso-me. É a altura de lançar trancas à porta no exacto lugar onde verifico as paredes da escola caiadas de soturnas intuições, exame de matéria impreparada, desastre matematicamente demonstrável. Tentemos, tentemos, talvez tudo não seja perdido.

(Iamos, pois, em Mia Couto, a quem não restam lembranças, apenas sonhos. Um inventor de esquecimentos, diz-se ele. Algo do mais distante corre os carreiros dos cativos interesses...)

 

Desafio 52 semanas -11|Polónia!

João-Afonso Machado, 14.03.22

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Fosse eu uns vinte anitos mais novo, era onde o meu encartado egoísmo se sentiria bem agora - na Polónia. Agasalhado comme il faut, partindo sozinho até à fronteira com a Ucrânia e por lá me deixando ficar, para trazer ao mundo livre que ver e que ler. A esse mundo que não é o dos desgraçados ucranianos sem eira nem beira, apenas com a guerra a matá-los.

Decerto avançaria a amparar qualquer idoso, a dar um beijo, um chocolate, a nuvens de crianças espavoridas. Talvez me emocionasse, deixasse correr duas lágrimas, talvez até reaprendesse a chorar. Talvez ainda fosse a tempo do céu azul no olhar dorido de alguma eslava da minha safra... Ou de perder a noção da temporalidade e a Primavera chegasse, o Verão também, e o meu abrigo permanecesse fronteiriço, paredes meias com os dos refugiados. A biografar-lhes o sofrimento e as privações, sempre atento e em comunhão com a sua lição de coragem e resistência.

Até ao dia em que, por Varsóvia, Katowice, Cracóvia, regressasse a casa, necessariamente mais rico da riqueza autêntica.

 

(Desafios da Abelha - https://rainyday.blogs.sapo.pt/52-semanas-de-2022-introducao-392169)

 

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