À boleia
É uma névoa longa pairando sobre essa quase cinquentenária viagem. Uma fotografia amarelecida que traz ao presente um objectivo distante, a Ílhavo agora tão à mão. Férias! O rapazote, capaz de todos os encolhos sem enjoar, estendeu o dedo sem crença mas o desportivo, aparentemente cheio, parou e o passageiro abriu a porta.
Formas abauladas de um Porsche 356 já então demodé. Porém, um Porsche para todos os efeitos, um bicho raro nessa comedida época... Com um mini-banco traseiro, quase o buraco de bagagem que o rapazote - por acaso eu próprio - usualmente ocupava no carocha do Pai, tamanha era prole familiar... Pois assim seguíssemos ao fim do mundo.
No retorno à estrada, o barulho de "malhadeira", como diziamos então, abafava a conversa. Percebi, o ocupante, de transistor no ouvido, seguia apaixonado o relato futebolístico e era do Benfica. Mal dele que não me afectava, entretido com a alta rotação do Porsche (neblina que se aclara e dispersa num voo rente ao asfalto) de súbito sustida pelos percalços do trânsito na EN14. De joelhos encolhidos, a mochila agarrada como quem defende um coração amado e o percurso a correr, a penumbra que, assim vou escrevendo, assim se vai dissipando.
E, nessa clareza de agora, recordo o tablier, a sua complexidade, a dócil caixa de velocidades, os arranques, todo o trabalhar dos 1600 cc postos naquele motor. - Goooolooo! - exclamou a páginas tantas o senhor do lado. Pois sim... Outros mais o Benfica marcasse - que os marcasse até ao infinito, não fosse a boleia terminar no Porto, felizmente não longe da ponte da Arrábida. Meio trajecto estava completado. De Porsche, postal destoado que sempre guardarei neste ficheiro chamado memória...