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FUGAS DO MEU TINTEIRO

Imagens e palavras de um mundo onde há menos gente

FUGAS DO MEU TINTEIRO

Imagens e palavras de um mundo onde há menos gente

À boleia

João-Afonso Machado, 30.04.22

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Era o carro da Tia. Chaves surripiadas e uma voltinha de fim de tarde só pelas redondezas. Por esta e aquela rua até chegar às Caxinas, um ermo na altura, e a prima a pedir boleia, nessa noite de Vila do Conde, rumando os lugares do costume.

Pois sim, claro, com todo o gosto...

Conduzia um Datsun 1200, volante desportivo e um motor cheio de garra. Além disso, manifestamente, queria mostrar os seus dotes de experimentado condutor.

De modo que enveredou pela marginal. Estrada ampla, já bastante movimentada, na direcção norte-sul, o sol posto no meio de grande ventania. O pé no acelerador e o Datsun a crescer: Bastava olhar o conta-quilómetros - 100, 120, 130km/h... O vento a dar nesta rota musculada e veloz, mas levezinho, as areias postas pela nortada no asfalto, enfim, um baile arrojado.

- Pare, pare! Já viu a velocidade a que vai?

E o ás impactante. Ainda aspirou um cheirinho no circuito de competição automóvel, fez meia volta e deixou a lívida prima onde ela quis. Depois recolheu a casa, escadas silenciosas acima, depositando as chaves do Datsun de modo o mais insuspeito possível.

Quem deu boleia, esse dia que podia ter sido trágico - fui eu... Um desencartado e tonto.

 

O requiem venatório

João-Afonso Machado, 28.04.22

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Sem dúvida, as urgências dos hospitais requerem a sua dose de sangue-frio. Talvez uma imaginação muito treinada em adivinhar o que está por baixo das batas das médicas e enfermeiras, há-as tão giras! Ou então capaz de improvisar um estudo das hierarquias conforme a indumentária - amarela, verde, azul, branca, de antemão se sabendo que o estetoscópio ao pescoço é sinal de doutor.

Vi-me agora na contigência de uma tarde toda na urgência, por causa de um joelho agonizante, já mesma sem forças para responder à bengala. Sucata. E, estranhamente, o tempo evaporava-se. Passeei de cadeira de rodas através de um circuito todo de corredores, encontrei um antigo colega do liceu, funcionário prestabilíssimo que, em menos de um fósforo, me desenrascou a radiografia, as análises e o soro analgésico. Nesta altura alarmei-me. - Vai dar-me uma facada?  - perguntei à enfermeira que me picava as costas da mão e a enfaixava depois. Ela viu um cagarola onde só existia a fobia da imobilidade, do aperto. E três senhoras ao lado desviaram o olhar com um suspiro que dizia - Valha-nos Deus!...

A enfermeira parecia engraçadota, centrei na sua proximidade todo o meu esforço mental depois ziguezagueando entre mil conversas circundantes, gente permanentemente a chegar, a Júlia Pinheiro no seu mudo disparate televisivo. Só me faltava o ângulo de visão para a maca onde jazia uma idosa, assustada e chorosa, durante horas a clamar - Cristo, valei-me! Cristo valei-me! - com uma tal gana pulmonar que a sua energia vital tranquilizava.

Uma tarde inteira. O número de utentes entrou a decrescer, eramos já poucos. Em Ortopedia fui mesmo o último, premiado com a tremenda nova: o joelho já não presta, roído pela artrose. Foram muitas quedas, muitos esforços, muitos quilómetros. É preciso meter uns ferros lá dentro.

Qualquer dia hei de pensar nisso. Não sei, não. Não vou para o monte de espingarda na mão e ferros no joelho. Assim ouvi, placidamente, friamente, o meu requiem venatório, decerto angustiado com a orfandade dos perdigueiros, esses pobres catraios.

 

Desafio 52 semanas -17|Valência

João-Afonso Machado, 25.04.22

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Vão lá precisamente cinco anos a doença vencia-te por fim. Foi muito duro, duríssimo, não obstante o alívio de te saber não sofrendo já. E porque tudo o mais é coisa nossa, sempre poderei repisar apenas exterioridades, passeios. Valência, em 2014, na Ryanair com o meu cartão de cidadão caducado e a aquisição dos bilhetes, o check in, tudo aldrabado na sua data. Faltava só o embarque e o teu pânico era absoluto. - Deixa estar, filha, a gente não falha a viagem. Sossega!

E não falhámos. A menina do aeroporto não deu conta, não leu o CC. Estávamos (entalados) dentro do avião e já quase em Valência, sem mais peias.

Cidade magnífica. Cheia de Passado, repleta de criatividade e vida. Foi um dia para lá e para cá no leito seco do rio Turia. Doze quilómetros a pé naquela animação de sábado primaveril. E o Bioparque, o Oceanário, gerações de pontes das vetustas às mais vanguardistas, os sucessivos espaços temáticos...

Admiraste principalmente o Palau de les Arts, a sua impensável arquitectura, tão inéditas formas, náutica elevação em pino, em cambalhota, onde o extinto rio Turia só a podia deixar encalhada. Pois, era uma predilecção que bem te conhecia, o teu trajecto para a pintura que primorosamente executavas.

E eu fiquei à vontade brincando aos fotógrafos. Sem uma palavra, diziamos tudo um ao outro.

No regresso a Portugal, a mesma ansiedade com a data do meu CC. Realmente, desta feita, apanharam-me... Mas para que me queriam lá os valencianos? Fui devolvido à Pátria, que embarcasse e tratasse da minha vida.

Corremos, antes e depois, outros bocados do mundo. Tenho-os todos no meu coração, mesmo ao lado da enorme presença que és (e sempre serás) tu.

 

(Desafios da Abelha - https://rainyday.blogs.sapo.pt/52-semanas-de-2022-introducao-392169)

 

 

Por aí...

João-Afonso Machado, 24.04.22

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Não foi ainda mas será um dia. Para isso servem as montanhas, resolutas pernas humanas desafiando a altitude. E não há homem que não queira subir, subir, subir...

(Não exactamente sempre no que toca a valores patrimoniais...)

«Há uma leveza que precisamos de aprender: uma transparência que dilata a alma. Que é, no fundo, aquilo que nos permite atravessar a noite, a adversidade e a contradição ligados à chama pequenina da esperança» (José Tolentino de Mendonça).

 

Repasto camiliano

João-Afonso Machado, 22.04.22

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A "galinha mourisca" é um pitéu recentemente trazido da vasta escrita de Camilo Castelo Branco até à ciência da cozinha famalicense. Não digo a receita: primeiro porque a desconheço, só sei que lhe tomei o gosto; depois porque nunca desvendaria sigilos da nossa terra. Mas o jantar de ontem foi de festa na camiliana Casa-museu, mais precisamente na agora recuperada ala que era do seu caseiro. 

Ementa: o dito galináceo precedido de um caldo de legumes e, no fim, o celebérrimo pudim do Abade de Priscos. Tudo regado com um excelente branco da Quinta de Compostela, deste concelho, de casta alvarinho.

Antes ainda, uma visita pela derradeira morada de Camilo, enquanto vivo, acompanhada de muitas explicações do Sr. Director dessa Casa-museu. A seu tempo chegariam os convidados, os Srs. Presidente da Câmara e Vereador da Cultura. O mais era o grupo de amigos que em Famalicão há muito é conhecido por «a Tertúlia do S. Paulo».

Uma noite agradavelmente passada, recordando culinárias de antanho que o exímio Mestre Renato, do Restaurante Ferradura, tenta reproduzir com notável veracidade para o presente que vamos sendo nós.

 

Pampilhosa do Botão

João-Afonso Machado, 21.04.22

Isto é o concelho da Mealhada, o coração da região bairradina em que a História se faz sobretudo do leitão e do espumante. Mais remotamente da bicicleta e, por vezes, do comboio. Assim foi com a Pampilhosa e esse é o seu drama e a sua sempre inconformada saudade.

Vivia mais acima um pouco, a Pampilhosa do Botão, onde permanece a igreja paroquial e uma nobre casa quinhentista, bem restaurada e agora o museu de quanto diga respeito à terra.

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Mas o surgimento da via férrea entre Lisboa e o Porto, a abertura de um ramal à Figueira da Foz (já extinto) e a chegada da Linha da Beira Alta, - obrigatória para quem quisesse dar um pulinho à Europa sem ser a pé ao a cavalo - tudo passando pela Pampilhosa, transformaram por completo o panorama. A freguesia veio para perto dos carris, criou hotel, restaurantes e fábricas de cerâmica debruçadas sobre os vagões, a deixar neles o seu produto. Assim a Pampilhosa chegou a ser considerada a segunda estação do País, tanta a gente que aqui se apeava para trocar de comboio - desde logo, vindos de França, os Príncipes, nossos futuros Reis, D. Carlos e D. Amélia.

O triunfo do automóvel causaria estragos. A Pampilhosa, ido o império da ferrovia, entrou em crise e acumulou ruinas, falências e muita da sua gente demandou outras paragens em busca de futuro. E a freguesia - a vila de Pampilhosa -

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acredita ainda, reza, bate-se pelo prometido reanimamento da Linha da Beira Alta. É do que mais lá se ouve falar, dessa fé na pujante Pampilhosa de outros tempos.

Mas porquê tanta Pampilhosa na minha lapiseira? Somente porque a minha juventude andou sempre nas suas cercanias, e algumas décadas passadas sem notícias da Pampilhosa recomendavam uma visita a saber da sua saúde. Apanhei o Intercidades e desembarquei na sua gare, manifestamente despida de movimento e viajantes de avantajada bagagem. Tirei umas fotografias

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e ainda apreciei a chegada do comboio para a Beira Alta, do lado oposto da estação: uma via quase raquítica, acorcundada, e duas carruagens trôpegas, sem fibra, como que se enfiando numa azinhaga, com mil cuidados a ver onde punham os pés.

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Numa tabacaria por ali comprei (é um hábito meu) uma monografia local e folheei-a enquanto lanchava. Depois subi ao calvário dos escombros pampilhosenses. Momentos de desalento, momentos de esperança também - o Hotel Bergamim,

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a fantasmagoria das chaminés frias no tijolo sobrante da indústria cerâmica,

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os previsiveis romances de que a "Vila Rosa" foi palco...

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Tudo intermediado por mirabolantes surpresas. Desde a arte estatuária romana quase no meio da rua

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à montra esplêndida da boutique cercada de hortas e outras agriculturas.

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Enfim, no topo da freguesia inquiri por algum alojamento local e indicaram-me uma casa, mesmo lá, como sendo uma hipótese que não se confirmou. Mas, estando eu no adro da igreja a matutar teria de dormir no Luso, eis que surge a senhora sua proprietária, aflita, achando-me muito cansado, se não me valeria um cházinho. Agradeci, recusei, conversámos, ela apresentou-se - e disse-lhe então o nome do seu pai, um etnógrafo da Pampilhosa, acabara de ler sobre ele na minha monografia, de que a amável senhora era uma das principais colaboradoras. O mundo é pequeno!

O dia seguinte voltei à estação e, por 1,34€, chegaria ao meu destino - Souselas. Mas antes ainda, por sugestão do chefe, dei uma espreitadela através dos vidros estilhaçados de uma velha recolha onde dorme a veneranda locomotiva BA 61 que eu fotografei como pude,

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em bicos de pés no meio do entulho. Trata-se, tão-só, do orgulho da Pampilhosa, da sua relíquia falante dos ido gloriosos da Linha da Beira Alta que se acredita, um dia ressuscitará.

 

Desafio 52 semanas -16|O vulcão

João-Afonso Machado, 18.04.22

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Muito se consome Cupido nestas invocações da nossa memória! A fazer-nos caminhar da adolescência prá juventude e para o que mais se saberá da curiosidade do alado arqueiro dos amores.

Porque, é claro, a gente vai somando os anos e aprendendo qualquer coisinha. Devo confessar, não gostei de estudar em Lisboa, pedi a transferência para o Porto e dei comigo na Faculdade ainda muito neura. Foi quando o Curso organizou uma palestra qualquer de fim de tarde com um mestre famoso, sapientíssimo, à qual se seguiu um jantar opíparo e (sendo sexta-feira) uma incursão no Twins, a grande boite de então.

Fomos uns tantos. Eu nunca reparara nela mas essa noite, já não sei como nem porquê, dei comigo em grande conferência em volta de uma cerveja e um sumo. A que tudo se seguiu a dança e algo que emergia em mim e matava, fulminante, a dita neura.

Dormi feliz, depois, e cheio de fé no futuro. Praticante diário de judo, na altura, comecei a roubar cada vez mais pedacinhos ao dojo, até para sonhar acordado a ouvir música.

A minha amada, especialmente preconceituosa contra os monárquicos, deu muita luta. Mas tombou, enfim vencida, num célebre 4 de Maio, o primeiro dia da Queima das Fitas.

Seguiram-se meses de activíssimo idílio para desespero do pai dela. Eram outras épocas... Em Julho chumbei às cadeiras todas, com o meu Pai a intervir, recordando quem não estuda vai trabalhar... E em Agosto pus-me a caminho do Algarve sem um tostão no bolso, cheio de saudades e pronto a dormir no relvado do aldeamento onde a minha querida veraneava com a sua família. Almas caridosas me valeram com um tecto e a comidinha sem a qual os apaixonados fenecem camilianamente.

Inesquecíveis, os namoros nas águas tépidas da praia! (Com uma chaminé cá em cima baforando zangada - o incrédulo, boquiaberto, progenitor...)

Já em Setembro recompus-me das cadeiras faltosas e em Outubro descobri, na maior aflição, que realmente não queria casar, nem ter filhos, nem o mais que prometera. Mas como dizer-lhe? Como me explicar?

Sucederam-se meses terríveis, tudo fazendo para que a iniciativa terminal fosse sua. Antigamente era assim... O vulcão tão depressa eruptiu, ardendo em lavas rubras, como se apagou numa cinza fria, só com olhos para todas as beldades em redor.

Mas ficámos amigos, por fim, o drama foi digerido. Já nem sei quando, seguia de carro no Porto e ela no seu, à minha frente. O sinal vermelho aceso, a paragem e eu a lembrar-me - Hoje é 4 de Maio!

Abri a porta, saí cá fora, fui ao vidro do seu carro e preguei-lhe um grande beijo na cara - Parabéns! Comemoramos hoje as bodas de prata do nosso namoro!

E ambos rimos à gargalhada.

 

(Desafios da Abelha - https://rainyday.blogs.sapo.pt/52-semanas-de-2022-introducao-392169)

 

"O dia calado das glicínias"

João-Afonso Machado, 16.04.22

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Nada dirão hoje silenciosas

ante olhos em cantochão

cobiçando suas campainhas

 

nas longas vestes majestosas

dos seus lilases de rainhas.

 

E aos molhos despertarão

amanhãs e as gentes

as glicínias esparsas no chão

como sinos frementes, arremetidas

ígneas cores ecos, afinal flores

 

de vozes acreditando perdidas

no novo rei dos seus amores.

 

Esta sexta

João-Afonso Machado, 15.04.22

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Gosto  do mistério dos dias assim, acordando a jejuar dizeres e em andares nos bicos dos pés. Sem que a gente perceba exactamente porquê, apenas sentindo no ar o recato e o peso crescente da angústia toda do início da tarde. O dia mais arroxeado do ano. Assinalado por cruzes tão mudas quanto a morte que os tambores anunciarão logo à noite compassada, tetricamente.

Alguém morreu, pois, decerto nesta sexta-feira diferente dos mais dias somados. E por isso esta carestia de gestos e palavras, as vozes bichanando pela cidade inteira.

Talvez o domingo próximo faça alguma luz em cima de tal breu, de repente perfurado pelo lancinante cornetim do bombeiro que - antes da ceia - marcha ao centro na avenida.

 

Pai padrasto

João-Afonso Machado, 13.04.22

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Foi uma breve troca de olhares entre o Tempo e a Idade. Ele sempre remexido, todo airoso, sem uma branca no cabelo; ela descansando no degrau do espigueiro, o dia inteiro na faina, um ror de anos que se lhe adivinhavam nas rugas, segurando ainda o cajado que  a ajudara a trepar o carreiro.

Um sorriso aberto e resignado da Idade acolheu a cavalgada do Tempo, a sua euforia por um instante aquietada: cruzavam-se pai e filha - um pai déspota, é certo, sem dó da filha, da Idade, conforme todos diziam na aldeia.

O episódio quando? Em quando todas as voltas do mundo até um dia que é de cada qual. Os sinos da igreja não acalmam, badalam horas lúgrubes em timbre compassado, choroso, a encher o ar. O povo junta-se e acompanha a Idade ao seu lugar de repouso. Matou-a o pai Tempo como, implacável, não poupa Idade alguma sua filha, passada ou vindoura.

Prosseguiu o seu quotidiano a aldeia. Subjugada, submissa aos ditâmes do Tempo, fazendo procissão atrás das Idades sacrificadas. Mas mantendo sempre, escondida no fundo mais fundo da sua alma, a única parente - a querida prima! - capaz de se bater com a indiferença do diabólico Tempo - a Memória.

 

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