Pai padrasto
Foi uma breve troca de olhares entre o Tempo e a Idade. Ele sempre remexido, todo airoso, sem uma branca no cabelo; ela descansando no degrau do espigueiro, o dia inteiro na faina, um ror de anos que se lhe adivinhavam nas rugas, segurando ainda o cajado que a ajudara a trepar o carreiro.
Um sorriso aberto e resignado da Idade acolheu a cavalgada do Tempo, a sua euforia por um instante aquietada: cruzavam-se pai e filha - um pai déspota, é certo, sem dó da filha, da Idade, conforme todos diziam na aldeia.
O episódio quando? Em quando todas as voltas do mundo até um dia que é de cada qual. Os sinos da igreja não acalmam, badalam horas lúgrubes em timbre compassado, choroso, a encher o ar. O povo junta-se e acompanha a Idade ao seu lugar de repouso. Matou-a o pai Tempo como, implacável, não poupa Idade alguma sua filha, passada ou vindoura.
Prosseguiu o seu quotidiano a aldeia. Subjugada, submissa aos ditâmes do Tempo, fazendo procissão atrás das Idades sacrificadas. Mas mantendo sempre, escondida no fundo mais fundo da sua alma, a única parente - a querida prima! - capaz de se bater com a indiferença do diabólico Tempo - a Memória.