Isto é o concelho da Mealhada, o coração da região bairradina em que a História se faz sobretudo do leitão e do espumante. Mais remotamente da bicicleta e, por vezes, do comboio. Assim foi com a Pampilhosa e esse é o seu drama e a sua sempre inconformada saudade.
Vivia mais acima um pouco, a Pampilhosa do Botão, onde permanece a igreja paroquial e uma nobre casa quinhentista, bem restaurada e agora o museu de quanto diga respeito à terra.
Mas o surgimento da via férrea entre Lisboa e o Porto, a abertura de um ramal à Figueira da Foz (já extinto) e a chegada da Linha da Beira Alta, - obrigatória para quem quisesse dar um pulinho à Europa sem ser a pé ao a cavalo - tudo passando pela Pampilhosa, transformaram por completo o panorama. A freguesia veio para perto dos carris, criou hotel, restaurantes e fábricas de cerâmica debruçadas sobre os vagões, a deixar neles o seu produto. Assim a Pampilhosa chegou a ser considerada a segunda estação do País, tanta a gente que aqui se apeava para trocar de comboio - desde logo, vindos de França, os Príncipes, nossos futuros Reis, D. Carlos e D. Amélia.
O triunfo do automóvel causaria estragos. A Pampilhosa, ido o império da ferrovia, entrou em crise e acumulou ruinas, falências e muita da sua gente demandou outras paragens em busca de futuro. E a freguesia - a vila de Pampilhosa -
acredita ainda, reza, bate-se pelo prometido reanimamento da Linha da Beira Alta. É do que mais lá se ouve falar, dessa fé na pujante Pampilhosa de outros tempos.
Mas porquê tanta Pampilhosa na minha lapiseira? Somente porque a minha juventude andou sempre nas suas cercanias, e algumas décadas passadas sem notícias da Pampilhosa recomendavam uma visita a saber da sua saúde. Apanhei o Intercidades e desembarquei na sua gare, manifestamente despida de movimento e viajantes de avantajada bagagem. Tirei umas fotografias
e ainda apreciei a chegada do comboio para a Beira Alta, do lado oposto da estação: uma via quase raquítica, acorcundada, e duas carruagens trôpegas, sem fibra, como que se enfiando numa azinhaga, com mil cuidados a ver onde punham os pés.
Numa tabacaria por ali comprei (é um hábito meu) uma monografia local e folheei-a enquanto lanchava. Depois subi ao calvário dos escombros pampilhosenses. Momentos de desalento, momentos de esperança também - o Hotel Bergamim,
a fantasmagoria das chaminés frias no tijolo sobrante da indústria cerâmica,
os previsiveis romances de que a "Vila Rosa" foi palco...
Tudo intermediado por mirabolantes surpresas. Desde a arte estatuária romana quase no meio da rua
à montra esplêndida da boutique cercada de hortas e outras agriculturas.
Enfim, no topo da freguesia inquiri por algum alojamento local e indicaram-me uma casa, mesmo lá, como sendo uma hipótese que não se confirmou. Mas, estando eu no adro da igreja a matutar teria de dormir no Luso, eis que surge a senhora sua proprietária, aflita, achando-me muito cansado, se não me valeria um cházinho. Agradeci, recusei, conversámos, ela apresentou-se - e disse-lhe então o nome do seu pai, um etnógrafo da Pampilhosa, acabara de ler sobre ele na minha monografia, de que a amável senhora era uma das principais colaboradoras. O mundo é pequeno!
O dia seguinte voltei à estação e, por 1,34€, chegaria ao meu destino - Souselas. Mas antes ainda, por sugestão do chefe, dei uma espreitadela através dos vidros estilhaçados de uma velha recolha onde dorme a veneranda locomotiva BA 61 que eu fotografei como pude,
em bicos de pés no meio do entulho. Trata-se, tão-só, do orgulho da Pampilhosa, da sua relíquia falante dos ido gloriosos da Linha da Beira Alta que se acredita, um dia ressuscitará.