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FUGAS DO MEU TINTEIRO

Imagens e palavras de um mundo onde há menos gente

FUGAS DO MEU TINTEIRO

Imagens e palavras de um mundo onde há menos gente

Desafio 52 semanas -15|Esse falhado amor

João-Afonso Machado, 11.04.22

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Tenho de escrever baixinho, que ela anda por aí em facebooks e quejandos e ainda me bate à porta de vassoura em riste. Ou talvez não. Talvez tudo se lhe tenha varrido da cabeça... Mas em mim esses dias, essa noite, ficarão sempre como um marco das minhas lides amorosas. Um marco, vou avisando, de sinal dolorosamente negativo.

A praia antiga principiava em Julho e arrastava-se quase até finais de Setembro. De longe o melhor mês. Porque o mar e o areal eram todos nossos, a multidão escoara e a nortada fizera também as malas; os dias proporcionavam pores-do-sol belíssimos a que assistíamos em bando, como os indios brasileiros de antes do Cabral. Os pais tinham ido entrementes, levados para os seus afazeres de adultos, mas havia sempre uns tios reformados que nos acolhiam sem exigências de horários, reclamando tão-só não os chateássemos.

Bicicletas, pesca..., e o gira-discos portátil e os singles e LP's de casa em casa para uns serões em slow. Roupa, quase nenhuma, apenas a que coubesse na mochila.

Nos meus quinze anos assim conheci a loirinha lisboeta, essa época balnear medalhada com a grã-cruz feminina da formosura. E, como em qualquer Setembro das canções românticas francesas, apaixonei-me, dei comigo incapaz de pensar em algo senão nela.

Mas a aproximação era difícil e o meu parlapié deixava muito a desejar. A princesa, do alto da sua magnificência, nem olhava cá para baixo e, constava, escolhera já o seu princípe.

Ora, ao sabê-lo, fiquei irritadíssimo. E mesmo temeroso de "levar com os pés" jurei não iria embora da praia sem chegar à fala com ela. Setembro caminhava sempre, impunha já uma camisola depois do jantar.

Pois foi assim. A noite, por acaso, decorria em sua casa, eramos uns tantos e eu, nervosissímo, fumava à janela Portugueses Suaves (sem filtro) uns acesos nos outros. Até topar que as despedidas iam sendo feitas. Então aproximei-me sorrateiramente da pequena e só lhe perguntei se queria namorar comigo...

Que ia pensar... Ia pensar e depois me diria. Desandei para casa no maior alvoroço, não preguei olho a noite toda, sem perceber que aquela fora a maneira de não vir de lá uma brutal ordem de marcha.

De tal modo, a manhã seguinte, incapaz de esperar mais, bati-lhe à porta a saber as novidades. Haveria já fumo branco?

O "não!" foi rotundo e impaciente. Acontecera-me somente o fim do mundo! Ou da praia, se preferirem. Enchi a mochila, peguei na velha pasteleira chiadora e dei às pernas os 30 km que me separavam dos meus quarteis. Mesmo a tempo da vindima e do corte do milho para o gado...

 

(Desafios da Abelha - https://rainyday.blogs.sapo.pt/52-semanas-de-2022-introducao-392169)

 

A "sagração do Dia" da Ana Eugénio

João-Afonso Machado, 08.04.22

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Aqui está um livro que em tudo me surpreende, até na proximidade no espaço de uma autora tão longe de mim nas suas origens. Uma obra plena de poesia escondida na realidade que os poetas também vivem. E o título é isso - a sagração da vida, a sua sacralização ou a sacramentalização do existir.

Imaginemos os oceanos por cenário. Então deparamo-nos com o hino cantado ao momento das águas no contacto com os nossos sentidos. Assim é também com a mais Natureza que se manifesta e se nos atravessa à frente: os ventos, o campo (ou a cidade...), o colorido vegetal e os caprichos do céu, as gentes em geral. A felicidade ou a ausência dela, o sol e a lua. Nós e os astros do firmamento, os lugares de todos os sonhos. Ana Eugénio é incansável na demanda das sensações que nos fazem ser.

Vivi toda a minha afinidade com esta sua atitude literária. Dentro da minha religiosidade que procura em todos os recantos e sentimentos o significado de algo que vai muito além do alfa e do ómega da individualidade. Ao ler Ana Eugénio ganhei um pedaço de quietude. Diria, até, de cumplicidade com uma autora que busca o que eu intensamente tento encontrar.

Por isso, em boa hora o seu livro diante da minha leitura. Em consagração da vida. E, por isso ainda, a minha homenagem com um pôr-do-sol, fascínio sempre repetido e sempre querido, tal qual a eternidade de que somos parte. Jamais a negritude das nuvens se equivalerá à luminosidade advindo logo depois.

Muito obrigado Ana! E muitos parabéns!

 

"Montarias"

João-Afonso Machado, 07.04.22

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Hei pois de subir à serrania

o tempo a arfar para trás esquecido

pela matilha dos sonhos a ladrar.

 

Já no cimo gesticula desvanecido,

chama, grita, assobia

um disparo de alma nova

pela matilha dos sonhos a uivar.

 

Ergo triunfal a jovem trova,

o seu alar em traço ferido

pela matilha dos sonhos a rondar,

 

ergo-a  bem alto e volto  à cova,

ela comigo pendurada,

rima ensanguentada

 

(a matilha dos sonhos sem sossegar)

para mais logo a cantar.

 

Pacotinhos de cores

João-Afonso Machado, 06.04.22

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Foi a primeira captura da época. Isto não está fácil, a passarada desapareceu toda, esvoaçando como os deputados enxotados do Parlamento, ou como os vendedores da banha-da-cobra, antes que os incautos se apercebam do logro.

Calhou-me este serezino - ou cerino, ou chamariz também. Já cá andam desde Fevereiro, prenunciando a Primavera. E depois, estridulamente, encarrapitados nos ramos a chamar por elas, pelas miúdas. Acabam sendo presas das mais corriqueiras, como, em geral, todas as personalidades obsessivas. Ainda dei com outro, de pose assaz menos favorável. Era um taralhão, muito protegido pela contraluz.

Já o pisco de peito ruivo apenas o ouvi. Conheço-o de há muitos anos, vive ali para os lados das japoneiras mais cerradas. A embrulhar coloridos quando elas florejam... Detesta páginas sociais, e canta do lado de dentro da sua janela. Pois sim, sr. Pisco...

Mas nota-se mesmo, quiçá por causa da pandemia, o jardim esmorecer. Onde param as felosas, as toutinegras, as carriças? E a nidificação vive claramente uma crise sem precedentes no sector. Por este andar ainda vamos todos soltar piriquitos no arvoredo...

 

Desafio 52 semanas -14|Sem elencar

João-Afonso Machado, 04.04.22

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Não sei se serão oito factos, se mais, se menos: tenho dificuldade em responder numeradamente a questionários e a minha escrita só se obriga aos pés do meu sentir. Mas esses dias são inesquecíveis, vão lá quatro anos e o sofrimento do Pai, nesta vida cá em baixo, terminara há muito pouco tempo, após longa doença e tanta idade.

O repto veio de um meu cunhado e de um sobrinho - Vamos a Londres ouvir o Eric Clapton?

Fomos, claro. A capital britânica vivia momentos extraordinários de condições meteorológicas e de animação. Um céu miraculosamente azul, temperaturas além dos 30º, os londrinos praiando nos parques e nos seus lagos. Festejava-se o centenário da Royal Air Force e houve espectáculo sobrevoando Buckingam.

Uma multidão rodeava o palácio com as suas Union Jack até Saint James Park. Na varanda maior compareceu em peso a Família Real e a minha lente apanhou-a em cheio, repetidamente, preciosidade que guardo em cofres diversos das minhas fotografias e da minha alma. Entre os destacamentos policiais, uma agente que era um anjo - por azar indiferente aos muitos sinais de pisca-pisca que lhe enviei com os olhos. E o firmamento povoado de caças Spitfire, de bombardeiros Vickers e Lancaster, de outros muitos de maior contemporaneidade.

Depois a animação em Picadilly Circus, onde muito me honrei beijando a mão de Your Magesty the Queen Elizabeth I, de resto um pouco trapalhona, apoiada num guarda-chuva fabricado na China. Decorria o Mundial de Futebol, almoçámos num bar ao tempo em que a Inglaterra vencia a Hungria. E também nós perdemos, mas na contagem dos pints emborcados, face ao entusiasmo dos indígenas que assistiam ao prélio pela televisão.

Finalmente, o festival. Steve Winwood, Carlos Santana e o astro Clapton. Comentava-se, no seu derradeiro concerto. O palco no centro da vastidão do Hyde Park, Santana irrepreensivel. Black Magic Woman, Oye Como Va, Samba Pa Ti...  e para aquela gente toda, uma, duas, três gerações aos pulos. E quando da vez de Eric Clapton, o mundo quase veio os rebolões! A minha lente ainda o fisgou, mas pequenino, valeu-nos o ecran gigante e aquela inenarrável sucessão - Layla, After Midnigth, Tears For HeavenWonderfull Tonight (que embalo!)... e, a fechar, - Cocaine! O delírio!

Curtimos. É isso, - «foi uma curtição»! Aqui a dos velhotes, viajantes no espaço e no tempo até aos nunca perdidos Anos 70.

 

(Desafios da Abelha - https://rainyday.blogs.sapo.pt/52-semanas-de-2022-introducao-392169)

 

"Intervalo"

João-Afonso Machado, 01.04.22

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Regresso enfim à pequenez das horas

onde acordam os sonhos

dorido pranto

entre giestas em flor

e o devir das amoras.

 

Contido recanto

de uivares medonhos,

 

águas no vale corredor

por ventos picados com esporas

 

sem limite dos montes

plantios eternos as penedias

cascata de estrelas e fontes,

fossem tantos todos os dias.

 

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