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FUGAS DO MEU TINTEIRO

Imagens e palavras de um mundo onde há menos gente

FUGAS DO MEU TINTEIRO

Imagens e palavras de um mundo onde há menos gente

Desafio 52 semanas -22|A questão das batas

João-Afonso Machado, 30.05.22

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Aqui na terra foi, finalmente, a inauguração de um colégio para a Infantil e a Primária. O Ninho dos Pequeninos de sua (escassa) graça. Com a minha saudosa Mãe, uma entendida na matéria, logo convidada para conselheira. O facto é que eu e a longa fieira dos meus irmãos, abaixo de mim, ali iniciamos a nossa vida escolar, e dos Directores nos tornámos grandes amigos até que a morte os levou também.

Houve somente um tremendo problema inicial a resolver: o Ninho escolhera para os meninos uma bata azul-clara com um lacinho vermelho no pescoço e, no bolso do peito e nas algibeiras, uns bonecos quaisquer bordados ao gosto do freguês - um cãozinho, um coelhinho...; para as meninas, a mesma dose em cor-de-rosa e umas fitinhas todas pipocas como gargantilhas...

Ora isto nada ia connosco. Após longas negociações a Mãe conseguiu-nos um estatuto próprio sem laços nem fitinhas nem os tão queridos bordados, substituídos pelas iniciais dos nossos nomes. E foram então (para mim) quatro proveitosos anos de estudo - que eu não me saía mal nessas lides - e de amizades ainda agora em dia.

Sucedeu o tempo da Telescola e do Liceu. A trágica mudança do bom aluno para o magano dos bilhares e das bombas de sódio nos lavatórios dos balneários. Em plena Revolução, a comandita optara pela contra-revolução, pela anarquia... E os rigores de um colégio, na visão dos meus Pais, seria (foi) para um pouco mais de tino e a salvaguarda da minha vida de estudante. E, realmente, aconteceu depois o passo seguinte da Faculdade.

 

(Desafios da Abelha - https://rainyday.blogs.sapo.pt/52-semanas-de-2022-introducao-392169)

 

Alhandra, "a toureira"

João-Afonso Machado, 27.05.22

Foi o nunca esquecer esse trecho das Viagens na Minha Terra, de Garret, indo o barco a subir o Tejo - «já passámos Alhandra a toureira»... Como eu mesmo a raspei, quer por cima, na auto-estrada, quer mais junto ao rio, de comboio. Sem outra leitura que não fosse o colosso fabril cimenteiro, talvez o seu pão, inquestionavelmente a sua sombra, o abraço enorme que a abafa.

Mas deu-me para a conhecer nesse sufoco onde, era certo, não encontrei nem toiros nem aficion. A Praça 7 de Maio, a principal, assistiu recentemente ao regresso do pelourinho a recordar os velhos tempos em que Alhandra era concelho e não apenas uma freguesia do de Vila Franca de Xira.

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Escassa é a gente por ali. E agradável e sadio o edifício da Junta, no outro extremo da praça. Eram horas de almoço, a fome bateu-me à porta, mas às segundas-feiras quase todos os restaurantes folgam. Despachei-me com um frango de churrasco e segui pela Avenida Dr. Sousa Martins em direcção ao Tejo. Na quina, a casa onde nasceu este venerado "médico dos pobres", agora museu e vagar de um punhado de idosos.

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Os encómios à pessoa do Dr. Sousa Martins precipitaram-se de enxurro. Farmacêutico, licenciou-se depois em Medicina e dedicou-se ao flagelo da tuberculose, doença que tomou conta dele e o levaria ao suicídio em 1895. Mas toda a sua vida lhe valeu a grande medalha, a maior, - o não esquecimento pelas gentes.

Outro que ali viveu, em Alhandra, e trabalhou e morreu, foi Soeiro Pereira Gomes, um dos progenitores do neo-realismo. Esteiros, a obra que dedicou aos «filhos dos homens que nunca foram meninos», escreveu-a inspirado nos lamaçais do Tejo, no grande mouchão defronte, fértil pasto, traiçoeiro levante das águas. Assim o vi e fotografei, mais o vaivém das embarcações

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com a ponte de Vila Franca de Xira ondeando a montante.

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Não me demorei muito nesta volta por Alhandra. Solidarizei-me com o isolamento da Matriz, toda ao sol num ermo mais alto

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e procurei ângulos onde o demónio da fábrica de cimento não me ferisse a vista.

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Tão dificil empreitada que, desconfio, o comboio me foi buscar mais depressa

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para o retorno através dos mistérios ainda por decifrar da Grande Lisboa. Quão longe estamos de Garrett e de Alhandra «a toureira»!

 

Por aí...

João-Afonso Machado, 26.05.22

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Creio andar perto de um oriente qualquer nascido a bordo. De sobejo mais à vontade nas planícies aquáticas onde penso duas vezes antes de libertar a vontade das velas ou dos remos. Naveguemos, pois. Haverá uma âncora e um destino.

Esse tal destino que me dá um passo em frente. Porque, entretanto, continuo pensando onde caminho mais depressa para mim: se nas águas, se em terra.

 

Desafio 52 semanas -21|O conselho

João-Afonso Machado, 23.05.22

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Era uma boa amiga, desinteressadamente amiga, um nada mais nova, cheia de vida e pessoa sensivel, observadora. Uma bela companhia que, às vezes, se espraiava em excesso na fala - comigo, a soturnidade em pessoa. Por isso um dia a aconselhei:

- Nunca aconselhes!

E privei-me de explicar porquê, ela que descobrisse, se quisesse, o desagradável doutoral e a riqueza da mais calada sabedoria. Que se revoltasse contra a evangelização intromissa, zelasse pelo seu mundo e respeitasse o dos outros. Sempre em conversa consigo mesma, eventualmente escrevendo, escrevendo, assim discorrendo em silêncio de voz altíssima apenas ouvida por quem lhe apetecer ler. Ou então, a persistir no conselhos, fosse inscrever-se num partido político e vestisse definitivamente a roupagem das araras.

Deste jeito penso, no meu mundo "onde há menos gente". E se calhar de um modo não sovina, porque uma opinião a gente sempre dá, a troco de nada, prazenteiramente, - quando alguém a pede, é claro.

 

(Desafios da Abelha - https://rainyday.blogs.sapo.pt/52-semanas-de-2022-introducao-392169)

 

"O conto"

João-Afonso Machado, 22.05.22

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Vai em lágrimas neste ideário

algemado o biltre sob custódia

firme da lei por um lado,

 

no outro seu dicionário

aberto em par de paródia.

 

Triste maestro apeado de batuta partida,

outra vez o dito por não dito, instante rapsódia,

diária luta, aflito calvário…

 

- E agora vamos embora!,

(algemado o biltre sob custódia)

findo é o conto do vigário!

 

A preto e branco

João-Afonso Machado, 19.05.22

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A passagem-de-nível era o derradeiro momento animado da avenida que se estendia sozinha até perder de vista. Tinham levantado as barreiras, o comboio já na estação, e a locomotiva resfolegava, enchia o ar de fumo quente e fogueteava apitadelas anunciando o rumo do norte.

Aliviou o pescoço com um abanão da gravata às cornucópias e atirou o chapéu um pouco para a nuca. Diante de si quase apenas o domingo esbraseado, a marcha solitária avenida fora.

Era pouco mais do que um descampado, davam os primeiros passos algumas moradias caladas dessas abastadas famílias de verão nas praias, por isso de janelas cerradas numa triste novidade de jazigo. Ainda sequer houvera tempo do arvoredo nas bermas do passeio crescer e criar sombra. Mais além, o "espada" estacionado, em sentido, muito negro, como se também participando no velório.

Decidiu-se: o casaco às costas, pendurado no dedo, e os suspensórios bem à vista. Num esforço enorme para esquecer os pés apertados nos sapatos de atacadores.

E foi a avenida toda, só ele, parecia o dono do domingo inteiro, nem uma bicicleta em trânsito. Por fim, talvez, os ecos de algum eléctrico ronceiro lá para as bandas do Carvalhido. Caramba! Quarenta anos de vida para cultivar um próspero abdómen, nada mais, e a paixão pelo futebol. Puxou do lenço, limpou a testa e mediu os passos restantes do calvário, Constituição a riba até ao campo do Lima. Ainda compraria uma bandeirinha azul-branca e uma fita a enfiar na palha do chapéu. Arre pernas!, mexei-vos e eu pago-vos uma cerveja antes do jogo...

 

Desafio 52 semanas -20|A minha imagem

João-Afonso Machado, 16.05.22

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Confesso, sei utilizar o meu telemóvel para quase nada. Não evolui, nem quis, continuei agarrado à minha máquina fotográfica, se é que de fotografias falamos neste desafio. A 11ª imagem do meu telemóvel... se existe alguém, não eu, se existe, outrém a deixou lá, não consigo descobrir quem. E assim para dar à caneta fui buscar a 11ª fotografia da minha última série, ainda no cartão da Canon. 

A nada responderei senão na presença do meu advogado, eu próprio que me autorizo invocar gerações mais velhas que conheci - a dos meus Avós e dos meus Pais, já desaparecidas, - e as mais novas, as dos meus filhos e sobrinhos e sobrinhos-netos. Nessa tarde da outra semana, agora que as rosas dão cor ao jardim com toda a pujança.

E mais não presenciei, embora possa acrescentar a convicção num granito tão longo quanto o sangue ontem, hoje e amanhã. Neste recanto de vida de onde se parte à descoberta do mundo, e de nós próprios, e ao qual se regressa como crianças em busca do colo materno.

«E mais não disse», dactilografou o escrivão a fechar o auto de declarações.

 

(Desafios da Abelha - https://rainyday.blogs.sapo.pt/52-semanas-de-2022-introducao-392169)

 

Para quê?

João-Afonso Machado, 15.05.22

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Saibam todos, eu estaria mudo e quedo não fora essa escorregadela de olhar pel'O Enforcado de O'Neill - «Um gesto suspensivo de um sobreiro,/o enforcado./ Badalo que ninguém ouve,/espantalho que ninguém vê,/suas botas recusam o chão que o rejeitou./Dele sobrou o cajado.».

Era toda a crueza posta em destaque e não há nomes nem identidades, como determina o respeito pelos que padeceram. Há somente a perplexidade ante o fenómeno Patino ou Quinta da Marinha e o gigantismo de fortunas suspeitas que jamais irão connosco na viagem final.

São milhões de "porquês" num insolucionável engarrafamento de pontos de interrogação. Sobretudo quando a outra face de nós, gente, nem sequer goza o beijo da praxe e pede vida, oferece generosidade entre o ladrar dos cachorros e o salutar ruído das carripanas a subir a ladeira.

Um sobreiro nos confins do outro hemisfério porquê? Onde ficou o cajado?

 

Caravanserai

João-Afonso Machado, 14.05.22

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São as mil e uma noites no andar navegado e resignado dos dromedários no deserto. Um oriente de sons que Carlos Santana trouxe dos domínios dos emires com os seus quarenta ladrões da grande acústica.

Caravanserai, o álbum de 1973, perdido e recuperado pelo meu filho num velho mercador tessalonicense. Ligou-me e contou - Pai descobri o CD do Caravanserai; o pai quer que lho leve?

Claro que quero. Trouxe, ofereceu-mo, estou a ouvi-lo tantas tempestades de areia depois. Agora é noite entre as dunas, uma especial percussão de mistério, em breve o Song of de wind, Santana já não toca guitarra, dedilha a sua cimitarra.

Congas e timbales. Será o início do repasto e dos umbigos femininos voando sobre as almofadas. Cada vez mais frenéticos, o batimento aumenta. O abrigo torna-se populoso, expectante. Véus, albornozes, as estrelas cintilando no céu, vozes audíveis finalmente. Magnífico keyboard! Sempre a percursão e os lânguidos corpos das bailarinas, day by day terá dito algum britânico infiltrado, escondido na sua Stone Flower. Mais descontraídos os latinos, à La Fuente del Ritmo.

Contam-se longos, milhentos, passos do percurso. Enfim o descanso e os ecos neste abrigo das memórias de há tantos anos, no regresso do deserto com Carlos Santana.

 

No peitoril da janela

João-Afonso Machado, 12.05.22

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Estava fechada mas dei-lhe ar novo em tempo das andorinhas, cumprindo a vontade dela e minha de encorpar o mundo, onde o mundo ainda tem respiro. E rendi-me ao seu parapeito numa tontice de bifocalidade.

Ora para dentro, ora para o exterior.

E dessa janela, uma perna cá, outra lá, fui lendo a vida desde a secularidade convergida até ao ponto negro da ignorância e dos ecos entre paredes, num rápido trejeito contraluz; e visualizando o infinito dos amanhãs ao sol que se escapuliam no acaso dos ventos contraditórios.

Afinal não desacertara. O Passado tem escoras; o devir, pontos de interrogação e o atemorizante horizonte. O que foi, foi; o que será não espera por nós. Apenas é - e é uma forma perigosa do verbo ser, tão vastamente quanto todas as aberturas das janelas, impossíveis de cerrar, mesmo se aparentemente fechadas na pequena terreóla onde esbarram nas vizinhas.

Assim apreendi Rainer Maria Rilke - «Não és tu uma nossa geometria/janela, tão simples forma/que sem esforço circunscreves/a nossa vida enorme?», - enfim alguém soube traduzir sentimentos por mim carregados no respeito de um antes e na fé do depois a eternizar-nos a alma. Bifocalmente, claro, insisto eu, - no rio das gerações que, se secassem, secariam os oceanos também, como um silêncio lunar.  

 

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