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FUGAS DO MEU TINTEIRO

Imagens e palavras de um mundo onde há menos gente

FUGAS DO MEU TINTEIRO

Imagens e palavras de um mundo onde há menos gente

O Morfeu

João-Afonso Machado, 30.06.22

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Em tempos que já lá vão, almocei frequentemente no Porto com uma querida amiga num apagado restaurante que por acaso descobri, sem placa, quase sem janelas, algures nas cercanias das Condominhas. De maçicas portadas de madeira e dois perigosos degraus para baixo, porém com mesa posta com toalhas e guardanapos de pano. E logo lhe tomámos o gosto, visto cozinhar o melhor rosbife da cidade toda. Era o Morfeu.

A minha amiga - uma insaciável carnivora - nunca mais quis outra coisa. Em matéria da pinga, havia sempre alguma novidade nos tintos durienses. Para obstar a esperas, eu fazia então o meu telefonema matinal à Maria Jorge, a proprietária, - Hoje estamos aí à uma da tarde para o rosbife... - Restava somente chegar, sentar à mesa e assistir à corrida da travessa vinda da cozinha, carregada de carne e batatinhas fritas. Enfim, eramos felizes.

Ainda conduzi outros amigos ao altar da Maria Jorge. Mais clientela habitual, muita gente ligada ao Vinho do Porto. A fama batia, assim, à porta do Morfeu.

E com um vigor tal, o restaurante desceu ao rio, modernizou-se, todo penteado, e botou esplanada na Marginal, na Rua do Ouro, a Massarelos. Já nessa altura a Maria Jorge nos preparava os pratos para os quais fornecíamos a matéria-prima: a lampreia, a lebre, o faisão, o javali, e vinhos da safra de alguns.

Jantei outra vez no Morfeu no transacto dia 23. (Somente o aniversário de mais uma grande amiga, um número redondo, simbólico, me levaria ao Porto na noitada de S. João! Foi na dita esplanada, em mesa de muitas décadas de "irmandade".) Além das variadas e excelentes entradas, em sintonia com o festejo popular uma sardinha assada - uma só por bico - acompanhada de pimentos, decerto a poção que lhe enrijecia a carne e a despia de outras espinhas além da dorsal. Uma delícia! E o melhor estava para chegar - o cabritinho!

Cabritinho porque filho querido do saber culinário da casa. Assadinho no forne, com batatinha, arrozinho e grelinhos. Tenrinho, carnudinho, a desfazer-se-me na boca. Muito bem temperado, perfumado de louro, de quantos mais condimentos. E escoltado à retaguarda por morangos e um fabuloso bolo de chocolate.

Quanto aos liquidos, mantive sempre a minha fidelidade ao Parceria branco, um vinho do Douro bem apaladado, discreto o bastante em teor alcoólico, muito leve e fresquíssimo, o ideal para se beber à noite.

Restava o apertado abraço aos comparsas, à despedida, e um adeus à Maria Jorge, como todos nós mais pesadota e insistindo em tratar-me por "Dr.", a mim, o velho Machado.

 

Javier (em Navarra)

João-Afonso Machado, 28.06.22

Subitamente, tudo acontece muito depressa: Pamplona ficara para trás, sai-se da autopista, entra-se numa carretera normal e topa-se a indicação no desvio para uma subida a sério - Javier. Só quem souber algo mais enveredará por aí.

Porque é do castelo de Javier que nos aproximamos. Fortificação que remontará aos sarracenos do século X, depois tomada no período da Reconquista Cristã e palco de muitos desaguizados entre as Coroas de Navarra e de Aragão.

Como qualquer castelo, o seu lugar é cimeiro. Por isso, a pequena aldeia de 100 habitantes primeiro,

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toda ela de olhos fechados, regalada na sua sesta, quatro bandeiras quietas nos mastros (as do costume: da UE, de Espanha, de Navarra e do Ayuntamento) sem a mínima intenção de me apresentarem o "Consistório", porventura a Junta de freguesia deles, que tanto me apetecia conhecer. Mas o ar fervia... E somente lá em cima, enfim, junto às muralhas parei e bebi um pedaço forte de brisa aquecida como qualquer chávena de chá fumegante para quem já vem a suar - reconfortando, feitas as contas.

O elemento de mais idade é a torre de menagem (dita de San Miguel). O castelo foi deitado ao chão de onde se levantou maior, reconstruido com outros torreões, ponte levadiça e até uma capela, em cujos murais se desenha uma Dança da Morte única em Espanha.

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Tudo não seria muito mais do que isto se, no século XVI, não pertencesse o castelo à Família de Francisco, o santo que daqui partiu, andou por França, embarcou para o Oriente, pisou terras do Japão e só não logrou passar os muros da casmurra China. S. Francisco viria a morrer de exaustão, sendo sepultado em Goa, onde ainda hoje é venerado. E também por estas bandas, em que anualmente se realizam umas concorridas Javieradas.

O castelo, em finais do século XIX,  pertencia à Duquesa de Villahermosa que o doou à Companhia de Jesus. Transformou-se então num museu evocativo de S. Francisco Xavier e é notável o acervo de pintura e peças diversas conexionadas com a sua vida. Mas, essa tarde, a minha atenção ia mais para o lado guerreiro dos Senhores de Xavier e as diversas panóplias de armas na pedra fascinavam-me.

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Porque ali estavam as concepções quinhentistas do combate apeado: as espadas que trocavam as voltas às cimitarras asiáticas, o papel defensivo e surpreendente das adagas, o requinte do elmo árabe e um desses capacetes que os portugueses perderam aos milhares em Alcácer Quibir. Mais um arcabuz, arma de fogo sem pressa que deixava a mecha arder até chegar à pólvora e provocar o disparo (o qual a vítima decerto aguardaria obedientemente no seu posto...).

Ou então a armadura, um pouco mais antiga mas completa,

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à primeira vista adornada com o avental da minha cozinheira, ou com algum vislumbre de Mary Quant, mas não, o saiote era ornamento de valia na indumentária dos cavaleiros da época.

Não longe do castelo, a Parroquia de la Anunciación,

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austero templo onde ainda serve a pia baptismal em que S. Francisco recebeu o seu primeiro sacramento. Visitei-a, apreciei-a, achei-a no lugar devido, ao contrário da Basílica erigida paredes meias com o castelo!

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Não por que seja de esperar qualquer ataque de muçulmanos ou aragoneses... Ou mesmo de portugueses revitalizados e audazes... Mas porque a História é a História e não era assim. 

Ficou o passeio pelas muralhas, um horizonte sem fim entre os dentes das ameias.

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E caindo a tarde, o refresco do costume no hotelzito local, um naco de conversa entre amigos e parceiros de viagem.

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(Conquanto a noite fosse dormida em instalações dos Jesuítas, muito defendidas contra os rigores da invernia mas completamente permeáveis a estas vagas de calor. Horas tremendas de sofrimento e suor, quase de exaustão javierana.)

 

Desafio 52 semanas - 26|O futuro

João-Afonso Machado, 27.06.22

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Se repararem, estamos precisamente a meio deste longo "desafio" (que vale, enfim, a nossa vida), ou seja, a meio do corrente ano da Graça do Senhor de 2022. E muitos, na sua existência, não chegaram ainda a metade do seu similar percurso, enquanto outros já saltaram a fasquia e correm adiante rumo à grande meta de todas as interrogações. Como é o meu caso.

Que futuro?, que objectivos?

Há trinta anos eu temia os meus sessenta e dois. Hoje, contabilizados os tais sessenta e dois anos, vivo tranquilamente longe de aritméticas. A gente compreende e aceita, a ciência tudo poderá transformar menos a sincronia do Tempo. Se é certo os planos encurtarem no prazo agora, mais verdade constatamos na consolidação dos nossos ideais. Sobrevêm salutares dúvidas, a dar-lhes condimento e convicção - «É um império aquela luz que se apaga ou é um vagalume?» (Jorge Luís Borges).

E o grande objectivo consistirá, então ("fernandopessoamente"), em não nos possuirmos de objectivo algum. Ficando-nos pela inofensiva empresa de decifrarmos os lugares do mundo e das suas gentes. Até ao limite que Deus e o Destino nos proporcionarem.

Seja tudo depois muito rápido e indolor...

 

(Desafios da Abelha - https://rainyday.blogs.sapo.pt/52-semanas-de-2022-introducao-392169)

 

Um mundo de quase faz-de-conta

João-Afonso Machado, 24.06.22

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Nada mais confrangedor do que as nossas fronteiras terrestres, cá para a gente uma linha imaginária, apenas, para quem chega ou sai de casa. Nem sequer o saltinho de um murete...

Para os camionistas de longo curso, vastíssimos parques de estacionamento e pernoita nesses monumentais TIR's autênticos moteis com cama e água lavada e mulheres (não, nada estou a insinuar, são certamente as suas legítimas e amantíssimas esposas e companheiras de uma vida na estrada) descendo os degraus para um clima de fuel pingante e óleos escorregadios, jardins recém-chegados onde se instalam calções garridos e celulites várias, praia de ares navegantes na ondulação do calor.

Enfim, para as excursões as fronteiras são a explosão contida durante horas, a euforia dos caramelos, chocolates e jamons, os supermercados virados do avesso; para os portugueses da raia, o combustível a preços humanamente acessíveis; e para o espanholito, a petiscada, a vinhaça, tudo baratinho mas reclamado na sua porfiada tagarelice.

Em outros tempos, guardas mal encarados, severos e armados revistavam-nos os carros nas fronteiras. E a gente jogava ao gato e ao rato com eles. Era mais divertido e um pouco menos barulhento.

 

Por aí...

João-Afonso Machado, 23.06.22

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Tudo já não é. Sequer os cimos, transformados em garimpeiros do vento, e as encostas, socalcos anónimos e despidos. Como as searas que os ratos e as cidades vêm devorando, de conluio com serpentes infindas asfaltadas.

Os motores rugem, bestas disformes mas reais. Aqui não cabe a ficção científica e o traço restante da Natureza é um aqueduto apenas. Porque os homens esqueceram - que o construiram e de o destruir.

 

Azpeitia (no País Basco)

João-Afonso Machado, 21.06.22

Comecemos em 1521, durante a invasão francesa de Navarra. Pamplona: o cerco previsivelmente bem sucedido não intimida o combatente Iñigo, basco indomesticável que convence o governador e os demais capitães da guerra a resistirem. Seria ele um dos primeiros a ficar ferido com gravidade em ambas as pernas. Lá à frente, vítima de um tiro de bombarda. Galhardamente, os triunfantes "gauleses" conduzem-no à sua terra - à Torre de Loyola em Azpeitia.

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Assim Iñigo teve pela frente todo o tempo para sofrer, suportar dores e cirurgias inimagináveis... e ler e pensar. Lentamente se lhe vão os ímpetos da espada e nele brota uma vontade de partir e de viver do espírito. Era a concepção da Companhia de Jesus, filha de Inácio, o Santo Inácio de Loyola. O transfigurado Iñigo.

Azpeitia é, por isso, antes de mais, a sua invocação. O Santuário setecentista em memória de Inácio, uma visão que eu quis permanecesse nocturna.

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Talvez como protesto contra uma das suas alas que empareda a reconstruída Torre de Loyola.

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Nunca tal conhecera: séculos de granito e história enjaulados, decerto num estertor claustrofóbico, pilhados de todos os ângulos possíveis de uma fotografia capaz. Sirva de atenuante a tal malfeitoria a grandiosidade da abóbada do Santuário

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e os espaços verdes circundantes que nos esfregaram frescura nesse dia em que o ar rebentava em 40ºC. Para lá - para o parque - se encaminhavam os visitantes - as freirinhas e

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nós - e a população local, um ribeirinho - um nada de água - flutuava nas imediações como qualquer tábua de salvação de náufragos ante as incognitudes oceânicas.

Nesse fundo cercado por serranias a encerrarem o calor todo, Iñigo-Inácio terá alcançado sinais do Céu postos na beleza da paisagem.

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Essa é a minha leitura, mesmo do que possa ser a oração e o conhecimento.

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Tolhido de um pé, todavia, corri através do forno de olhar nos cumes.

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a descobrir o rio, a casa que elegi a minha - a casa do meu sossego - porque sonhar não paga impostos nem taxas de registo predial

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e a correnteza ia gorda de barbos e escalos (Inácio pescaria também?), codornizes e galinhas de água.

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Não, afinal não fora ainda lançado às chamas do inferno...

A noite aproximava-se e Azpeitia convergia para a sua Plaza Central em busca de algum alívio, um fio de brisa deambulando naquele castigo. Também eu, no regresso da incursão pela zona antiga cidade, estafado, já quase sem pé (qual Iñigo...), ofereci-me a dois monumentais mergulhos em outras tantas canecas de cerveja sôfregas, fresquíssimas. Porque, creio, S. Inácio procederia de igual modo.

 

Desafio 52 semanas - 25|Pacotinhos de inspiração

João-Afonso Machado, 20.06.22

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Digamos simplesmente a única fonte minha de inspiração sou eu próprio. Isto no monte às perdizes, como toda a gente entendeu: nesses amanheceres às vezes precedidos de jantares excessivos e noites mal dormidas, levantares contrariados, disparos vesgos e sermões aos cães; ou nos empolgantes nasceres do sol, com pernas rijas e andarilhas, as mãos a correrem a arma, o tiro, o cobro pelo canídeo auxiliar... - instantes de plenitude, diante nós o mais vasto e agradável horizonte e a máquina fotográfica (espingarda ao ombro), quando o cinto estiver já bonito, bem composto. Caçar é um estado de espírito, - sempre sentenciei aos meus amigos e parceiros que mediam as minhas oscilações de resultados em tais lides.

E, vendo bem, todos os nossos actos consubstanciam também o estado em que se nos revolve o espírito. Como, por exemplo, aquele que me impele da cama às seis matinais e jorrar páginas de escrita no silêncio circundante, até voltar a adormecer em contramão nos horários corriqueiros.

Por isso, em geral, eu sou o que sinto, e uma bonita senhora essa mesma impressão que me causou. Quem diz a bonita senhora, diz esta ou aquela incursão por aí, a forma peculiar como captei as minhas imagens porventura em dia atento e inspirado - em dia sim.

Só eu interfiro comigo, para o bem ou para o mal. O meu trato com as palavras faz-se decorrentemente. A lembrar-me Heine - «Le coeur du poéte est le point central du monde» - dando-se o caso de não ser pretensiosa a insinuação de nesta casa se passearem alguns laivos de poesia.

 

(Desafios da Abelha - https://rainyday.blogs.sapo.pt/52-semanas-de-2022-introducao-392169)

 

Salamanca

João-Afonso Machado, 16.06.22

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Para nunca mais, creio. Para nunca mais tão apetecida cidade e os seus longínquos foros universitários. Aconteceu não há muito tempo, a expedição planeada até Málaga e o terror repentino, logo no primeiro dia, por razões (não importa quais) a suster-me o peito como balas de calibre superior. Nunca mais!

Nada pior do que a paz fugindo buraco abaixo e a danação a tomar conta de um espírito apenas voraz de sossego e palavras tranquilas... Aconteceu!

O retorno, por Vilar Formoso, a A5 toda, foi o alívio possível. A deixar morrer memórias ilustradas de Salamanca à noite, a sua beleza, uma momentânea Salamanca depois guardada a sete chaves deitadas fora. Comigo, apenas a fantasmagoria da alva senhora tão triste quanto eu. É ela Salamanca.

Hoje mesmo estarei em viagem por Leon-Castilla. Mas em rodoviário voo rasante, ao largo, virando a cara para a banda oposta. O destino é a norte, muito a norte, quase nas águas marinhas da Biscaia - Salamanca, nunca mais!

 

À boleia

João-Afonso Machado, 15.06.22

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Chegando o tempo quente é sabido, principalmente aos domingos cresce muito a temperatura dos espíritos motorizados. Por esse - e não só esse - motivo se diz a vida à boleia é uma aventura. E com tais palmadinhas nas costas esta malta do Poder se descarta de nos proporcionar transportes de qualidade a preços acessíveis.

Pois nesse dia já antigo e de feroz canícula, tinha de subir a Falperra: não me lembro porquê mas a minha pessoa era aguardada no Bom Jesus. Vaí daí, lá no fim de Braga, de cabeça ao sol e o polegar esticado...

O Mini parou, muito barulhento. Estava para breve a Rampa... O condutor, todo apressado, fez sinal com a cabeça, que entrasse rápido. E arrancou, primeira, segunda, terceira, reduziu na curva soltando um formidável raté e apresentou-se: era o... (não me ocorre o nome agora) e concorria no Campeonato Nacional de Iniciados. Com aquela máquina, está visto, e uma preocupante míngua de patrocinadores, ninguém parecia impressionado com os rugidos de um 850 pintado de Cooper S.

Foram as voltas da Falperra a suportar a revolta do incomprendido ás. E eu também. Os braços retesados e as mãos firmes no volante desportivo, com a direita vindo muito à manete das velocidades, ratés atrás de ratés, um insuportável fedor a carburante e a desagradável visão, aqui e ali, de seguirmos em frente, ravina abaixo. Não sei se bateu algum recorde, mas tudo se passou com celeridade bastante para o pânico não se entranhar. Chegados lá acima, pus-me fora de um pulo e agradeci a boleia. Sobretudo agradeci estar ileso, mas isso foi entre mim e o mui nosso Bom Jesus, em curta passagem pela capelinha. Desta vez, a Rampa não fizera vítimas...

Quanto ao Marku Allen latino, nada mais soube dele. Se calhar até veio a brilhar no Campeonato Nacional de Iniciados.

 

Desafio 52 semanas - 24|O Pai

João-Afonso Machado, 13.06.22

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O primeiro de uma prole de seis filhos, tal me valeu alguma atenção inicial a esvanecer-se à medida que a ninhada aumentava... Não gostei (detestei) o fim desse primado. E o meu mundo  circulando no espaço das Letras, perdia para o dos meus irmãos,  todos das Agronomias, tal qual o Pai. Assim o desacerto entre nós, pese embora o gosto mútuo (e só nosso) pela caça.

De uma saúde férrea, gabado por rebentar com os guias durienses mesmo que os seus pés já chorassem sangue, o Pai - atirador exímio - deixou as perdizes muito cedo. Sem jamais explicar porquê, conquanto eu conheça o motivo, o seu sacrifício. Enfim, caçámos juntos uma vez apenas...

Já as nossas discussões ocorriam com frequência, versando sobretudo questões de gestão familiar. Porque no restante... o meu curriculo venatório, contas feitas, sequer se aproximava do do Pai. Que, na sua juventude, nem necessitava de cães, quando muito valiam-lhe os dos condutores das caçadas. Entretanto, vindo nós para a actualidade, sem perdigueiro a coisa mancava, já a quantidade não era a dos bons tempos.

(- Então quantas não matou? - perguntava no gozo o Pai, na minha volta de cada fim de semana...)

Tornei-me criador de perdigueiros nacionais, aprendi a treiná-los, tive-os de primeira água. Com o Pai sempre a deitar abaixo, a menosprezá-los, descobrindo-lhes defeitos.

Um dia, o Pai, já muito velhinho e doente, deixou-nos, foi descansar desta vida. Ao lado da Mãe, então me compenetrei do embuçado gosto do Pai pelos meus cães e pelas minhas andanças no Alentejo, entre perdizes, lebres e javalis. Ou pelas poucas galinholas saídas a tiro e tombadas. E pela minha escrita, "arte" vinda de trás que o Pai não praticara. Não, o Pai orgulhava-se deste seu filho.

Nada foi tardio, pois. Tudo aconteceu no momento oportuno. Mas, para não esquecer os imediatismos, aludo a duas ou três vezes em que o Pai chorou no meu ombro... Era, e é, a minha referência, o Pai. Como ele, o Pai, bem sabe e eternamente se lembrará.

 

(Desafios da Abelha - https://rainyday.blogs.sapo.pt/52-semanas-de-2022-introducao-392169)

 

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