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FUGAS DO MEU TINTEIRO

Imagens e palavras de um mundo onde há menos gente

FUGAS DO MEU TINTEIRO

Imagens e palavras de um mundo onde há menos gente

Santo Antero

João-Afonso Machado, 30.07.22

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Almoçávamos sossegadamente em agradável esplanada dando para o Largo com o seu nome, de frente para a casa onde viveu entre 1881 e 1891. Antero de Quental! O nosso maior sonetista, o único capaz de filosofar em duas quadras e dois tercetos decassilábicos. Um homem a pedir amor, compreensão e eternidade. (Sabedor da edição próxima dos seus sonetos, escrevia Eça ao amigo comum Luís de Magalhães, em 1886, - «Há almas sofregas desse alimento espiritual. Que esse Santo filósofo mostre a sua superioridade sobre os Santos do Calendário - aparecendo vivo e brochado, aos seus devotos».

Santo Antero, - assim ficou prá História. E depois do estudante em Coimbra e tipógrafo em Paris, - ermita em Vila do Conde, num longo percurso onde bandeirou a Revolução e o socialismo proudhoniano e depois proclamou Cristo e o budismo, quis o Nirvana, quase atingiu o desespero dividido entre a imanência e a transcendência, o lugar próprio da Humanidade na terra e o anseio metafísico de algo muito maior.

Nos então calados areais de Vila do Conde pediu aos ventos lhe trouxessem remédio para as suas angústias. Viver é comprender e eu - um imodesto - recordo palavras antigas de um senhor psicólogo dirigidas a mim - A sua personalidade tem muito de Antero... - observava ele.

Devorei os seus sonetos. O derradeiro, de 1884, é vilacondense e intitula-se Na Mão de Deus, dedicado à Mulher de Oliveira Martins, - «Na mão de Deus, na sua mão direita,/Descansou afinal meu coração./Do palácio encantado da Ilusão/Desci a passo e passo a escada estreita./.../Selvas, mares, areias do deserto.../Dorme o teu sono, coração liberto,/Dorme na mão de Deus eternamente!».

Foi a década mais feliz na sua atormentada vida de Santo Antero. «O meu misticismo dia a dia se consolida mais» -  dizia ele ao amigo Lobo de Moura - «A minha religião, o meu culto de existência super-sensível, sem o qual não sei o que seria desta minha pobre existência sensível».

Antero trocaria Vila do Conde pela Ponta Delgada do seu berço e do seu esquife, em 1893  morto pelo reaparecido desespero, num banco de jardim em que já me sentei um dia, em comovido abraço ao Poeta. 

 

Fiquem lá com a praia toda

João-Afonso Machado, 27.07.22

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Assim a minha vida levou uma reviravolta: numa prosaica ida à feira. Ou no confronto do mundo lá fora, esse tal em que não comungo.

Em boa verdade, o meu objectivo eram as galinheiras, um resquício na minha alma nos tempos da saudosa Avó e madrinha - a capoeira toda em dia de sacrifício (como se a bordo de uma jangada Mediterrâneo fora...), as codornizes e os coelhos e os chinos... Mais o recanto das cerâmicas e o nosso galo de Barcelos, agora emparceirado com a sua galinha, numa monumental demonstração do Kama Sutra inteiro... E, finalmente, as mobílias de casa, uma delícia de anacronismo...

Aconteceu, de permeio dei com as barracas dos tecidos - roupa, texteis-lar e... toalhas de praia, que a época é delas. Não consegui evitar o olhar, muito menos a estupefacção!

Porque nunca imaginara dar de caras com o CR7 em tamanho natural e poses de Bruce Lee, uma mensagem subliminar - conclui - para quem gostar dela; ou uma mulher nua em pano (em pano, para que serve uma mulher nua???); e mesmo um atoalhado e atabalhoado verde-encarnado-amarelo com o traçado nacional e um campino, Fátima, um rabelo, se alguma vez me deitaria nesse resquício da propaganda turística de Salazar!...

- No mínimo já fomos invadidos pela China - congeminei. E logo desandei, na total certeza de que, sendo estas as matizes da praia, a praia não é lugar onde eu tenha assento.

Volvi ao rio. À lota. À petinga. Ao tasco. E às sombras. Sempre longe do areal super-hiper-povoado de hipotéticos CR7's e nudezes inúteis ou estapafurdias representações da Ditadura. Que a minha pele é muito sensível e os meus usos ainda mais.

 

Desafio 52 semanas - 30|"Valsa da brisa enfim"

João-Afonso Machado, 25.07.22

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Conta, provaste a dor, levou-te de mim

o calor, as chamas,

devaste, mil faces de horror.

 

Conta, voltaste, voltaste, assim voltaste

em jeito de dança lenta por fim

e os dois rodámos, os dois abraçámos

 

- conta amor - a noite, o céu, as estrelas,

 e os dois valsámos, valsámos sim

em alma e cor de brisa enfim.

 

(Desafios da Abelha - https://rainyday.blogs.sapo.pt/52-semanas-de-2022-introducao-392169)

 

Vila do Conde

João-Afonso Machado, 22.07.22

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Mas se não ponho o bridão à boca ainda sai um livro todo... As recordações de Vila do Conde são isso - são os tempos do tractor que levava a tralha e as galinhas para um trimestre quase inteiro onde não havia supermercados; do leite vendido porta-a-porta, manhã cedinho, e as medidas da família - quartilho e meio - a sair da bilha logo então; são as peixeiras, a canastra descida da rosca na cabeça, e a ciência da Avó a negociar o preço do goraz, do capatão, do robalo...; e as manhãs desertas, cinzentas, a ronca da Póvoa invisivel a uivar longe, depois da cortina do nevoeiro.

De seguida, as bicicletas. O mundo era nosso, corrido nos passeios, quase repimpando na barriga do sargento do posto local da GNR. Complacentemente...

Eram as ruas todas por conta das tantas gerações que congregavam o bairro balnear.

E a praia, as barracas como casario vizinho e amigo. O banheiro Baltazar, um vigilante que tranquilizava os nossos pais. E a Sra. Ana dos bolos...

Tudo já pertence ao passado. Vila do Conde morreu para os que a distinguiram a única que foi. Por ela restam alguns fantasmas apenas.

Sou um deles. (Dos mais inofensivos...) Onde antigamente os carpinteiros serravam e aplainavam o madeirame das traineiras, eu e os velhotes sobrantes matamos saudades e celebramos estranhos rituais de eternização em almoços de peixinho bem regado.

 

Pacotinhos de voluntarismo

João-Afonso Machado, 20.07.22

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Era mesmo o derradeiro adeus - lenta e arrepiantemente o caixão chumbado e as portas do jazigo abertas, um silêncio sinistro que tomou conta de todos. Os pais da jovem defunta amparavam-se um ao outro vergados ao peso da dor, mas terminantemente resolvidos a suportarem o calvário. Os dois, só eles, como se em roda houvesse ninguém.

Até que essa exaltada quis brilhar. E, aos berros, vai de chamar a irmã para buscarem um carro e, contra as normas expressas do respeito devido ao local e às circunstâncias, avançarem até ali para uma boleia de regresso dos desditosos e exaustos Pais.

Queriam estes somente o recíproco apoio e estarem sós ou na companhia dos demais filhos, que nenhum faltara às exéquias da irmã.

Mas o voluntarismo, além de altifalante, é omnipotente. Os velhinhos foram enfiados à força na viatura e nem a sua descendência ousou opor-se à profissional voluntária.

(«... E as carpideiras chegam... vêm esbeltas,/Com lágrimas e luxo. Ó carne morta/erguendo mãos diáfanas de celtas!» - in Clima de Pedro Homem de Melo.)

Pois que saibam: quando chegar a minha vez ai do voluntarioso que se lembre de perturbar! Ai dele!, levará com o meu espírito a atazanar-lhe a vida até ao fim dos seus dias.

Os especialistas do voluntariado!... Como se todos não tivessemos o direito de querer sim ou querer não. Ou até de não querer dizer que queremos sim. Sem alguma obrigação de satisfazer caprichos disfarçados de boa vontade, protagonismos hipócritas e gestos pretensamente nobres desses que, em casa própria, geralmente não se levantam antes do meio-dia.

Voluntários de ofício, jamais por vocação.

 

Desafio 52 semanas - 29|Pelas minorias...

João-Afonso Machado, 18.07.22

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Andamos, é claro, entre montes e a quinta e aqui por casa onde, a bem dizer, os cães e os gatos são família também. A bicheza é muita, no céu e na terra, velocíssima ou pachorrenta. Quase só as cobras se escapam ao nosso olhar. E eu gosto delas.

Gosto pelo mistério dos seus dias amaldiçoados desde as primeiras páginas do Génesis; e gosto daquela expressão parada e fria, de todo indiferente a quaisquer sentimentos, e, acima do mais, do terror que incutem e da plausivel hipótese de dar com uma na esquina do corredor ou no postigo da cozinha.

Ou seja: as cobras são uma lenda viva. Atemorizam e repelem e até dão umas ferradelas. Não nego lhes guarde um certo respeito. Mas a questão é essa: a quebra dos mitos e o nosso autodomínio.

Assim o meu Pai ensinou, e eu ensinei os meus filhos, a apanhá-las. A gente põe-lhes a bota na cabeça e segura-as pela pontinha da cauda. Nunca mais o bicho nos alcançará os dedos. Depois há de se cansar, deixa de rabiar e algumas espécies até aceitam a nossa companhia. Sempre com a língua cá fora, deslizam-nos pelas mãos e os juvenis não se dão mal no aconchego dos bolsos de umas calças mais folgadas.

É o tempo de gozar a beleza das suas cores. E de perceber, sem gritaria, que a Natureza está aí - mandíbulas, garras e veneno à parte - para desfrutarmos dela.

 

(Desafios da Abelha - https://rainyday.blogs.sapo.pt/52-semanas-de-2022-introducao-392169)

 

À boleia

João-Afonso Machado, 16.07.22

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Diziam de um tio meu, já velhinho, fizera a licenciatura em Coimbra com um lápis apenas, roído até ao uso de pinças. Poupadinho, poupadinho, poupadinho. Mas não consta viajasse ele senão de comboio... Como não era o caso deste seu sobrinho, sempre tentando no transporte umas migalhas para o gozo da brincadeira académica. Isso significava fatalmente a boleia.

O mesmo eram horas tortuosas de espera... Um carro agora, outro quando calhasse... Lembro perfeitamente a antevéspera dessa definitiva frequência, o adeus dos Pais tão confiantes e as cores da minha gravata fininha, a gravata oferecida para usar no grande dia - porque, era inquestionável, regressaria em triunfo e com o canudo.

Apanhei a carreira, sim, mas depois fiz-me à estrada. Atravessei a ponte D. Luís e, já em Gaia, poisei a trouxa e estiquei o dedo ao trânsito. Calhou-me a sorte de um Simca Aronde, bicho modernaço até no seu azul-bebé. Conduzido por um cavalheiro de poucas falas e pouca paciência nas rolhas de S. João da Madeira, Oliveira de Azemeis, Águeda... Aproveitando para rugir a sua cilindrada e boa cavalagem no que fossem as rectas empedradas do percurso. Uma viagem tranquila em carro de gente medianamente arrumada e, cá para mim, com filhos a estudar também.

Assim Coimbra chegou afinal. No meu bolso com mais algumas moedas precavendo a desbunda após o previsivel sucesso na minha frequência decisória. O que tudo me valeu depois a monumental reprimenda dos Pais, três dias volvidos, quando souberam pela Polícia do meu paradeiro.

 

O Porta-Enxerto

João-Afonso Machado, 14.07.22

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Nos fnais de 2016, quando ali passei, fiquei surpreso com o estabelecimento: na fachada do Mercado Municipal de Famalicão, ocupando o espaço tantas décadas de uma drogaria em que, uma vez ou outra, comprava qualquer coisinha... Entrei, inteirei-me do que se tratava, tomei um copinho de branco e desandei, não augurando generoso futuro àquela aventura.

O Porta-Enxerto definia-se com um wine-restaurant-bar, tinha o seu horário de almoços, a tarde à disposição para uma bebida e um aperitivo e, à noite, abria às sextas, sábados e vésperas de feriados, com bocadillos e tapas. Fora isto, só por encomenda...

Correu meia dúzia de anos e, contrariando essas minhas reservas, o Porta-Enxerto traduziu-se no maior êxito. Os almoços, constituidos basicamente por um prato único (embora haja escolha alternativa), são dotados de uma imaginação prodigiosa e todos os dias surpreendente. Neles apenas os fritos não constam do cardápio. E a refeição global inclui a sopa de legumes, a prova de azeite, a sempre variada salada (alface, agrião, rúcula, massas, frutos secos...) e o prato principal, com a sobremesa a rematar. Os vinhos - a copo ou a garrafa - relevam como contas àparte.

Porque esta é uma casa de míriades de marcas vinícolas e preciosas. Nacionais e, grosso modo, europeias até longe. O espaço é reduzido e povoado de uma música repousante que tanto ajuda ao propício silêncio para uma conversa calma e bem mastigada.

Na imensa oferta nocturna tenho vindo a preferir as tapas, nas suas profícuas combinações de alheira, tortillas e salmão fumado. Já ao almoço confio sempre na surpresa, como - por exemplo -  o estufado de novilho com frango, feijão verde e cenoura... Nesse dia regado com um branco Lagar de Pias, vinho simples, servido muito fresco e a condizer com o adequado equilíbrio orçamental.

Mais acrescento o louvor à "torta de laranja" caseira. E a simpatia do Sr. Hermenegildo Campos, o proprietário, um homem de vistas largas na gastronomia e na política - ou não fosse ele um convicto monárquico à espera (como eu) do amanhã de Portugal.

Fica na famalicense Rua Capitão Manuel Carvalho este restaurante que, com a sua esplanada, a ninguém passará despercebido.

 

Desafio 52 semanas - 28|Dizeres

João-Afonso Machado, 11.07.22

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Eis um desafio que não aceitarei de lingua afiada. Porque qualquer frase acerca de mim valeria alguma historieta de que me quero preservar. Para o bem e para o mal. Há, lá para trás, suficientes episódios narrados na primeira pessoa do singular e mais um dito, na solicitada medida, envolveria decerto aspectos pessoais exclusivos das minhas gloriosas memórias a escrever um dia.

Sou excelente, sou péssimo, sou assim-assim? Leiam e tirem as vossas conclusões.

E por isso - para não ficar no absoluto desertificado - reproduzirei apenas um comentário da Ana de Deus, algures num dos posts destas Fugas do meu tinteiro - escrevia ela, «tem coração».

Quero crer, não se referiria somente ao facto de eu não ter morrido...

E assim siga a rusga.

 

(Desafios da Abelha - https://rainyday.blogs.sapo.pt/52-semanas-de-2022-introducao-392169)

 

Brito (Guimarães)

João-Afonso Machado, 10.07.22

Viagem muito longa no tempo, quão curta no espaço. A uns poucos quilómetros somente dos meus quarteis e tendo como objectivo cirúrgico a pousada de primos, casa onde algumas pingas de sangue meu ainda não terão secado. Na freguesia de Brito do concelho de Guimarães.

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Trazia saudades e o absoluto desconhecimento de como chegar lá, proeza sem frutos mas já antes tentada. É a catadupa dos prédios, a elevada sinistralidade paisagística e mais desgraças conformes. Tornou-se necessário ser conduzido da estrada nacional ao meu destino - Pedra Furada - atrás da carripana que me esperava, sob um calor que não nos pertence e é-nos imposto por um mundo maior do que as regras mandam. Ainda assim -  gratias Deo - sem que a nossa província não pingue água

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nem deixe de a acumular, empoçada, guardada de verde e de rãs e peixes a chamarem as garças na época delas.

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E lá revi uma cadela da minha criação, de idade avançada tanto que não me reconheceu. Somente comentei, a propósito, com um primo,  - Já não tenho idade para perdigueirar, estou mais para jogar a bisca nos bancos públicos da terra...

É claro, ouvi uma resposta simpática, entusiasta e branqueadora. E simpáticamente, entusiasticamente, fomos para a mesa branqueada, outro lugar de eleição nos terraços minhotos.

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Aconteceu por então o fumo subiu além do monte em frente. Vi-o, chamei a atenção e lá tentei acalmar as hostes, o incêndio era longe, ali nada havia a recear.

À hora certa debandei e apanhei imagens como se trouxesse comigo uma rede de borboletas

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através de ribeirinhos a caminho do Ave, somando as pedras perdidas por razões que não são as minhas. Mas com a inabalável fé de onde houver granito e água corrente nunca a vida se deixará abafar e o futuro há de repescar esse abandono de nós mesmos.

Só faltava a derradeira passagem pela Ponte de Brito, já nos límitrofes da freguesia.

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Para recordar pescarias transparentes em lugares pródigos de escalos e barbos. Deu neles (no Ave) o arco-íris das tinturarias (vá lá saber-se porquê, embirro agora de todo o jeito e feitio com os arco-íris...), e desisti dessas andanças por ali quando oferecia do melhor isco a uns peixes moles, sem nervo nem apetite, de cores doentes, apostaria que sofrendo de hepatite. A vida é isto, é uma vida estragada por um planeta fumegante de gente em demasia. Não fora assim, não chegaria ao meu rincão com os bombeiros na estrada e as bouças vizinhas ardidas, o fogo já cavalgando as nossas...

 

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