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FUGAS DO MEU TINTEIRO

Imagens e palavras de um mundo onde há menos gente

FUGAS DO MEU TINTEIRO

Imagens e palavras de um mundo onde há menos gente

Não fossem essas boas almas...

João-Afonso Machado, 08.07.22

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A viagem é no assento ao lado. Os paineis em frente um instante do mundo da aeronáutica. As vistas no percurso, propriedade privada  dos olhares postos nelas. O mais é a máquina fotográfica e a lapiseira.

Bem haja quem se predispõe a manter o restante, oferecendo ainda o passeio. Cromados, motores, mecânicos, chaparia, manutenção e conservação, rigores de originalidade, tudo significará um grave atentado à liberdade quotidiana. Uma cansativa atenção sobre  idosos de jantes raiadas e carburadores caprichosos, suspensões duvidosas. E, no entanto, sem esses sacrificados que seria dos que necessitam rumar os trilhos do Passado a renascer a História, viver tais sensações para as poder descrever? Será quase uma escravidão, maior ainda do que o imenso favor que prestam à memória esquecida das antigas estradas e de uma juventude que foi eufórica e hoje é somente enrugada, ou já uma ossada depositada por aí.

 

Desafio da Abelha|A preto e branco

João-Afonso Machado, 06.07.22

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Isto contava o velhinho nas suas espreguiçadas tardes à mesa da leitaria. De olhar sonhando através da vidraça as cores mirabolantes que não guardara.

Vestia sempre o mesmo enlutado fato tão em contraste com as barbas de neve e a voz viva e aflita a embrulhar-se em histórias ressessas de jornais extintos. Fora tipógrafo na sua vida activa e ainda agora trazia nas mãos o cheiro antigo dos linótipos e das tintas. E obsessivamente referia a extraordinária poesia e o irreconhecível vulto que, quase todas as semanas, a entregava no jornal para ser publicada.

Um véu encobria-lhe a cabeça e distorcia a voz assoprada, deixando apenas a certeza de que homem não era, mesmo porque não o consentiam tão frágeis e sensiveis estrofes.

Apaixonei-me! - exaltava-se o inconformado, e de súbito genioso, velhinho. E assim não resistiu a seguir a misteriosa personagem, por trilhos tão esquecidos que nunca soube como regressara após.

Mas ficou-lhe para a vida a figura estranhamente acomodada na cadeira do jardim. E o multicolorido das aves e das flores em volta dessa gata em corpo de gente, a cabeleira vasta e solta, atrevidamente vestida, esguia e ágil, sorridente. A dar-lhe a mansa ordem - Vai! Não me perturbes a leitura. Tu não és do meu tempo, nunca entenderias...

E ele foi. Não mais o seu jornaleco recebeu aquela poesia sussurrante. E o velhinho, carregado de remorsos, ainda hoje com o seu lápis roído pelo desespero desenha e volta a desenhar a visão dessa tarde, cujas cores em vão há décadas tenta reproduzir.

 

(Desafio da Abelha - https://anadedeus.blogs.sapo.pt/os-desafios-da-abelha-conta-a-historia-43050)

 

Desafio 52 semanas - 27|Escrevendo

João-Afonso Machado, 04.07.22

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Tudo acontece diariamente posto não haja relógios inoportunos ou uma nota qualquer na agenda. Com tais constrangimentos só sai escrita profissional, letras habituadas à rigidez dos prazos.

À margem desses dolorosos acontecimentos, escrever é, à partida, o ritual da escolha da caneta apropriada a que se dá corda e o papel do pequeno bloco de bolso. Depois é a busca das palavras adequadas e o seu acasalamento. Quantas vezes ressuscitando memórias... Quantas mais tentando o desenho literário de um qualquer pedacinho de vida ou de cor no planeta... E, sobretudo, a expressão ideal dos sentimentos, circulando com a caneta à margem da escrita confessional, que não se anda aqui a publicitar gostos ou desgostos próprios.

Escrevendo progride-se. Deixam-se subtis recados a quaisquer corações femininos ocasionalmente pulando no mesmo ritmo do que alimenta o dono da lapiseira. Mas tal não é bastante, sobressai essa evolução na perícia dos termos, sempre afinando a frase absolutamente bem composta sem jamais a atingir.

O envolvimento em estas ambições, compreenderão, conduz a que escrever seja viver, seja a inapagável sensação da demanda da perfeição, a existencial curiosidade de antevermos quão possível é aproximarmo-nos dela.

 

(Desafios da Abelha - https://rainyday.blogs.sapo.pt/52-semanas-de-2022-introducao-392169)

 

O fogo tripeiro e joanino

João-Afonso Machado, 01.07.22

Já lá vão os Santos Populares na pedalada de um dos mais velozes meses do calendário, este Junho de sardinhas e manjericos. E especialista em morteiros, um oficial superior de artilharia. Numa certa jantarada à beira-rio no Porto, absolutamente temerária, os obuses não se calaram durante uma meia-noite quase eterna.

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Ninguém sabe como o cordeiro se mantém quieto nos braços de S. João. A cidade em polvorosa, parecendo uma embalagem de gente a rebentar pelas costuras e, um nada à margem, minhotos, transmontanos e durienses atónitos e sorrateiros apreciavam o cagarim dos tripeiros. Santo Deus!

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Águas tintas, assombradas decerto pelo fantasma do desastre da ponte das barcas. No lugar dela, a de D. Luís, onde a guerra se incendiou. E na Arrábida o trânsito parara, indiferente às pressas de quem fosse, e gozava de cotovelos na amurada os efeitos todos do foguetório. Na margem de Gaia a mesma eufórica paralisia.

Assim não se ouviram os canhões, somente o colorido das detonações apontadas à escuridão. Os da Afurada encheram os depósitos dos motores dos seus barquitos e subiram e desceram o rio em fila indiana, sem perder pitada desta beligerância.

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Um delírio circense de palmas sucedeu ao tremor sísmico da girândola final. Os minhotos, transmontanos e durienses tinham antevisto o apocalipse... Talvez agora conseguissem regressar ao vagar dos seus lares.

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E depois do canhoneio, os meios aéreos. as muitas dezenas de balões levados pela chama, como um paraquedas que sobe em vez de cair. Consta ser este armamento proibido por qualquer convenção. Mas é S. João e não há legislador que tenha mão nos tripeiros então. Como os minhotos, transmontanos e durienses bem constataram.

 

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