«... E eu considero a Costa Nova um dos mais deliciosos pontos do globo. É verdade que estávamos lá em grande alegria e no excelente Palheiro de José Estêvão» - eis como Eça de Queiroz relatava em carta a um seu amigo (quem?) andanças pelas bandas de Aveiro em Junho de 1893. Quando a Costa Nova, da freguesia da Gafanha da Nazaré, Ilhavo, seria quase só uma lingua de areia a deitar fora entre a ria e o mar, e os palheiros começavam a não ser apenas armazéns de embarcações e artefactos de pesca. Em madeira pintada com restos de óleos e tintas que lhes davam o seu tom original, negro e acastanhado.
José Estêvão Coelho de Magalhães, liberal convicto e um dos desembarcados no Mindelo, depois orador parlamentar fulminante, natural de Aveiro, era um desses proprietários e o seu filho, o Conselheiro Luís de Magalhães, já longe de tais lides, decerto rapidamente destinou o palheiro a residência de veraneio. Onde recebeu muitos dos das suas relações, conforme os seus descendentes ainda hoje praticam com os descendentes dos de então, que é o meu caso. Por lá passo todos os Agostos, por lá familiarmente sou acolhido para uns dias de passeio, de cavaqueira e de jantaradas. E de reencontro com esses senhores regrados pela honestidade e sentido de humor e por saberem ler e escrever. Estão todos no Palheiro mesmo agora, o grande José Maria sempre sofredor do bacalhau de cebolada, aflitíssimo à noite, ruidoso até, entupindo o acesso à casa de banho...
Mas a Costa Nova cresceu, virou lugar habitável e de férias, encheu-se de um zebrado multicolor que se transformou no seu ex-libris. Alegre, garrido, cercado de turismo. Ainda o outro dia, pessoa interessada me pediu um fornecimento de imagens desse casario e não houve senão como chamar o velho Figueira, o meu almocreve (se o intitulo recoveiro ele enfurece-se...) - Ó Figueira, mete a albarda ao burro e leva esta encomenda a tal parte, se fazes o favor. - E ia-lhe passando as imagens - Olha, leva esta
e esta também,
já agora...
e assim como assim,
...vai também outra, ainda que desafinada, mas pode ser que sirva para conserto...
Enfim, acabei enchendo-lhe o saco todo. O Figueira mirou-o, mirou o dorso da alimária e disse coisas entre o imperceptível e o irrepetível, - Vai lá, Figueira, deixa-te de resmunguices que a viagem é longa, tens para uma semana, não menos. (O velho Figueira foi e sei que chegará ao seu destino, homem diligente e de confiança é ele, são muitas décadas de bons serviços.) Feito isto, encaminhei-me para a praia, a espreitar os cargueiros que passam a barra
transportando sonhos, planos, outros mundos a que dali um dia chegarei a bordo. Membro da tripulação, cortando os ventos frios a goles de aguardente, esfregando talvez o convés, mas sempre com tempo para sorver o espaço sem fim à proa, mesmo na pontinha.
Enquanto não, atravesso a língua e, na ria, colho o silêncio das águas, os derradeiros moliceiros já só passeios estivais, motorizados, pagos à hora.
Mas mesmo aí de espírito firme no encalhado, junto à marina,
esse moliceiro que um dia há de voltar a carregar moliço, o cheiro do moliço e a prata dos peixitos apanhados nele, o rabiar das enguias ante o monóculo arguto do venerando Eça - Menino!!! - sôfrego de caldeirada e revivendo os caminhos por que trouxe Jacinto Galeão aos lugares sãos.