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FUGAS DO MEU TINTEIRO

Imagens e palavras de um mundo onde há menos gente

FUGAS DO MEU TINTEIRO

Imagens e palavras de um mundo onde há menos gente

Os avieiros

João-Afonso Machado, 10.08.22

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Calhou folhear no alfarrabista uma velha edição (1945) dos Avieiros de Alves Redol. Livro baratucho com uma assinatura ilegível salvo no último nome - "Gonçalves" - e umas tantas páginas por descerrar, não obstante os rombos na lombada. Trouxe-o comigo para umas horas de navegação nas misérias do Tejo.

O Toino das Valas, algures para cima de Vila Franca de Xira, as suas forças nos remos, a sua Mulher ("companheira", insiste Redol, premonitório), a sua filha Maria - a Maria das Valas - gatinhando à proa por marés que desconheço e me conduziriam aos mistérios das margem de lá.

E as páginas carregadas de avieiros, "camaradas" (outra vez Redol...) da fome, a enriquecerem-se de tábuas, madeiros, encontradas para a realidade do barracão familiar. Sonhos enormes de tão pouco ambiciosos. Numa volta que me apanhou de surpresa dei comigo num saveiro cissiando as águas em lugar incerto à Póvoa de Santa Iria.

Só não era o eldorado da margem oposta e talvez houvesse de apostar a montante. Mas não difeririam as tarjas lodosas das águas por crescer em que "Gonçalves" não quis enlamear os pés. Nem as chapas metálicas, o desarrumo, o espaço exíguo onde se amontoam descendentes do Ti Lobo que até Santarém não calava as fúrias do mar da sua Vieira de Leiria, definitivamente arredada dos seus dias.

É, a vida dos avieiros seria assim, quase sempre dormitando sob o toldo dos saveiros e de navalha pronta para qualquer sabotador dessa preciosidade maior que eram as suas redes de pesca.

Mas "Gonçalves" não chegou a ler a história toda; o Toino das Valas ainda perderia o seu pequenito João, consumido pelas sezões; e a Póvoa de Santa Iria fará a mercê de manter como um museu essas embarcações de antanho na margem do Tejo, onde estiquei a vista em demandas além.

E Alves Redol, consolado, irá vendo as suas teses demonstradas - a vida é uma luta e dá imenso trabalho.

 

Desafio 52 semanas - 32|O silêncio

João-Afonso Machado, 08.08.22

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A grande sabedoria reside na ausência de palavras. (Ando mesmo em reflexão sobre se não residirá também na ausência de palavras, se bem que escritas, não publicadas.)

Não sou muito de cadernos de significados ou colecções de aforismos. O tal vazio de palavras foi um sábio conselho do meu Pai, dado com o maior carinho num complicado momento da minha vida - de guerra autêntica e permanente bombardeio verbal.

Custou extraordinariamente - doeu! - o primeiro tiro que levei e (em obediência à sageza do Pai) não repliquei. Já o segundo magoou menos. E no terceiro o calo feito protegia. Os restantes perderam-se todos na corrente de ar e eu ganhara estrondosamente a batalha do sossego. Não mais esqueci essa vitória, nunca depois deixei passassem as fronteiras da minha tranquilidade. Do meu reino...

 

(Desafios da Abelha - https://rainyday.blogs.sapo.pt/52-semanas-de-2022-introducao-392169)

 

Azurara

João-Afonso Machado, 07.08.22

Uma terra antiga de mareantes com créditos firmados na História dos Descobrimentos, sede de um pequeno concelho extinto no século XIX. Com muita riqueza agrícola em redor. Vamos então, primeiramente, a esses abastados produtores de milho. À Casa Fontes.

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Era assim neste ubérrimo Baixo Minho. Os lavradores poderosos davam o seu próprio nome às moradas afidalgadas que iam construindo e casavam os filhos com as raparigas dos proprietários vizinhos, o modo de não fragmentarem a nascente do seu ganha-pão. A Casa Fontes tem na padieira uma data gravada - 1725; e o seu arranjo não levanta críticas, salvo no que se refere ao portal, capaz de erguer dos seus túmulos todos os antigos Fontes -  todos, sem excepção, de 1725 para cá - na compreensivel ira de verem a boa e magnífica madeira de antanho trocada por tão destituida composição em liga metálica. Ainda por cima, nas costas da Matriz manuelina, uma das peças que mais se destaca na galeria das preciosidades da Azurara.

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A igreja de Santa Maria e o cruzeiro e o pelourinho que a cercam. De olhos postos no inferno motorizado que é a EN13, e a povoação como que escondida atrás, no recato da Rua Américo Silva, a sua espinha dorsal.

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Uma artéria falante, boa contadora de aventuras. Com um comércio simpático, aqui e ali, só para amigos e vizinhos; e com a seiscentista Casa da Praça, decerto ouro das caravelas e das naus que veio vindo até ao edifício magnífico de um terratenente que acabaria juiz... em Loulé; e também ainda lá está a Misericórdia, o seu velho Hospital de S. João, a renovada residência paroquial...

Agora, porém, torna-se necessário arriscar um pouco a vida na travessia da EN13. Mas a Azurara - campestre e ribeirinha - prolonga-se no outro lado, desde logo no seu mosteiro, adquirido por um particular depois das fúrias espoliadoras do Mata-Frades.

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Gerações volvidas, o mosteiro e os seus anexos pertenciam a gente amiga, davamo-nos muito e nele veraneava o mais bonito par de olhos verdes que alguma vez conheci. Fartamente o cobicei, sem exito algum e há anos não o vejo; sei-o casado, longe e já com muitos parzinhos de olhos verdes na descendência: não se pode ter tudo...

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Os estaleiros atravessaram o Ave e, também eles, vieram perturbar o sossego da Azurara e as saudosas baixas-marés, cheias de lodo, aves pernaltas, caça, pesca e a sempre saudável ausência de multidões. Ainda assim a praia é muito aceitável desde a foz do rio quase até ao Mindelo,

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sem barracas e um mar de surfistas esperando pacientemente a boa onda. Mais lá para Setembro, com cães a darem o seu mergulho com os donos e as saudades todas da meninice do meu mais velho, rapazito das pranchas durante algum tempo...

 

O Tempo

João-Afonso Machado, 06.08.22

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A capital do meu distrito não é uma cidade fácil, troca-nos as voltas de um mundo antigo rodeado de monstros implacáveis e actuais. Enfim, os turistas - que são aos magotes agora - gostam, passeiam e, verdade se diga, alcançar o restaurante Tempo não será milagre de S. Frei Bartolomeu dos Mártires. Na via para a Falperra, a páginas tantas, a Quinta da Capela, onde outrora funcionou outra casa de repastos assim chamada... É lá!

E foi o meu baptismo no Tempo. Uma entrada agradável, sombreada por um toldo debaixo do qual vai fabricando umas folhitas uma oliveira posta em vaso de madeira; e um interior fresco e aconchegante, com cadeiras muito confortáveis nesse espaço amplo e não repleto. Integrava um grupo de amigos com mesa reservada num canto e o serviço foi apenas um pouco demorado.

Valeu a pena, todavia. E escolha fora antecipadamente feita e a comunidade saciou-se com um misto de carnes grelhadas guarnecido com umas batatas fritas comme il faut (palitos secos, fininhos) e arroz de feijão a ajudar. Melhor explicitando, uma generosa variedade de carnes, não faltando sequer o salsichão, tudo de excelente qualidade e preparação (ou confecção, com esta tropa agora diz). Já na questão da sua rega, definindo-se as hostes do tinto e do branco, alinhei por esta visto o duriense Diálogo ser da Niepoort e isso me bastar. E o vinho revelou-se, realmente, muito equilibrado e aromático, sempre disponível para vir à mesa. Braga ardia penosamente sob o brasume da última vaga de sol e tornou-se necessário pedir ao bombeiro de serviço água, muita água, ainda mais água.

E sim, o funcionário era deveras atencioso e as suas colegas duas minhotas como é um regalo olhá-las, bonitas e bem postas e dispostas.

Tudo findou com duas opções de sobremesa vindas ao bródio - uma tábua de fruta já cortada (kiwi, laranja e abacaxi) e pão-de-ló mole. Não consegui evitar cair na tentação e fui vítima (reincidente) desta última bomba calórica.

O almoço, bem conversado e animado, acabou tarde e ainda nos esperavam umas voltas por Braga, agora já não tão escaldante. Partimos com a consciência de que podemos voltar.

 

Santa María de Oia (Pontevedra)

João-Afonso Machado, 03.08.22

Ali junto ao mar, num recanto chamado Arrabal, a história quase milenar do mosteiro de Santa María de Oia construída no correr do tempo e da vida tão proficiente dos frades cistercienses. Possivelmente das suas ligações à lide marítima, seguramente da sua habilidade agrícola.

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O templo, de fachada barroca, está em obras efectuadas a bom ritmo e ainda hoje é a cabeça da parroquia. O propriamente dito mosteiro, o edifício que dava guarida aos frades, desde há muito propriedade do Estado, bem precisa delas também, mas o vagar dos responsáveis é manifesto. Assim a visita se restringiu, bem ciceroneada, aos claustros e a umas hortas.

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Claro que a arquitectura foi evoluindo, quase deixando esquecer o longínquo século XII em que tudo começou. O gótico impôs-se, o Renascimento não ficou à margem deste pontinha na Galiza e vale a pena circuitar esses espaços de recreio ou de meditação dos religiosos

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e uma certa confusão de pedras e vegetação que mais puxam à tranquilidade de um mundo adormecido em bom silêncio.

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Já no exterior, não é difícil percepcionar o que outrora constituiu as celas fradescas, sob nova perspectiva da torre sineira, imponente.

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O mesmo se diga dos derradeiros vestígios da vida campesina do mosteiro, pachorrentamente gozando o solzinho entre os visitantes

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ou regalando-se em sombras frescas e alaranjadas, sempre nesse desalinho que não repele, somente desperta saudades.

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Já em tais manifestações arquitectónicas oitocentistas, está a visita a chegar ao fim. Com oportunidade ainda para um relance de olhos sobre alguns documentos ali encontrados, porque o mosteiro, durante a guerra civil espanhola, também serviu de prisão das forças republicanas. (A cicerone foi parca em comentários ao Caudillo. Achei bem, a nação nossa vizinha bastante lhe deve, apesar de todo o ruído à sua volta.)

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Assim, pois, regressei, com alguma noção de a quem pertenceria a cabeça e o capacete boche desenhados numa folha exposta em vitrine. Cá fora, era agora a vez do mar.

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Estendendo-se até à primeira curva do planeta, lá longe, rochoso como o mosteiro, e quieto, sempre quieto, sem nos esclarecer se daria peixe e adubo de algas, ou até alguma incómoda visita de piratas gananciosos e matadores.

 

Desafio 52 semanas - 31|Os aviões

João-Afonso Machado, 01.08.22

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O mal propagou-se e o lusitano quintal nosso, cá no fundo europeu, levou com a avalanche em cheio. As viagens de avião! E os voos cibernéticos para as conseguir!

De um grande amigo, piloto de profissão, ouvi o que tenho por dogma de fé: as companhias aéreas ajustaram-se à carência de procura durante dois anos de covid. Contabilizaram custos, fizeram contas, reduziram pessoal, trataram delas. E não pensaram no Verão de 2022.

Nem vou discutir o tema, nem vou dar para tal peditório. A República manda-me pagar impostos e, assim, eu mando a República à merda. Com todo o direito e a correlativa obrigação cívica.

Somente não posso - eu apenas - destruir a República. E, neste impasse, ficou de fora o meu passeio a lugares frescos, os que me convém para fugir às multidões esfomeadas de sol. Onde ninguém chateio e - sobretudo - ninguém me chateia.

Tive de improvisar. Tive de adiar e tirar o carro da garagem. As coisas vão correr bem, o mundo não foge da gente, a gente é que, entre o mundo e nós, bate com os projectos e os trajectos nos muros da República.

Tanto e tantas vezes que já vamos aprendendo a lidar com essa salafrária.

 

(Desafios da Abelha - https://rainyday.blogs.sapo.pt/52-semanas-de-2022-introducao-392169)

 

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