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FUGAS DO MEU TINTEIRO

Imagens e palavras de um mundo onde há menos gente

FUGAS DO MEU TINTEIRO

Imagens e palavras de um mundo onde há menos gente

Desafio Arte e inspiração|A Zefa

João-Afonso Machado, 28.09.22

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Afinal somos mais do que Lisboa e arredores e o fatalismo, e mesmo um certo deboche, existem por aí disseminados como as trotinetas - em qualquer vilóriazita.

Ainda assim, com algum recato, não vá alguém localizar no mapa a devassidão da Zefa, essa voz e esse corpo tão conhecidas pelos de léguas e léguas em redor do seu tugúrio.

É dificil descrever a Zefa - mulher que despreza o desodorizante e não se perfuma, bastando-se com os seus cheiros de fémea para atrair os machos que surgem e ressurgem.

A Zefa não suporta apertos nas carnes. Uma saia e uma blusa largas, a negra cabeleira solta, tantas vezes ainda embebida em memórias de refogados recentes... E a malga de carrascão que a acompanha o dia todo, um hálito que é quase um copo oferecido em cada beijo que lhe furtam os fregueses no correr das horas.

Para quê esmiuçar mais essa vida, a da Zefa, que já todos adivinharam como é vivida? Deixemos quietos os seus devaneios, amores fugacíssimos, não faltará quem ajuize da imoralidade da sua postura.

Lembremos apenas a força da sua personalidade e da sua voz, a desbragada independência de ambas. A taverna é o seu palco, as guitarras as armas que os frequentadores esgrimem e o varapau a um canto o polícia com que a Zefa impõe a ordem à clientela tocadora.

Um dia chegou, os seus dotes buliram o coração do Joaquim, moço de passagem na terra bem calhado no dedilhar das cordas instumentais. Com a Zefa partilhou a cama essa noite e a outra e a outra... Sentiu crescerem em si todos os sintomas da paixão, e se a noção do passado se lhe atravessou à frente, nem por isso o futuro deixaria de ser o casamento. 

Gostosa de tanta atenção e importância mas livre até ao fim, a Zefa que conhecia os versos de Augusto Gil, improvisou em fado a sua resposta às preces do Joaquim - «Tomámos um compromisso/Jurámos casar os dois/Muito bem.Vamos a isso/Primeiro tu. Eu depois.»....

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(https://porqueeuposso.blogs.sapo.pt/e-esta-semana-o-quadro-escolhido-e-559099)

 

Vizela

João-Afonso Machado, 27.09.22

O ambiente nunca foi harmonioso. Mas em 1982 o motim eclodiu: a população toda na rua, os sinos tocando a rebate, o caminho-de-ferro de carris levantados... Vizela queria ser concelho, reclamava meia dúzia de freguesias para o constituir, e pela noite fora os archotes acesos incendiaram impropérios contra o imperialismo de Guimarães.

Simpatizante da facção vimaranense (que a minha gente é muito de lá), durante anos não tornei a Vizela. Mas a idade tudo esquece e o tempo tem gestos benfazejos como, por exemplo, produzir ruínas e castigar famigerados texteis.

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Ainda agora percebe-se estamos numa fase de grande indecisão. E de perplexidade: restarão vestígios de uma eventual visigótica ou henriquina indústria?

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Vizela, alcançada a alforria concelhia em 1998, por ora não tem resposta. Prepara o seu Museu da Indústria Textil (do qual passo ao lado), mas resguarda o centro (a antiga vila) de toda essa confusão produtiva e laboral e, claro, aposta na sua riqueza termal.

(Propositadamente para lá parti sem sequer um livro na mochila. Demandei a livraria, o ensaio sobre Camilo Castelo Branco em Vizela,

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algo que me levasse adiante dos Gracejos que matam das Novelas do Minho - debalde, porém. O gosto da leitura rareia nestas caldas e eu não encontrei melhor, para me entreter à noite, do que um romancezeco do Mário Zambuzal.

Como quer que seja, a Vizela antiga defende-se bem. Banha-a o rio com o seu nome,

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dá-lhe sombra o frondoso Parque das Termas, lugar de amores e enredos camilianos.

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De muitas árvores e lagos,

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de muitos silêncios e amigáveis seres,

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com o curso fluvial sempre a ladeá-lo.

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A cidade não é monumental mas as suas praças são aprazíveis lugares sem berraria. Ficam ainda indeléveis marcos da riqueza de outrora

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e de um comércio como já não há.

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Além disso, ainda que os edifícios vão caindo aos pedaços, sempre sobraçarão a bandeira do novo concelho, pregada nas frontarias. É assim por toda a Vizela

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que exibe também saborosas febras do humor minhoto.

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Os hoteis, irmãos amicíssimos das termas, juntam-se na rua principal (recordo a quietude da parança), não longe do parque. Tudo vai sendo recuperado mantendo traços simpáticos da arquitectura dos primórdios.

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Os dias passeiam-se tranquilos como as tartarugas e os cágados nos penedos do rio.

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A jusante das termas vamos descobrir (com imensa pompa indicativa) a ponte romana. Ou não será românica?

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Estou em crer que os letreiros enganam: a edificação actual é já uma reconstrução medieva. A Ponte Velha, assim é mais justamente nomeado este monumento nacional. Desta Vizela tão recente e tão antiga em História a que poucos parecem atender.

 

Desafio 52 semanas - 39|"Paint it, Black"

João-Afonso Machado, 26.09.22

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A roda girou e ditou a sorte: qual as de Molière, ouvi as fortes batidas de Charlie Watts na bateria. Paint it, Black, os Rolling Stones. Aftermath, 1966. Ainda por cá andava Brian Jones e eu já levo dois desaparecidos na conta... Mas a sua guitarra, a sua presença sente-se nesta melodia nem por isso animada, pese embora a irrequietude da voz de Mick Jagger. Possuo a discografia completa dos Stones (mesmo as suas recentes inconcebíveis preversões) e Aftermath e Paint it, Black estão no melhor caminho já tão antigo em que a banda sempre oscilou entre a euforia e a tristeza de Under my Tumb (para não ir além do dito LP).

Foi uma época, é uma saudade sempre revivida. Não serviria para dançar mas também... toda a minha dança se expande dentro da minha cabeça só. E às vezes arrepia, suscita sempre sonhos. Há umas décadas Paint it, Black podia ser o primeiro beijinho tirado à sorrelfa a uma pequena qualquer. Hoje é memória em carne, comigo (só comigo) convivente. Quem se me sentaria ao lado retrocedendo aos Stones? E onde? No chão da sala?

Tudo me ocorre, trago a música atrás e a mioleira parece querer recuar também, já calçou as Lewis, abana invisivel o capacete. Há um crescer de entusiasmo, as portas da sala avermelham-se mas Mick Jagger termina entretanto, exclamando pintá-las de preto...

 

(Desafios da Abelha - https://rainyday.blogs.sapo.pt/52-semanas-de-2022-introducao-392169)

 

No rio Vizela aos barbos (com batata frita)

João-Afonso Machado, 23.09.22

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É uma prática habitual, chegando a águas fluviais desconhecidas, uma mirada (- Boas tardes, então isso sai?... -) nos pescadores locais e deles a colheita dos apontamentos próprios sobre as especificidades do rio,  só para não ter de inventar.

Em Vizela, por exemplo, os barbos - e há-os grandalhões! - gostam de batata frita. Claro, não da batata frita de pacote. Antes da batata frita em palitos, aquela que usualmente acompanha o bife e o ovo respectivo a cavalo.

Confrontado com tal realidade, saudoso de pescarias e dos barbos, urgia recorrer à cozinha do hotel e humildemente esmolar um punhadinho de batatas fritas. Logo o atenciosíssimo pessoal de serviço (um deles andara no alto mar à pesca) prometeu para o dia seguinte frescas, cheirosas e... crocantes batatas fritas, para melhor se segurarem no anzol.

Assim foi e, pelo meio da tarde seguinte, não sem uma pontinha de emoção e as batatinhas num saco (acomodadas em guardanapo de papel), a cana telescópica truteira (4 metros) tornou à luz do dia, atrelou o Mitchell - o  rei dos carretos, uma maravilha, - uma boiazita pequena e um anzol mínimo e lançou-se nas águas corredouras do Vizela. Com uma lasquinha de batata frita no pico afiado onde o peixe se perde quando abre a boca.

O curso aquático estreitava entre duas pedras grandes, o caudal acelerava e precipitava-se, a profundidade era pouca. Mas, afiançavam os nativos, os barbos andavam ali.

Uma insistente ruptura dos ligamentos no pé direito ajudou muito pouco. O trambolhão na margem esteve iminente, não fora o tronco de árvore e o braço esquerdo agarrado a ele com desespero. Sucederam-se os lançamentos, a boia em rafting alucinante nos rápidos ribeirinhos, sossegando depois, já na zona onde o peixe era espectável. E quando ela afundou, parecia um torpedo, nada a enganar: o esticão, o nylon tenso, o peixe a rabiar já preso ao anzol escondido na batata frita. Era uma boga de dimensões consideráveis.

O mal estava todo no pé cansado e já dorido. A perturbar a pontaria nos lançamentos e o vaivém à saquinha das batatas fritas quando o peixe, mais lesto, roubava o isco sem se ferrar. Ainda assim não demorou outra boga, esta mais pequenota.

Por fim, o pedaço feliz da abençoada batata frita. Bem cravada no anzol e a linha no sítio ideal do troço de rio, já o sol fugia a escurecer as águas. O toque na boia foi firme. O esticão também. Havia força do lado de lá, num instante a cana dobrou a ponteira e o peixe circuitou contra a corrente procurando refúgio na margem. Trabalhou a manivela do Mitchell e o bicho veio a riba. Era um benquisto barbo, ainda jovenzito.

Retrato tirado, foi devolvido à vida. O pé direito doía que se fartava. Assim sendo... ficou o registo e o desejo enorme da próxima Primavera.

 

Desafio Arte e inspiração|Uma Mãe

João-Afonso Machado, 21.09.22

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Ser mãe é dar o peito. Dar a vida que escorre de si. E ser avó também. Ser mulher completa, enfim. Com a descendência em seu redor.

Isto me disseram tantas idosas, por aldeias mil que percorri. Num tal equilíbrio  de que saí convencido. Muito antes e além da arte pictórica e de um modo que já não volta atrás.

Foi quando esbarrei nas feições de Mary Cassat posta nos antípodas dessa crença.

Nada tinha a ver com a minha Mãe. A minha jovem mãe oscilante era mentira e não tratava das unhas quando os filhos se encostavam ao seu colo. Felizmente, a minha Mãe, ainda jovem, separava as águas e a sua prole, que foi muita, tinha o momento maior, as unhas da Mãe o remanescente. A Mãe jamais oscilou.

O expressionismo é a expressão dos sentimentos. Daqui à Moral é um passada miníma. E eu não diatribo sobre moralidade. Resta-me a manifestação de um quadro tão bonito quão triste, que felizmente não vivi. Mary Cassatt, onde estiver, saberá da sua vida. Ocupo-me mais reflectindo a vida da Mãe. Dela resultou um bonito retrato posto em destaque na nossa sala; e o seu ombro, o seu ombro querido no qual adormeci tantos serões antes de ir para a cama - esse ombro era só nosso, então, não da costura ou de outros afazeres.

Nem mesmo o palco de olhares no vácuo...

Tudo dito, Mary Cassatt, a Jovem Mãe Oscilante,  é dotada da arte da pintura. Mas será, sobretudo, uma curiosa referência psicanalítica. E isso resulta dela própria, do seu quadro guardado na História.

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(https://porqueeuposso.blogs.sapo.pt/o-quadro-desta-semana-e-558018)

 

Desafio 52 semanas - 38|A verdadeira trilogia

João-Afonso Machado, 19.09.22

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Algo correu mal, sem dúvida alguma, foi aselhice minha. O completo fracasso comunicativo! Eu só queria para os meus filhos a liberdade, a independência e a coerência. O mais pertence ao domínio da Moral, que me parece prudente seja nas suas relações com os outros que vão descobrindo. Mas as bases da personalidade - estruturada ou vilã - fundam-se totalmente nessa sagrada trilogia - liberdade, independência, coerência.

E a minha aflição - ele há salpicos de sangue fatais... - era já a desoriginal mania da originalidade, a pacóvia vontade de ser diferente, isto é copiar os tais "diferentes", - ditos "alternativos" - essa escravidão.

Essa perda de liberdade, essa incoerência de vida feita de uma monumental tolice de pretensas bizarrias. Quando basta sermos nós próprios para sermos diferentes.

Como referi, não fui ouvido. E assim o diário de bordo de cada um narrará o restante...

 

(Desafios da Abelha - https://rainyday.blogs.sapo.pt/52-semanas-de-2022-introducao-392169)

 

Nova edição do "Casas Nobres Famalicenses"

João-Afonso Machado, 17.09.22

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Em boa verdade, é já a 3ª edição. Mas foi a primeira, confiada ao meu editor, de escassa tiragem porque limitada apenas a uma lista de subscritores. Depois a Câmara Municipal de V. N. de Famalicão interessou-se pelo livro, cujos textos são da minha autoria e a ilustração do Amigo e conterrâneo David Vieira de Castro, e cedemos-lhe os nossos direitos. Esgotados todos os exemplares nessa outra edição, eis que uma nova saiu do prelo e está aí.

Para quem não se lembra, foi um interessante trabalho de campo e de pesquisa documental, do qual resultou a inventariação de 42 casas solarengas espalhadas pelo Concelho e em melhor ou pior estado, ainda vividas ou já caindo no esquecimento, não fora este apontamento histórico.

As Casas Nobres Famalicenses (ou o que delas restam) podem ser encontradas na livraria municipal, ao Parque da Devesa, ou através de contacto com os autores. Pela parte que me toca, via Facebook, telefone (quem o tiver) ou do endereço electrónico machado.ja@sapo.pt.

 

Impressões de um termalista

João-Afonso Machado, 15.09.22

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O átrio, os corredores, os balneários, tudo são lages pétreas regredindo às sandálias romanas. O termalista, ainda um pouco confuso, despeja os seus pertences num cacifo, enfia o calção de banho e o roupão, as xanatas compradas nos chineses, e inquire pela sala das lamas. Um termalista experiente saberá que não vai ser besuntado de cima a baixo, como um aborígene qualquer.

A sala das lamas tem toda a aparência de uma enfermaria superlotada. O termalista recebe ordens para aguardar, enquanto um avantajado funcionário espanca com violência duas almofadas fumegantes sobre as quais o termalista deitará a sua timidez. São elas o invólucro das lamas ferventes, o roupão do termalista serve-lhe de almofada, e mãos - vá lá... - femininas atapetam-lhe o corpo com mantas hibernais e lençois atados à altura do peito e dos braços, não seja o caso de o termalista intentar fugir.

É-lhe apontado o relógio, adorno único da granítica parede, e o processo transmitido em escassas palavras - Vinte minutos!

Tanto durará a mumificação do termalista. Como os seus congéneres cozendo em cima de lamas certamente vulcânicas.

O termalista tem então oportunidade de verificar que nem as lavas do inferno, aquela fornalha em que se derrete, bastam para calar as termalistas minhotas. Pormenorizando muito as suas maleitas terrenas, costas adiante até ao pernil, percebe-se que são termalistas veteranas, já sofrendo com toda a naturalidade a sua mumificação.

Enfim, vencidos os programados vinte minutos (e umas tantas inconfidências das termalistas minhotas), as múmias desparalisam, desenfaixam-se e partem para o capítulo seguinte.

Qual seja, o da piscina. Uma colecção imaginativa de jactos de água e repuxos, um calorzinho amazónico lá dentro. O termalista ensaia umas braçadas mas não tem muito onde se expandir. Devido até ao risco de colidir com alguma termalista bem defendida por inabaláveis pára-choques. Brinca ainda um pouco nas pocinhas, o termalista, mas já não vai ao jacuzzi. Segue directo para a etapa final, a massagem.

A etapa-rainha! Logo à chegada o termalista quase esbarra numa massagista trajando fato de banho negro com um aventalzinho branco sobre ele. E um devasso pensamento das humidades de Banguecoque perpassa-lhe o espírito. A massagista manda-o estender de barriga para baixo num estrado onde pingam várias goteiras de água quente. O gabinete é mínimo, muito íntimo, e a massagista começa amaciando com unguentos os pés do termalista. Depois vai por ali a riba.

A certa altura o termalista está de rabo quase ao léu e impedido de se voltar. O que irá suceder? A massagista, afinal com pés de cabra, atacá-lo-á com uma seringa? A expectativa é grande...

Nada de especial acontece, porém. A massagista prossegue o seu percurso ao longo das costas do termalista, sempre a esfregá-lo em óleos e empenhando-se a torcer-lhe com força os ombros e o pescoço. O termalista está encantado com tanta energia, daria tudo por uma eternidade massajada, mas uma voz seca e autoritária, num dito só, comunica-lhe que é findo o bem-bom.

Restará apenas, porque a classe dos termalistas honra os seus compromissos, o breve instante de se selfizar, assim deixando à posteridade evidências desses enebriantes minutos de prazer.

 

Desafio Arte e Inspiração|"Cronos"

João-Afonso Machado, 14.09.22

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O Tempo um mestre o quis parar,

Cronos desculparás esses relógios derretidos,

amolecidos pendurados

 

e não cortarás

(Cronos ri alvar)

outros pescoços nem as árvores secarás,

a natureza, o mar, toda a pureza do horizonte.

 

Cronos haverás de enverdecer o monte

que o artista queimou ansiando a loucura

de semear secura quando proclamou

 

Cronos não perdura, o Tempo parou.

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(https://porqueeuposso.blogs.sapo.pt/desafio-arte-e-inspiracao-v2-0-semana-1-554432)

 

Desafio 52 semanas - 37|Pacotinhos zodiacais

João-Afonso Machado, 12.09.22

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Esse seria, no meu querer, o primeiro de muitos jantares com aquela carinha laroca que  conhecera já não sei onde. Tudo prometia correr bem, de astros nada entendo mas a comida escoava razoavelmente para o buraco negro do universo. Aproximava-se o momento mais sobremesa das afinidades existentes entre nós...

Foi quando ela me perguntou a data e a hora de nascimento e exclamou o meu signo, o qual, aliás, eu já sabia.

(Leio sempre o horóscopo nos jornais, não exactamente o parágrafo do dinheiro antes os do amor, que sigo com o maior rigor, e da saúde, em que nunca topei sintomas alarmantes. Somente não alcanço as previsões da Maya, tão complexas agora que se tornou uma senhora chique.)

Mas foi o meu azar. Noite aziaga de baixo astral! A pequena sai-se a dissertar sobre a influência da lua - para mim apenas o luar e as marés vivas - e de (mas que termo terá utilizado?) as minhas aptidões ou conexões com virgens e aquários... Virgens e aquários??? - Que estupidez - ia eu dizer, se ela me desse tempo, nessa exortação inteira sobre quase todo o sistema solar e cavalgares de leões, carneiros e sagitários.

Se estava a querer dizer que a coisa não faiscaria bem entre nós, podia trilhar caminhos menos ínvios e mais acessíveis. Ainda sobraria qualquer simpático momento para umas graçolas, umas trivialidades. Mas porque ela não se calasse ou deixasse de girar a roda do zodíaco, acabei desligando o som e abusando um bocado do tintol. A findar com uma palração a descair para o inconveniente... - Foi Neptuno, filha, foi Neptuno e o seu tridente a confundirem-te com Vénus recauchutada...

Os nossos destinos não se encontravam - feliz e realmente - na rota cósmica um do outro. Tudo fora apenas uma estrela cadente. Será assim o meu verdadeiro signo?

 

(Desafios da Abelha - https://rainyday.blogs.sapo.pt/52-semanas-de-2022-introducao-392169)

 

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