A preto e branco
As manhãs acordam cedo no Agosto balnear, ainda grande parte dos veraneantes dorme. Mas aos de sono mais leve não escaparão os tropeções dos carroços dos varredores nem as imprecauções das peixeiras tocando às portas suas conhecidas. Ainda a praia é um deserto acizentado e húmido que anseia pelo meio-dia redentor.
A Olívia, um dos vultos mais antigos, bigodenta sem pudor, vem descalça e coberta de sete negras saias, como a faixa que as cinge à cinta e o lenço da cabeça, a rosca de trapos em que equilibra o seu tabuleiro. Não é sardinheira, a Olívia, porque a clientela é forasteira e abonada, gulosa dos seus gorazes, capatões e robalos; da delícia dos frequentes linguados e rodovalhos... E a porta que se avizinha, de uma senhora já idosa e freguesa de uma vida toda, - a Olívia sabe, abrir-lhe-á o palco de um espectáculo sempre aplaudido, tenaz mas proveitoso.
O batente soa a ferro antigo, de boa fundição. E a criada, já muito dentro dos seus horários, não demora a esclarecer - Vou chamar a Senhora...
Há um custoso descer das escadas e o canapé onde a Avó se senta. Os netos, ainda em pijama, tomam os seus lugares nos degraus. Atentíssimos.
- Bom dia, minha Senhora! - Bom dia, Olívia! Então o que traz hoje?
Logo a Olívia, o tabuleiro poisado na pedra do chão, remove os trapos com que resguarda o pescado. De um em um enumera as suas qualidades, «vivinho, acabadinho de sair do mar».
A Avó, essa manhã, deu-lhe na tineta um ruivo tamanhudo a avermelhar o mostruário da Olívia. Sempre é preciso variar... - Oh mulher!, e o ruivo, quanto quer por ele? - Cinco escudos, minha Senhora, cinco escudinhos por este rico peixinho que ainda parece respirar... - Cinco escudos? Eu compro igual no mercado por dez tostões!...
É já a véspera do clímax. A Olívia insurge-se, vá lá a Senhora comparar o mercado com o peixe saido agora da traineira... - Valha-nos Nosso Senhor Jesus Cristo e a Santa Madre das Areias!!!
- Vinte e cinco tostões, Olívia! Vinte e cinco tostões senão por hoje nada mais... - Quatro m'reis, minha Senhora! - Três, pronto!
Três e quinhentos Senhora! - riposta a furibunda Olívia já com o ruivo pendurado pela guelra no seu dedo. - Três e quinhentos que pela alma do falecido que Deus tem já fico a perder. - Não, não quero! - Quer quer, minha Senhora! Pela saúde do meu moço que anda no arrasto, quer e não se arrepende!
Eis finalmente o almejado clímax. A Olívia conhece de gingeira os corredores da casa e, de faca em riste, o ruivo na outra mão, só pára na banca da cozinha. - Mas, mas... - a Avó ainda tenta recalcitrar, já a Olívia esventrou, escamou e amanhou o ruivo. Os netos batem palmas, que grande exibição! - Consumatum est! - sentenciou o Pai, um desses dias em que se levantou mais cedo. A Conceição, a velha criada, ri até às lágrimas. E a Avó acaba sorrindo, feliz com o belo almoço e o entusiasmo dos seus queridos meninos. A manhã, encoberta embora, começava bem...