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FUGAS DO MEU TINTEIRO

Imagens e palavras de um mundo onde há menos gente

FUGAS DO MEU TINTEIRO

Imagens e palavras de um mundo onde há menos gente

Desafio 52 semanas - 44|Manifesto anti-elencos

João-Afonso Machado, 31.10.22

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Uma das minhas grandes aflições quando enchouriço a mochila consiste em saber de antemão algo virá a mais, ou algo ficará esquecido. Facilmente se imaginará também o drama em que resulta cada ida aos hiper-supermercados. Em suma, não sou homem de listagens, carrego às costas pouca e muito usada roupa e a dona da mercearia é a minha segunda família; a primeira, talvez, se me acompanhar até às prateleiras.

Como tal, elencos disto ou daquilo (depois de tantos que fiz, impostos pela ciência jurídica ao longo da Faculdade toda) considero-os, por junto, uma conspiração altamente lesiva da minha criatividade. A mesma cara, consoante a sua expressão ou o meu estado de espírito, pode ser prosa ou poesia, um mote triste ou alegre, escrita breve ou prolongada. E seja ela a cara de um hominídeo ou de um símio.

Acresce não contactar muitas pessoas. Melhor dizendo, os amigos são bastantes mas o meu refúgio é maior e gosta-se a si mesmo sozinho. (Deixemos, todavia, este assunto para outra altura.) Eu vivo escrevendo. E se alguém com pachorra para me ler se rir, - ao fazê-lo poderá ter por certo que esse seu riso é o eco do meu.

 

(Desafios da Abelha - https://rainyday.blogs.sapo.pt/52-semanas-de-2022-introducao-392169)

 

Meditação (à moda antiga)

João-Afonso Machado, 28.10.22

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Em boa verdade, sinto muito a falta de quem me ensinou a voz do silêncio. Desse vulto desaparecido, dessa vida que vive algures e terá tanto em que se ocupar.

Luís Cardoso de Menezes, meu parente, colectou os seus poemas em  Meu Silêncio de Palavras onde residirá alguma resposta mais a nós mesmos.

Silêncio feito de luta/silêncio feito de espanto/palavras pra quem não escuta».)

Nada é dito por acaso. E nem sequer a luz da vela é um pensamento errante. Para onde caminho, eu, desprovido de primeiras pessoas do plural? É no que penso e repenso. Agora mesmo, na frescura de uma curva qualquer onde se pode ser feliz.

 

Um minhoto na Capital

João-Afonso Machado, 26.10.22

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E como difere Santa Apolónia dos meus velhos tempos num quartinho no Campo das Cebolas! Mudou de cores, engoliu um hotel e parece um comício de trotinetes sob o qual jazerá o saudoso Sud!

Cá fora, os velhos estabelecimentos das sandes de chourição e meia garrafa de tinto consta foi bruxedo que lhes lançou mãe-de-santo, baiana de orixá. O português de Portugal já pouco se ouve e se as casas de comida triplicaram, a clientela decuplicou. Não é bom ter fome em Santa Apolónia...

Enfim, após espera paciente, banqueteava-me com uns carapauzinhos de escabeche quando surgiu - tinhamos combinado encontro - a única inofensiva trotinete lisboeta. A dela, a da minha amiga, anunciando-se à distância com o tilintar das pulseiras, a cabeleira loira como farois de nevoeiro. Acenei-lhe, abri os braços. E ela poisou como uma gaivota raríssima, a única talvez a torcer o bico aos carapauzinhos de escabeche.

Quase me senti na obrigação moral de lavar os dentes. Mas a minha amiga, muito senhora, é óbvio não fez qualquer reparo. Empurrou a trotinete para um canto, cumprimentou efusivamente e sentou-se à mesa, informando nada querer porque estava uma «lontra». Foi o início de uma agradável demorada conversa a certa altura derivando para as cidades flutuantes - verdadeiras Porcalhota quando já invadida pela propriedade horizontal - que atracavam no vizinho Cais do Tabaco.

Discorreu-se muito. A páginas tantas ouvimos um roncar roufenho a assinalar uma partida e assistimos à manobra. Consabidamente, eu gostaria de experimentar um cruzeiro. Li até algo sobre uns programas para lugares simpáticos como a Irlanda. E num impulso incontrolável desafiei - E se fossemos os dois...

Não consegui concluir a proposta. Em um salto, parecendo ofendida, ergueu-se da cadeira e cavalgou uma tilintante trotinete loira e despeitada. Outra, não essa em que chegara...

Ainda que me falhasse o orgulho dos minhotos, sempre careceria de know how (estamos na Capital...) para agarrar uma montada daquelas e seguir no seu encalço. Só para esclarecer: cada um no seu camarote, minha amiga!

 

Desafio 52 semanas - 43|O pé direito (cont.)

João-Afonso Machado, 24.10.22

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Pois continua a mancar. E o pé esquerdo já se queixa também. Ambos formaram um par de muita andança, à caça e à pesca, por caminhos de transcendência ainda. Ao que acrescem cidades todas que deglutiram esfomeados, de manhã à noite, postos nelas a conhecer o mundo. Somente... a última surtida foi um fracasso.

Um fracasso porque o dono dos pés (a culpa toda sua), sofrido de dores, ao fim da tarde não podia mais. O resto do programa decorreu em automóvel, com paragens aqui e ali. Felizmente o destino contabilizou umas centenas de quilómetros que desprezavam a viagem de avião...

Assim o pé direito mastiga o esquerdo e vomita sobre a vontade de ambos e da prospecção do andar cimeiro, o do alto comando, alguém habituado a viajar e buscar imagens da vida (através das janelas dos indígenas) onde está a beleza e a explicação do viver. Coisas pensadas bastante para além do mero imediatismo...

E neste andar de palavras, o pé direito doeu-se agudamente. Conforme as indicações do fisiatra, sendo assim o melhor é quedar-se, estender a perna com gelo em cima e esperar dias benfazejos.

No Polo Sul? - É demasiado longe... Cumpra-se, porém, a prescrição médica!

Porque o pé direito está a dar cabo do seu legítimo proprietário. 

 

(Desafios da Abelha -  https://rainyday.blogs.sapo.pt/52-semanas-de-2022-introducao-392169)

 

Amora

João-Afonso Machado, 22.10.22

É uma cidade no concelho do Seixal. Uma vila, durante breve estação. E uma freguesia durante séculos de pousio das populações, dos moleiros e da vida piscatória. Era ainda apenas freguesia, logrou a proeza de se alcandorar à I Divisão Nacional futebolística. O Amora Futebol Clube! Não havia precedentes nessa façanha e assim a terreóla entrou no mapa dos meus conhecimentos.

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Por essa altura, e por mero acaso, li um edital num jornal qualquer um assunto macabro: notificavam-se os familiares de umas vastas dezenas de defuntos para removerem as suas ossadas do  cemitério de Amora, sob pena de as mesmas serem encaminhadas para a vala comum. Os nomes dos extintos, a modo que guineenses, indiciavam o fim da primeira geração dos retornados (refugiados?) das nossas ex-províncias ultramarinas...

Logo vislumbrei um mundo zombie, repleto de anonimato. Mas era um rapaz novo, com voos apontados a outras paragens. Pus o pé na Amora somente há dois anos. No Verão, para jantar um peixito.

Agora voltei. No intuito de conhecer o que de antemão perspectivara. Uma aldeia num foguete transfigurada em outra cidade satélite. Urgia galgar as torres e alcançar os bocados carcomidos do seu berço.

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Lá mais acima a vista é animadora. Mais a mais na maré baixa do Tejo e da baía que se entretém a baralhar-nos no posicionamento das localidades. Chegar ao rio é um instante, almoçar junto do cais uma delícia se não for uma dominguice pesada de famílias e criancinhas chorosas, valendo-se apenas de polvo à lagareira.

E depois o passeio.

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A Sociedade Filarmónica Operária de Amora (o operariado ainda é tema aqui...) ignoro como se organizou num magnífico edifício junto à baía. Como ignoro o que faz ou tenciona fazer no que me palpita já ter sido apenas o cinema local. Ante ela uma rampa que decerto findaria nos primórdios da freguesia que eu buscava.

Mas a maré vaza podia fugir. Por isso não deixei as águas para trás e o que a sua ausência põe ao léu, o mundo antigo de que sobram algumas carcassas,

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mesmo em plena decomposição, ossadas, o tema inicial de Amora.

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E as aves, sempre as aves, a maior riqueza do Tejo: pilritos, gaivotas,

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garças, maçaricos... Quem, daquelas torres periféricas, com gosto de as apreciar?

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Iniciada a escalada, após, o vetusto casario de Amora. Os seus "palácios". A roupa secava no exterior não obstante os grossos pingos de chuva. Sempre com a aparência mais natural.

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A igreja paroquial pedia meças à da minha aldeia, onde todos conhecem todos e a lavoura é modo de vida... Um velório na casa funerária com cinco participantes cumprindo o seu dever, o que seria feito dos vizinhos?... Nos portais do cemitério, colados, rasgados, os já referidos editais, passaportes definitivos para o breu da História.

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Mas uma muito idosa ainda visitava campas decoradas com flores artificiais - as gentes talvez não, mas a humanidade estará por uma geração ou duas mais...

 

A Taberna Afonso

João-Afonso Machado, 19.10.22

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Vindo de Barcelos pela estrada antiga, fica na primeira freguesia do concelho de Ponte de Lima - Poiares. Não tem que enganar, a referência é a quase irmanada capela de S. Roque e o seu púlpito pétreo, voltado para o exterior e apropriado a sublimes sermões pós-almoço. Tão mais apropriado quanto é certo estarmos na capital do bacalhau assado na brasa.

A Taberna Afonso nasceu em 1997. Não disponho de feições suas dessa pueril fase. Há meia dúzia de anos lá fui ao fiel amigo e ainda o estabelecimento se pautava por alguma ingenuidade, - digamos assim - conquanto o petisco já fosse ao rubro procurado. O resultado era então o malfadado condimento de um almoço - a barulheira. (Se calhar, por isso, acabámos perorando aos deuses, um punhado de nós, no púlpito da capela de S. Roque.)

Desta feita, o grupo dos jovens famalicenses que se reune no Café S. Paulo deparou com mais amplas e sofisticadas instalações, uma sala quase só para si. A pesca, necessariamente, era a mesma.

As paredes da Taberna tinham petrificado nuas e a mesa comporta onze comensais com o maior conforto. O bacalhau parece um tubarão lascado, sem espinhas, coberto de cebola e grelos. Em prato à margem, a batatinha cozida. E tanto aparato quanto sossego, vagamente perturbado pela escolha dos vinhos, a discussão do costume.

Há-os amantes do maduro E do verde branco, o meu partido, o que melhor rega esse peixe salgado sem o ser, bem temperado como só na Taberna Afonso. In casu, escolhido o da casa, um monocasta (loureiro), muito afrutado, a registar 12,5º, não sei se com exactidão... (Em Poiares, assim graduado, produzido na freguesia, pois só lhes tiro o chapéu, aos solos e ao bom sol...)

Quanto ao serviço, não podíamos almejar mais, tratados por «filhos», maternalmente, servidos no prato e no copo, com fotografias intermediadas e pudim do Abade de Priscos e café para quem o bebe... Contas feitas, o destaque para o satisfatório e acessível preço.

A conversa foi-se deixando ficar. Depois, as despedidas e os devidos agradecimentos. De Poiares a Barcelos uns instantâneos 9 km e, até Famalicão, o breve trajecto de todos os elogios pensáveis - bacalhau assado, salgado como não o é... - à Taberna Afonso. Com todas as glórias devidas à coincidência de nomes - o daquele santuário e o deste pobre desconhecido. 

 

Desafio 52 semanas - 42|O pé direito

João-Afonso Machado, 17.10.22

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A área não é grande, calça 40. Mas a caminhada sempre longa e esburacada. Isto a propósito do meu pé direito, segundo as mais recentes notícias vitimado por uma tendinite teimosa e condenado ao triste apoio de uma bengala. Em vésperas de perdizes... Acresce a tenebrosa ameaça no joelho, a infâmia de uma patética artrose. Enfim, a quase imobilidade.

Trata-se de uma questão gravíssima. Como calcorrear os matos e as lavradas? E as margens dos rios? E as ruas do mundo?

Ficarei condenado ao solzinho da varanda conforme os meus precoces cabelo e barba brancos que herdei de Pai rijo?

Valha-me Deus! Eu ainda contava com mais uma década pela frente antes de testamentar as minhas armas, que a caixa toráxica está para aí virada, e o espírito também!

E o que diria a minha inolvidável Tareja, a rainha dos perdigueiros portugueses? Que fosse à merda? Pois como contestaria eu a sua interjeição?

 

(Desafios da Abelha -  https://rainyday.blogs.sapo.pt/52-semanas-de-2022-introducao-392169)

 

A preto e branco

João-Afonso Machado, 14.10.22

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A Cinda chegou de Fafe com o pai, home próspero no negócio do gado de carne. É o Ser'Antóne Vaqueiro, como respeitosamente o conhecem, agarrado ao seu longo e mortífero varapau de marmeleiro, o chapéu às três pancadas.

A feira de S. Miguel, em Famalicão, reserva-lhe geralmente umas tantas notas de mil agarradas por um elástico, depois de contadas de dedo lambido, no fundo do seu bolso. Do outro, do que não esconde a navalha de capar porcos. E a moça vem com ele, madrugadora, num canto frio da ronceira caminheta de taipais altos. - Ó cachopa! Lucinda! Amanhã botas o trajo e não esqueças as arrecadas, que é dia de Feira Grande.

A Cinda sabe mais. Sabe que há de pincelar de azeite todos os longos cornos do gado e de tapar-lhes as pontas com um pedaço de borracha; brilhantes, escorregadios, inofensivos, é como eles se querem. E sabe ainda da importância dos chocalhos na pescoceira das reses, ornamento e chamariz da gente da santa posta barrosã.

É esperta e bem jeitosa, a Cinda. Os seus olhos muito azuis, reminiscência do reino suevo no Minho, escondem com eficácia outras facetas menos cuidadas. O buçozito da Cinda, os sovacos amarelados, que a blusa branca não chegou a ser lavada depois dos calores da anterior utilização...

Moça dos seus dezassete anitos, nascida e criada no trabalho da terra. Seca de formas, ainda não lhe espevitou o colo e às ancas falta-lhes largura.

Mas o Nelo de Ribeirão está de mira nela. E no varapau do Ser'Antóne. Já o ano passado a moça cá viera à feira, miudita, a prometer o que ora garante. A Cinda esbarrou nas vistas do Nelo e deixou-se ficar nelas, bem entendido vigiando de esguelha a severidade paterna.

A manhã ainda não tem fim à vista. Aparecendo comprador para a junta, é certo o Ser'Antóne desbundar nos rojões da casa do ferrador, incentivando a Cinda a comer, comer para ganhar corpo de mulher nédia, corada. E o Nelo segui-los-á, se mais não for sob o pretexto de uma malga de tinto, duas sardinhas e broa. Mas já no domingo próximo, montado na sua motoreta, começará a bater os lugares prováveis de Fafe, um por um, a ver como param as modas...

 

Desafio Arte e inspiração| A cor faltosa

João-Afonso Machado, 12.10.22

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A época dos tapetes, como ele lhe chamava, era particularmente agradável. Pelas suas formas e combinações de cores, pela amenidade do tempo e mesmo por toda a agitação que avassalava e rejuvenescia a vida. E não será dificil compreender o entusiasmo do rapazito pastor ao ver ficarem para trás as chuvas do inverno sem ainda estiolar sob o sol ardente de Julho ou Agosto.

O rebanho era o seu ofício. Em maré de cabritos, mais de cem cabeças a seu cargo e do cajado e do canito refilão. Mas a primavera trazia o pasto verde, viçoso. repolhudo. Os animais fixavam-se aos prados, serenavam, não era aquela correria entre a lama e as águas empoçadas. Sobrava-lhe tempo para se esticar no tapete, se lhe aprouvesse, jamais conseguira entender essa história dos ácaros e dos pólens. Não raro ali mesmo tirava uma pestana, que para qualquer imprevisto logo estaria o latir do parceiro.

Ganhara o jeito de andar descalço então. E formigas, saltões, aranhas, abelhas, lagartixas, qualquer cobrita, faziam-lhe impressão nenhuma. Os meandros do seu tapete eram uma metrópole imensa e agitadísssima dessa bicharada.

De papo para o ar, mordiscava um talo de erva e somava as tépidas cores da tarde: o azul do céu, o verde dos pastos e o dos arvoredos pintalgado do branco das flores novas; como as do solo, amarelas, arroxeadas, bravias, a sua santa cama do instante. O quadro era lindíssimo e apenas deu pela falta do vermelho vivo daquela pintura que topara na última ida à feira. Com uns mocitos cheios de roupa (por certo a suarem em bica...) e umas senhora arrastando os vestidos pelo chão pintalgado dessas tais papoilas, como lhe tinham dito chamar-se a flor.

Sabia bem das camélias, das roseiras, até dos arrebenta-bois felizmente escassos, só nas cercanias do ribeiro. E lembrava-se vagamente, a caminho do S. Bento da Porta Aberta, desses copos encarnados soltos ao vento na berma da estrada. Mas nunca em semelhante quantidade.

Era uma falta de peso nos seus quarteis. Iria um dia pelas papoilas e plantá-las-ia entre as cores todas do pasto. Assim se coloriu a tarde inteira. Mal às cabras não fariam essas papoilas, isso estava assente.

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(https://porqueeuposso.blogs.sapo.pt/e-nesta-semana-562205)

 

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