Um minhoto na Capital
E como difere Santa Apolónia dos meus velhos tempos num quartinho no Campo das Cebolas! Mudou de cores, engoliu um hotel e parece um comício de trotinetes sob o qual jazerá o saudoso Sud!
Cá fora, os velhos estabelecimentos das sandes de chourição e meia garrafa de tinto consta foi bruxedo que lhes lançou mãe-de-santo, baiana de orixá. O português de Portugal já pouco se ouve e se as casas de comida triplicaram, a clientela decuplicou. Não é bom ter fome em Santa Apolónia...
Enfim, após espera paciente, banqueteava-me com uns carapauzinhos de escabeche quando surgiu - tinhamos combinado encontro - a única inofensiva trotinete lisboeta. A dela, a da minha amiga, anunciando-se à distância com o tilintar das pulseiras, a cabeleira loira como farois de nevoeiro. Acenei-lhe, abri os braços. E ela poisou como uma gaivota raríssima, a única talvez a torcer o bico aos carapauzinhos de escabeche.
Quase me senti na obrigação moral de lavar os dentes. Mas a minha amiga, muito senhora, é óbvio não fez qualquer reparo. Empurrou a trotinete para um canto, cumprimentou efusivamente e sentou-se à mesa, informando nada querer porque estava uma «lontra». Foi o início de uma agradável demorada conversa a certa altura derivando para as cidades flutuantes - verdadeiras Porcalhota quando já invadida pela propriedade horizontal - que atracavam no vizinho Cais do Tabaco.
Discorreu-se muito. A páginas tantas ouvimos um roncar roufenho a assinalar uma partida e assistimos à manobra. Consabidamente, eu gostaria de experimentar um cruzeiro. Li até algo sobre uns programas para lugares simpáticos como a Irlanda. E num impulso incontrolável desafiei - E se fossemos os dois...
Não consegui concluir a proposta. Em um salto, parecendo ofendida, ergueu-se da cadeira e cavalgou uma tilintante trotinete loira e despeitada. Outra, não essa em que chegara...
Ainda que me falhasse o orgulho dos minhotos, sempre careceria de know how (estamos na Capital...) para agarrar uma montada daquelas e seguir no seu encalço. Só para esclarecer: cada um no seu camarote, minha amiga!