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FUGAS DO MEU TINTEIRO

Imagens e palavras de um mundo onde há menos gente

FUGAS DO MEU TINTEIRO

Imagens e palavras de um mundo onde há menos gente

Como foi o que já não é

João-Afonso Machado, 04.11.22

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Foram duas horas de espera, a mais activa, remexendo o passado. Em dez anos a ventania soprou no seu embalo muito além das três décadas que ali vivi.

A mercearia vende agora, a par de umas tantas garrafas de vinho e de rebuçados para a tosse,  panos bordados e souvenirs diversos, que a porta ao lado é um alojamento local. Entrei (na mercearia) com a imagem bem presente do dono. Cumprimentávamo-nos na rua, homem alto de barba grisalha, mas sem bigode. Não estava, atendeu-me a mulher com um sorriso de filha. Mas vivia ainda, quem morrera foi a empregada do balcão. E retirei, convicto de que a minha visita não seria tida por demencial.

Logo adiante, os restos mortais do Nova Europa, onde tantas vezes jantei e gargalhei com  a mais rematada chalaça tripeira do Sr. Manuel que servia à mesa. Mas os estabelecimentos de comes decuplicaram e os AL's são piores que os cogumelos. Uma merceariazita mais e o mesmo: uns restos de arroz e latas de salsichas, o espaço maior todo por conta de velharias à venda que inspeccionei atentamente.

No Porto Sentido fiz então a minha aparição e abanquei. O Sr. Joaquim (um bom homem de Valpaços a quem, nesse tempo, confiava as perdizes e o javali caçado para as nossas tainas), esse cozinheiro emérito, o Sr. Joaquim, reconheceu-me e gabou os meus quilinhos a mais. Ele, emagrecido. Já não serve jantares a grupos de estudantes, fecha às 18.30 e quer passar o estabelecimento que (mania de alguns transmontanos) ostenta uma bandeira da República cá fora.

- E os nossos amigos dessa altura, Sr. Joaquim?

Quase todos foram já... - Para a outra vida? - Sim, morreram ou senão envelheceram, deixaram de sair de casa... - Ainda assim, a loja de fotografias ao lado está de pé, combatendo a generalizada modernidade com a recuperação de fotografias antigas. Era um dos desses fins de tarde, o dono...

Por fim, a drogaria do Sr. Carvalho. Que eu vi no derradeiro dia, quando a camioneta carregava as sobras do seu comércio e a chave estava prestes a ser entregue ao senhorio. Dei-lhe um abraço, comprara-lhe certa vez uma espingarda cal. 24 (raríssimo), toda aos  bocados; o serralheiro deu um jeito, um velho armeiro (também já ido) vendeu-me munição, mas nunca reparei o percutor, antes a pendurei na parede da sala onde fica muito bem.

- Isto já nem dá para a renda, Sr. Dr. - chorava-se o Sr. Carvalho. E eu só pude desejar a melhor sorte a esse idoso natural de Esposende, de quem mais nada soube.

Agora é lá um café todo catita. Com o discernimento bastante para não arrancar da parede a velha placa negra que anunciava a drogaria. Volvi ao carro e deparei com um envelope azul-cueca no limpa-pára-brisas: uma multa de estacionamento que obviamente não pagarei.