Um dia na Beira Baixa
Era noite à chegada à Herdade dos Abegões. E muito fechados os portões e as regras da casa. Torna-se difícil perceber porque não podem os cães dormir no quartos do donos, sobretudo se o tom de voz é tão imperativo quanto a razão é impenetrável a argumentos. Assim Dona Mécia foi conduzida ao canil onde já gania aflito e temeroso um recluso epagneul.
Mas Dona Mécia rapidamente fugiu desse convento. Marinhou rede acima e breve se apresentou, felicissíma, na sala de jantar. O encarregado, de péssimo humor, tratou logo da sua recondução a um canil todo coberto, de alta segurança.
No exterior o breu era completo. Ainda assim, a meia dúzia de metros, manifestamente os vultos de uma récua de javalis.
Quase não se distinguiam: havia dois maiores e uns tantos mais pequenotes. Com aqueles na dianteira, trotando todos na direcção da gente.
Explicou o encarregado, era uma porca e a sua prole mais um macho velho com eles. Já eriçados com a presença de Dona Mécia, aliás alheada desta infelicidade, do drama. A espingarda fez sentir muito a sua falta; um tranqueiro também, que à paulada os porcos sempre retrocederiam. E pareceu ser dispensável o medo, na ocasião sem qualquer valia. O encarregado berrava aos porcos, esbracejava, e eles estacavam e logo recomeçavam a perseguição. Assim até Dona Mécia dar entrada no canil e no regresso a casa.
Magnífico jantar! Noitada prolongada, conversa animada, sono curto. Logo cedo a partida para Toulões, caçadores, cães, guias, esperanças múltiplas. O pé já não coxeia mas ficara proibido de grandes cavalgadas. Sem embargo, a espingarda foi, a máquina fotográfica também e o raio de acção circunscrito a uma área que dispensava o guia e não atrapalhava as linhas dos caçadores. Com a manhã inteira para entabular conversa com Dona Mécia e a Beira Baixa.
As pernas não pararam. Os olhos encheram-se das formas mais venerandas ou fantasmagóricas dos sobreiros. Dona Mécia banhou-se em súbita lagoa de transparência e de o milagre de cardumes fulgurando nessa cubículo rodeado de imensidão. Já os pulmões avolumavam de bons ares e a cabeça se esvaziava de chatices. Ao longe os tiros ouviam-se, avistava-se uma das linhas que não pediria meças às pernas em treinamento... Mas, no respeito pelas ordens superiores, o recinto não ia além da cerca de arame e, deste modo, a atirar, só por maldade às imparáveis lavercas.
Todavia, entre tão impenetrável vegetação, descobriam-se motivos de entretenimento. Mais não fosse, o saltitar dos chapins nas copas das árvores.
A manhã fez a sua viagem. Na volta de uma das linhas, ouvindo-se vozes sempre mais perto, a ideia de ir à extrema (não aparecesse alguma perdiz afugentada) surgiu na melhor hora - a perdiz veio, como bala, mas dois tiros daqui não a deixaram prosseguir. Fora tudo de excelência - as pernas desemperradas, nunca parando; os olhos cheios e os pulmões também; muitos retratos tirados e a perdiz a finalizar.
Seguir-se-ia a pantagruélica almoçarada. Não sem que antes a máquina, já nos Abegões, apanhasse em cheio a elegância de um gamo macho fugindo!