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FUGAS DO MEU TINTEIRO

Imagens e palavras de um mundo onde há menos gente

FUGAS DO MEU TINTEIRO

Imagens e palavras de um mundo onde há menos gente

A preto e branco

João-Afonso Machado, 10.11.22

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Da vilória do Sr. Prudêncio não guarda o mapa vestígios. Sabemo-lo apenas do Interior serrano e, não obstante esse seu berço, um homem franzino e tremendamente friorento. Ainda assim com as forças bastantes para escapar às garras que a pneumónica lhe lançou, era ele rapazito novo. Se calhar por isso não foi à tropa...

Os nossos mapas são prenhes em cores orográficas povoadas de histórias de lobos e de assaz pouca gente. Não longe dali resfolega o comboio ralo, vagaroso e sonolento, e o Sr. Prudêncio bem se recorda e gosta de contar as obras da estação e a vinda d'El-Rei a inaugurá-la. (A ser verdade o que ele conta, Sua Magestade a Rainha atentara no menino Prudêncio e pespegara-lhe um beijinho na face.) Em dia de estrear calção e casaqueta festiva, já engravatadinho, que posses, graças a Deus, foram sempre sobrando, o estabelecimento de linhas e retrozes é o mais afamado nas redondezas.

O seu falecido Paizinho deixou-lho por herança. Ao Sr. Prudêncio ainda se ofuscam os olhos com o brilho metálico da caixa registadora então chegada, o seu trrrriiiim após o rodar da manivela e a a gaveta a abrir com as notas e moedas muito arrumadinhas em compartimentos. Já vai nos oitentas, o Sr. Prudêncio, quase todos eles passados no lado de dentro do balcão de madeira. Com os óculos na ponta do nariz em minudências de botões.

 

Um dia na Beira Baixa

João-Afonso Machado, 08.11.22

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Era noite à chegada à Herdade dos Abegões. E muito fechados os portões e as regras da casa. Torna-se difícil perceber porque não podem os cães dormir no quartos do donos, sobretudo se o tom de voz é tão imperativo quanto a razão é impenetrável a argumentos. Assim Dona Mécia foi conduzida ao canil onde já gania aflito e temeroso um recluso epagneul.

Mas Dona Mécia rapidamente fugiu desse convento. Marinhou rede acima e breve se apresentou, felicissíma, na sala de jantar. O encarregado, de péssimo humor, tratou logo da sua recondução a um canil todo coberto, de alta segurança.

No exterior o breu era completo. Ainda assim, a meia dúzia de metros, manifestamente os vultos de uma récua de javalis.

Quase não se distinguiam: havia dois maiores e uns tantos mais pequenotes. Com aqueles na dianteira, trotando todos na direcção da gente.

Explicou o encarregado, era uma porca e a sua prole mais um macho velho com eles. Já eriçados com a presença de Dona Mécia, aliás alheada desta infelicidade, do drama. A espingarda fez sentir muito a sua falta; um tranqueiro também, que à paulada os porcos sempre retrocederiam. E pareceu ser dispensável o medo, na ocasião sem qualquer valia. O encarregado berrava aos porcos, esbracejava, e eles estacavam e logo recomeçavam a perseguição. Assim até Dona Mécia dar entrada no canil e no regresso a casa.

Magnífico jantar! Noitada prolongada, conversa animada, sono curto. Logo cedo a partida para Toulões, caçadores, cães, guias, esperanças múltiplas. O pé já não coxeia mas ficara proibido de grandes cavalgadas. Sem embargo, a espingarda foi, a máquina fotográfica também e o raio de acção circunscrito a uma área que dispensava o guia e não atrapalhava as linhas dos caçadores. Com a manhã inteira para entabular conversa com Dona Mécia e a Beira Baixa.

As pernas não pararam. Os olhos encheram-se das formas mais venerandas ou fantasmagóricas dos sobreiros. Dona Mécia banhou-se em súbita lagoa de transparência e de o milagre de cardumes fulgurando nessa cubículo rodeado de imensidão. Já os pulmões avolumavam de bons ares e a cabeça se esvaziava de chatices. Ao longe os tiros ouviam-se, avistava-se uma das linhas que não pediria meças às pernas em treinamento... Mas, no respeito pelas ordens superiores, o recinto não ia além da cerca de arame e, deste modo, a atirar, só por maldade às imparáveis lavercas.

Todavia, entre tão impenetrável vegetação, descobriam-se motivos de entretenimento. Mais não fosse, o saltitar dos chapins nas copas das árvores.

A manhã fez a sua viagem. Na volta de uma das linhas, ouvindo-se vozes sempre mais perto, a ideia de ir à extrema (não aparecesse alguma perdiz afugentada) surgiu na melhor hora - a perdiz veio, como bala, mas dois tiros daqui não a deixaram prosseguir. Fora tudo de excelência - as pernas desemperradas, nunca parando; os olhos cheios e os pulmões também; muitos retratos tirados e a perdiz a finalizar.

Seguir-se-ia a pantagruélica almoçarada. Não sem que antes a máquina, já nos Abegões, apanhasse em cheio a elegância de um gamo macho fugindo!

 

Desafio 52 semanas - 45|Estatura meã

João-Afonso Machado, 07.11.22

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Não acredito a vida seja feita de altos e baixos, com excepção dos que jogam na sorte e no azar. Ou considerem o nascimento um acaso na roda da fortuna...

Ora eu vim ao mundo por imensa vontade dos meus Pais. E, gostando de andar por cá, só lhes estou agradecido. Mais agradecido ainda por me explicarem a vida é uma "caixinha de surpresas". (Tive-as as piores, senti-me derribar, mas ergui a vontade e a força e, com todas as sequelas, assim me vou mantendo.)

Os ditos «altos e baixos» são, por isso, uma contigência da vida, em que o canudo académico ou a morte de um ente querido não podem consubstanciar momentos de relevância eufórica ou irreparável do nosso historial.

Creio, antes, a vida caminha para o alto ou para a baixeza. O problema de cada um, que cada um resolverá consigo e com a sua consciência. Sem direito a objecções de quem quer.

Como escritor - que é o que sou - nunca me debati com o menosprezo. Também, é claro, não senti (nem sentirei, decerto) a glória. Vivo e viverei, permaneço e permanecerei, a meio pano, lido por um punhadito de leitores. E o meu momento maior (o mais alto?) é constatar que vou fazendo o que o meu espírito diz para fazer - para escrever; e o menor (o mais baixo?) seria se não dispusesse de lápis e papel para tal.

É um percurso em que este (perdoem a propaganda) já não é o dia primeiro...

 

(Desafios da Abelha -  https://rainyday.blogs.sapo.pt/52-semanas-de-2022-introducao-392169)

 

Como foi o que já não é

João-Afonso Machado, 04.11.22

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Foram duas horas de espera, a mais activa, remexendo o passado. Em dez anos a ventania soprou no seu embalo muito além das três décadas que ali vivi.

A mercearia vende agora, a par de umas tantas garrafas de vinho e de rebuçados para a tosse,  panos bordados e souvenirs diversos, que a porta ao lado é um alojamento local. Entrei (na mercearia) com a imagem bem presente do dono. Cumprimentávamo-nos na rua, homem alto de barba grisalha, mas sem bigode. Não estava, atendeu-me a mulher com um sorriso de filha. Mas vivia ainda, quem morrera foi a empregada do balcão. E retirei, convicto de que a minha visita não seria tida por demencial.

Logo adiante, os restos mortais do Nova Europa, onde tantas vezes jantei e gargalhei com  a mais rematada chalaça tripeira do Sr. Manuel que servia à mesa. Mas os estabelecimentos de comes decuplicaram e os AL's são piores que os cogumelos. Uma merceariazita mais e o mesmo: uns restos de arroz e latas de salsichas, o espaço maior todo por conta de velharias à venda que inspeccionei atentamente.

No Porto Sentido fiz então a minha aparição e abanquei. O Sr. Joaquim (um bom homem de Valpaços a quem, nesse tempo, confiava as perdizes e o javali caçado para as nossas tainas), esse cozinheiro emérito, o Sr. Joaquim, reconheceu-me e gabou os meus quilinhos a mais. Ele, emagrecido. Já não serve jantares a grupos de estudantes, fecha às 18.30 e quer passar o estabelecimento que (mania de alguns transmontanos) ostenta uma bandeira da República cá fora.

- E os nossos amigos dessa altura, Sr. Joaquim?

Quase todos foram já... - Para a outra vida? - Sim, morreram ou senão envelheceram, deixaram de sair de casa... - Ainda assim, a loja de fotografias ao lado está de pé, combatendo a generalizada modernidade com a recuperação de fotografias antigas. Era um dos desses fins de tarde, o dono...

Por fim, a drogaria do Sr. Carvalho. Que eu vi no derradeiro dia, quando a camioneta carregava as sobras do seu comércio e a chave estava prestes a ser entregue ao senhorio. Dei-lhe um abraço, comprara-lhe certa vez uma espingarda cal. 24 (raríssimo), toda aos  bocados; o serralheiro deu um jeito, um velho armeiro (também já ido) vendeu-me munição, mas nunca reparei o percutor, antes a pendurei na parede da sala onde fica muito bem.

- Isto já nem dá para a renda, Sr. Dr. - chorava-se o Sr. Carvalho. E eu só pude desejar a melhor sorte a esse idoso natural de Esposende, de quem mais nada soube.

Agora é lá um café todo catita. Com o discernimento bastante para não arrancar da parede a velha placa negra que anunciava a drogaria. Volvi ao carro e deparei com um envelope azul-cueca no limpa-pára-brisas: uma multa de estacionamento que obviamente não pagarei.

 

À luz da vela

João-Afonso Machado, 01.11.22

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Não sei se é influência das muitas que tremelicam hoje sobre a memória dos nossos que já foram. Ocorre-me o efeito da cera a derreter e a luz circunscrita, concentrada em uma ideia qualquer. Em redor a escuridão é abstracção, seguramente a ausência de muita gente.

A caneta prossegue neste dia de afirmação da Eternidade. Haverá alguma razão especial para que ela vá além da escuridão? E porquê a correr, como se fosse apanhar o autocarro, como se o autocarro cumprisse fielmente o seu horário?

O Outono é inocultável, sendo jamais uma estação exuberante... Sei, sinto, algo está para mudar. O tinteiro esmoreceu emparceirado com a vela esquecida. Mas ainda lhe restam algumas forças.

Seguramente para um beijo àqueles com quem sonho todos os dias. E para honrar compromissos pendentes, ir transmitindo disposições de última vontade.

Parece ser a morte uma obsessão, mais a mais hoje. Não é. Somente a caneta reclama liberdade, recato e resmas e resmas de papel.

 

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