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FUGAS DO MEU TINTEIRO

Imagens e palavras de um mundo onde há menos gente

FUGAS DO MEU TINTEIRO

Imagens e palavras de um mundo onde há menos gente

Em Coimbra, uma noite no Hotel Astória

João-Afonso Machado, 13.12.22

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Tinha que ser, tão chegado é a Coimbra A. E há tanto tempo se ergue o seu pináculo e dormitam as suas mansardas, toda a sua estranheza de formas. Lembro-o tossindo da poeira levantada quando a Nacional Porto-Lisboa lhe passava à porta. Não sei como sobreviveria, contam-se histórias inauditas de ratazanas enormes no seu interior. Nós, os caixeiros-viajantes deste País, nada queriamos com aquela aparência de luxo ressequida e encarquilhada. E só a década seguinte devolveu o Hotel Astória à sua dignidade.

Ao que me contaram tem a idade do meu Pai, um seu desconhecido habitante da Alta académica. Não resisti, telefonei, fiz uma reserva e lá dormi nessas horas de Coimbra. Uma noite perfumada de linho com vista para o Mondego. Quase conversando com as gaivotas poisadas nos candeeiros da avenida. E esquecidíssimo do Basofias que já foi, tolhido de dunas e vegetação bravia, o Mondego adormeceu inerte, espelhando quantas luzes no seu leito.

Desci do terceiro andar ao rés-o-chão num elevador a chiar e a troar, aos solavancos. Mas sentado no seu banquinho, aguardando em sossego o fim da viagem. A sala de estar, um primor art deco e o futebol jogado na televisão, uns quantos espanhois por ali... Seria o ano feroz de 1938? - Não, a avaliar pelo ecran (mini-cinematográfico?) e pelo seu colorido falante, talvez mesmo pelo modo desempenado com que os presentes se comportavam na sala. Tirei muitas fotografias de interior para agora estar certo de não ter sonhado. E já no quarto, esfalfado, desinvencilhei-me da gravata, alarguei o colarinho engomado e baixei os suspensórios que me tolhiam os alvos ombros da camisa. Desapertei oa atacadores dos sapatos e busquei ideias no fundo da mochila. (Pois, não trouxera a valise...) A casa de banho com uma banheira qual piscina; torneiras pesadas e loiça sanitária como já não recordava, o triunfal regresso do bidé. Alvitrei - 1966?

Mas dos eléctricos e dos troleys, sobrava apenas a ferrugem de cabos esquecidos no ar. E a televisão dispunha de quatro garridos canais, a tremenda opção entre quatro programas em simultâneo... todos eles, por acaso, barulhentos. Voltei à varanda, voltei ao Mondego, agora cheio de cores natalícias, e deitei-me em aromas e leituras prolongadas. Dormi como um justo.

De manhã o duche magnífico e o pequeno-almoço em outro esplendor de salão, o piano sempre no seu posto no patamar subidas as escadinhas. No lugar da música. Quem sabe Glenn Miller, Amália, quem sabe?

Cerrei a mochila, enclausurei nela as divagações. Era dia para dois leitões à mesa e o comboio vinha aí... Mas nunca, em toda a minha vida, me custou tanto a despedida de um hotel!