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FUGAS DO MEU TINTEIRO

Imagens e palavras de um mundo onde há menos gente

FUGAS DO MEU TINTEIRO

Imagens e palavras de um mundo onde há menos gente

Desafio 52 semanas - 50|O músculo cerebral

João-Afonso Machado, 12.12.22

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Faz-me bem uma almoçarada bem regada. Faz-me bem pegar na espingarda ou na cana de pesca. Faz-me bem a distância do faz-mal barulhento. Faz-me bem ler um livro concentradamente e uma caneta entre os dedos a escrever estas palavras. Ou, enfim, voar ou ferroviar.

Mas tudo isto são indícios, apenas, do benfazer. Serão meios de chegar lá... - a esse estado de espírito são (e santo) em que só a brisa sopra em meu redor. O ponto de ebulição do alheamento das maçadas todas. Do mundo.

Ou seja, faço por trilhar (e rilhar) caminhos na convicção de que eles levam a bom destino - o bem estar, a antecâmara da felicidade. Não que a queira na monótona atitude de uma oferta. Essa felicidade é um percurso (não a taluda da lotaria) que não abdico de percorrer. Nascer feliz, sem obra própria, seria a suprema chatice. Um passo decisivo para a ausência de musculatura.

Não sei porquê, até apetece desenvolver o tema. Mas não, há que o suster. Ninguém tem de ensinar alguém. E todos devem haver-se consigo mesmo. O tempo estreita, o ano vai acabando. Estou em hibernagem. Um só aviso - o mutismo, o isolamento está chegando...

 

(Desafios da Abelha -  https://rainyday.blogs.sapo.pt/52-semanas-de-2022-introducao-392169)

 

Madrid (II) - Entre a Calle A Tocha e o Paseo del Prado

João-Afonso Machado, 10.12.22

O Hotel Mexico não é uma estância de luxo exactamente mas fica bem localizado, sobretudo para estadias breves. Assim o deixei, manhãzinha cedo, através da Calle A Tocha, rumo ao centro de Madrid. Nunca compreendi, porém, alguém que se admirou do meu propósito pedonal...

Não podia ser diferente. Tratava-se de tomar o pulso à grande cidade nos seus lugares mais afamados e também nas esquinas onde se vive a vida diária. Como o mercado Anton Martin, por exemplo,

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um despreconceituado lugar dos residentes, a caminho da Plaza Mayor, onde encontraria o símbolo desta Capital.

Somente... o Natal tinha tomado conta dela. Fileiras e fileiras de barracas ajustadas todas ao tema Navidad.

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Era o que lá se vendia: as peças múltiplas dos mais imaginativos presépios, sem novidade de maior entre as montras vizinhas.

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Dando-se o caso de o cenário ser repetitivo - e os pais estarem já fornecidos - a costumeira diversão para a criançada, o malabarismo para o espaço crescer...

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Pese embora, ficou a minha firme convicção de como os madrilenos gostam da quadra e a vivem na euforia das ruas. Na Plaza Mayor, orbitando em volta de Felipe III,

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o segundo que nos reinou longe de deixar boas memórias...

Em Madrid os estabelecimentos preocupam-se muito em nos dar de comer. Com ou sem categoria. Mas bastará um quase nada de atenção para aprender a distingui-los. É um pouco a velha questão dos alumínios... Ou, se quiserem, das aparências. 

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Eu trazia no ouvido e topara no mapa (curioso como actualmente se despreza o papel em favor das biblias dos telemóveis...) a zona de apetite de Madrid de los Austrias. Pois a procurei, pois a encontrei.

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Comércio! Comércio e mais comércio! O bródio do Natal consumista! Entre edifícios belle époque como se ainda fosse o renascimento das  cinzas da Guerra Civil. Assim na Puerta del Sol, outra monumental praça carregada de polícia e de obras.

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Não obstante os milhares de turistas e pregoeiros de outros idiomas, Madrid, indiferente à época do ano, era dos madrilenos. Das suas numerosas famílias

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e das coberturas das fachadas a toldarem as vistas de quem chegava.

Regressei no meu passeio pela Calle de Alcalá. Regalei-me com o Palacio de la Independencia

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e com a Fuente de Neptuno,

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antes de me embrenhar no Paseo del Prado. Suspirei aliviado, envolvi-me em tons verdes e vozes de baixa rotação, dera a volta.

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O hotel ficava logo ali, a tempo de uma tortilla e um copo de Rioja.

 

Dia da Padroeira

João-Afonso Machado, 08.12.22

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A capela rapidamente caminha para os quatro séculos de idade. Vem do tempo da Restauração, da entronização da Senhora da Conceição como Rainha de Portugal. O obreiro da capela mandou-a construir sob a evocação da Imaculada também.

Ainda serão muitos os portugueses conhecedores do sentido destas letras. E permanece na família do tal remoto seiscentista a devoção e o culto e, obviamente, a capela que Lhe foi dedicada. Na Casa em que nasceram e nascem quantos seus afilhados, seus encomendados, seus sempre. Sentindo-se especialmente seus hoje, 8 de Dezembro.

Não longe, na cidade, decorrerão as solenidades em homenagem da Senhora. Ouvir-se-á o empolgante hino da Padroeira. (Um nó na garganta, um aguaceiro prestes a desprender-se das nuvens dos olhares...) E a pergunta ainda sem resposta, - em que esconsos lugares nossos tudo já será nada, esquecida a Mãe infinda, levada ao exílio a Rainha de Portugal? Uma pergunta, aliás, só não inútil por ser outro modo de experienciar o deserto.

 

Madrid (I) - O Parque del Buen Retiro

João-Afonso Machado, 06.12.22

Ao longo de toda a rampa, a feira semanal de livros antigos. Uma tentação, obras de se agarrarem com as duas mãos e a razão a conseguir sobrepor-se - a exorbitância dos preços, a dificuldade no seu transporte. Dois cavalos da Guarda fizeram-se ouvir na calçada e a sua tranquilidade veio também refrear tais impulsos. A volta prosseguiu, pois, com a entrada no Parque del Buen Retiro.

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Estão ali cerca de 125 hectares, mesmo perto do Centro de Madrid (e especialmente do meu hotel...), uma área que talvez nenhuma propriedade minhota alcance; uma assinalável mancha verde no mapa da cidade. Fiz prévias perguntas, ouvi estranhas respostas: uma logista macarroneou não sei que alusão a «evil». - Evil? Esta maldito porque?

Não sabia. Nem acescentava fosse mal frequentado. Coisas antigas...

O Parque, constatei, estava, sim, sobrefrequentado. Era sábado e toda a Madrid convergiu para cima do meu sossego. «Evil»... Que romaria nas suas diversas entradas! E localizando-se estas em portões imponentes, de onde nasciam as suas "avenidas" principais, rapidamente me escapuli para as ramificações, caminhos toscos e escondidos pelo arvoredo. Talvez desse com um dos derradeiros lobos da região...

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Mas o que descobri cortou cerce as minhas ilusões. Loriquitos! Às centenas. No chão e abrigados nas copas dos pinheiros e cedros. Chilreando infernalmente!

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Onde está praga dá, poucos mais se aguentam, despedaçados pelos seus agressivos trombis. Pelas redondezas sobravam pombas, algum melro na clandestinidade, pegas aos pares (porque com estas, muita atenção!...)

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e um bico grossudo, entretidíssimo em ramagens nuas, um pássaro que nunca até então fotografara.

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Assim o passeio prosseguiu todo mundano já. Havia água correndo e o seu destino era o «estanque». Qualquer coisa a fazer lembrar, mais pobrezinho, a pomposa Versaillhes.

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É, uma Versailles popular com dezenas de barquinhos a remos a transbordar de famílias inteiras rodeadas de... gaivotas, aos molhos, e até, como sinaleiros no cais, alguns corvos-marinhos! Em pleno coração da Peninsula Ibérica!

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Em redor do «estanque» o auge da animação. Dava-se de comer aos patos e às carpas. Ouvia-se música, mesmo algum bem tocado jazz, duas chicas dançavam e o trompetista piscava-lhes o olho...

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Tudo isto rodeado de muitas esplanadas, vale dizer de horas e horas de espera para ser atendido. Desviei-me para a banda. Bonecos gigantescos de peluche espaventando-se à cata de uma moeda estorquida às criancinhas, a imaginação das estátuas vivas,

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a visão de um casal de piadeiras, quer nadando,

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quer voando (o tempo de espera, o meu, para assistir e fotografar a passagem!).

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e Afonso XII, O Pacificador, por todos zelando no topo do seu pedestal.

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A manhã estava feita neste seu reino de palradores e psitacídeos. Abalei em demanda de lugar recôndito para o almoço.

 

Desafio 52 semanas - 49|A vida passeando em nós

João-Afonso Machado, 05.12.22

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A vida simplifica-se não a complicando. Mas esta boutade é demasiadamente simples para não ser complicada. Somos nós os autores - em simultâneo os bons e os maus - do filme da nossa existência. Bons se desprendidos; maus se ambiciosos (materialmente ou não), obsessivos de algo - ainda que inofensivo. Porquê o conflito com a vizinha ou a ambição do BMW? Seria isto, apenas, não fora a nossa natureza tendencialmente concorrencial.

Gozar o dia-a-dia; dar uma volta, se possível... O mais difícil - aceitar os revezes. Deixar o tempo passar em nós. Nesta largada de palavras creio agora ter acertado em cheio no alvo - deixar o tempo passear em nós. (O faisão caiu redondo...)

Porque a vida (terrena) será mesmo esse passeio por caminhos ora pedregosos ora aromatizados de bons trechos, não escorregadios, onde o calçado flana e o peito não arqueja. Merecidamente, na dose adequada de sombra e descanso.

Será sempre assim? Não, não é. Objectivamente não é, mas quando subjectivamente for temos ganhadores - nós próprios. E a resposta ao desafio (da nossa vida) fica resolvido, ganho. Nada mais haverá a procurar para encontrar a felicidade.

(O gancho transportará então um número incontável de faisões... - Ah! grande espingarda...)

 

(Desafios da Abelha - https://rainyday.blogs.sapo.pt/52-semanas-de-2022-introducao-392169)

 

Até Andorra por estrada

João-Afonso Machado, 01.12.22

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Foi há muitos anos, numas férias da Páscoa. Com partida de Lisboa, em dois automóveis, atravessámos a Peninsula no seu estado mais adiantado de gravidez. Corremos a Estremadura espanhola, passámos ao largo de Madrid, já em Castilla la Mancha, Aragão, um cheirinho de Catalunha e Pirinéus. Então o frio caiu sobre nós de repente, nevava entretanto, eramos chegados a Andorra, enfim.

A maioria organizou-se para esquiar. Para não fazer outra coisa além de esquiar. Eu experimentei também, mas não me entusiasmei. Chamavam-me mais a paisagem e os passeios a pé, o pão com chouriço do restaurante italiano e o seu vinho a copo.

Como ainda passaríamos as festividades pascais no Norte, regressámos por Navarra, Castilla Leon, Sanábria e entramos triunfalmente na Pátria querida por Chaves. Depois foi sempre a descer... mesmo a tempo de não perder as cerimónias religiosas na nossa freguesia.

Nunca antes guiara tantas centenas de quilómetros seguidas, em sofríveis auto-estradas. E no miolo espanhol prepondera a monotonia do planalto empedrado. Horas e horas de marcha sempre igual. As distâncias são muito maiores do que cá: qualquer tabuleta aponta a próxima cidade importante e acrescenta à frente duzentos ou trezentos deles, ou seja, de litros e litros de combustível. Foi sair de manhãzinha e chegar à noite.

Se valeu a pena? Claro que valeu. Mesmo porque, de então para cá, tenho enchido de betume esse esqueleto cuja espinha dorsal percorri ao volante. Ainda agora assim será, mas de avião, quem me diz não esteja já no ar neste momento?

 

Calma! Há para todos

João-Afonso Machado, 30.11.22

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Recebi ontem uns tantos. Os bastantes. Mas, entretanto, hei de arejar o espírito por uns tempos, uma espécie de estágio antes dos oitavos-de-final da bola mundial. Sobretudo para fechar este ano de pé-cochinho.

Já se manifestaram uns tantos interessados. Façam o favor, tirem a senha e aguardem vez. Não utilizem (mesmo tendo o número) o telefone, irremediavelmente avariado nesta altura; enviem mensagem através do FB ou para o endereço machado.ja@sapo.pt.

E para a semana pomos tudo em boa ordem.

Muito obrigado!

 

Camilo, sempre ele

João-Afonso Machado, 29.11.22

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Escorrega-se-nos entre os dedos, a sua história, como uma enguia. O Camilo mais de antigamente, ainda jovem e já desiludido, lamuriento; romântico, pobre, quase desconhecido, recém-chegado, sempre de picardias. Com muita correspondência que lhe vai arrasando quantos mitos! Porque Camilo não guerrilhou na Patuleia; porque sobrevindo o sossego, aumentou-lhe a irrequietude entre o Porto, Braga e Guimarães, deixando por toda a parte poemas lamechas, dedicados a senhoras impressionáveis («Prevejo a hora extrema de morrer.../A campa vem além... na campa o nada.../Um sono sem fim... jamais sofrer.»),  e 1850 é um ano indomesticável, intratável e ubíquo. Como sistematizá-lo?

Camilo no Bom Jesus e nas Caldas de Vizela. Numa roda de amigos que troca entre si poesia como quem joga cartas ao serão. Uma multidão, e alguns dos meus dentro dela.

Vai crescendo a pilha dos livros biográficos e das notas tomadas em folhas e folhas de papel. E o tinteiro já no fim, tantos os riscos em cima de frases ainda não no seu lugar. E as constantes interpelações epistolares de Camilo? A quantas não serei eu a responder, porque os seus contemporâneos a isso se esquivaram?

Que tal contenda se apazigue antes de 2046... Antes do bicentenário de uma Maria da Fonte em que até fingiu Camilo ter assistido ao assassinato do general comandante das tropas de D. Miguel!

Ah! Camilo, Camilo! Reparo agora, esqueci de conferir o ano em que conheceste D. João de Azevedo, esse boémio. Uma peça importante nesta charada. E lá escorrerá mais um bocado de tinta negra na escrita que hei de riscar ou entrelinhar...

 

Desafio 52 semanas - 48|Freio a fundo

João-Afonso Machado, 28.11.22

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Querida Amiga Ana:

Os conselhos dados - só a nós mesmos. Aos outros, é sempre um atrevimento, uma ousadia, a pseudo-sabedoria, com certeza malcriação.

E, por isso, guardo todos os meus doutos pensares aqui para o velhote nascido fadado para a asneira. Porque esta não é a história (fatalmente parcelar) das ditas asneiras nem o caminho é o do aconselhamento que me dou. E eu já antes tinha levantado a pontinha do véu em algumas notas escritas a mim próprio.

Sabe porquê? Porque na escrita, que é a minha vida, quantos mais os compromissos e os prazos, pior o resultado. E, nessa minha vida, além do que ninguém necessita ser aconselhado, falo dum caminho para a arte, tão simples quão complicado: complicado se quisermos publicamente brilhar; simples no recato das nossas horas, sem despertador, somente no vagar de posicionar as palavras no lugar certo.

(O eléctrico desfila nos carris, sem quase ruído, e a gente nem dá pelo historial, por toda a vida que nele viaja...)

Vai daí, a literatura e a solidão são quase irmãs. O mundo é demasiadamente tosco: tão tosco que não raro nem nos deixa entender porque publicamos.

Sendo parte da resposta (que nos damos) um certo exibicionismo nosso a que se há de pôr o freio, não vá ele derribar-nos na sua cavalgança.

Esse freio é bom conselheiro. Ele trava este cavalgante de si mesmo, tendencial cavalgadura.

Um beijinho.

 

(Desafios da Abelha - https://rainyday.blogs.sapo.pt/52-semanas-de-2022-introducao-392169)

 

Com naturalidade...

João-Afonso Machado, 25.11.22

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A gente já escreve as coisas na agenda para não esquecer. Acontece, porém, esquecermos de consultar a agenda...

A minha para 2023 é forte, dotada de um fecho magnético, e será bem visivel em cima da secretária. Cinzenta e sóbria, ofereceu-ma o proprietário de uma agência funerária local, que fez delas uma resma publicitária a distribuir por quem quer. Brrr... - tremerão alguns.

Era antigamente o cangalheiro. Hoje é um amigo que nos tratou de tudo quando os pais faltaram. E de um modo tão respeitoso e sentido, tão prestimoso, assim entre o desgosto e a perda a cordialidade se transformou em amizade. Em muita conversa de extremos tão distantes como as nossas colecções de miniaturas de automóveis e as minhas disposições de última vontade. Lá no funéreo estabelecimento de onde regresso carregado de blocos sem linhas para a minha escrita diária. Enquanto, em definitivo, não me transformo em hirto cliente seu.

Não há como não lidar familiarmente com o que há de mais certo na nossa vida. E com as pessoas que - é o caso - no maior escrúpulo e cortesia se encarregam de dar o devido arranjo à morte ainda à vista de todos. Assim abrirei tranquilamente a agenda com que o meu amigo me presenteou, essa agenda cinzenta e sóbria com fecho magnético, enquanto o tempo para tal ainda fizer parte do Tempo. Notas que não esquecerei...

Seguidamente, a palavra e o gesto ao dito amigo, já industriado para o restante...